Farkas, Pré-Hecatombe
Ravi tinha um pigarro persistente preso na garganta. Não era uma tosse completamente seca, mas do tipo que vem dos pulmões, irritante, subindo até o topo da garganta e grudando nela com um leve sabor adocicado. O catarro o irritava. Parecia disposto a tirá-lo do sério como se fizesse de propósito. E estava conseguindo. Estivera ali por toda aquela manhã. Yan o acompanhava em silêncio, parado em pé ao lado de sua cadeira pomposa.
― Pelo menos deixa ele sentar ― Oz reclamou do assento ao seu lado. Estavam ali há horas e já tinha visto Yan ir e voltar com chá mais vezes do que achava tolerável. ― Ele é um curandeiro, não um leva-e-traz. Yan, vem aqui.
― Rapaz, fica ― Ravi ordenou.
Yan não se mexeu. Segurava uma bandejinha onde havia um novo bule de chá, o terceiro daquela ocasião. O copo de cerâmica sumia na mão de Ravi. Às vezes, até parecia que ele poderia engoli-lo sem querer.
― Está tudo bem. Não estou cansado ― comentou ao ver a forma como a boca de Oz começava a se alterar numa ameaça de rosnado.
― Oz, não seja tão afrontoso com o seu pai ― pediu Juno, à direita do líder Farkas.
Era a mais ponderada da sala, ainda que tenha estado ao lado de Ravi em todas as escolhas que ele fizera, fossem boas ou questionáveis. A mãe de Oz não era uma farkasiana de nascença. Nem da família que emprestava o nome à Cidade, nem mesmo uma cria de suas províncias. Nascida em Banjora, usava com orgulho as suas próprias vestes vermelhas como sangue, cobertas por uma túnica aberta caída até abaixo da linha dos ombros, que ela segurava contra o peito.
― Talvez um gole do seu chá o ajudasse ― ela pediu com um sinal de mão, indicando o bule fumacento sobre a bandeja.
― É a infusão para os sintomas climáticos do mestre Farkas, madame. Não teriam poder algum como calmante ― Yan respondeu, olhando-os apenas de canto. Se olhasse para Oz agora, só inflamaria mais o espírito protetor em seu coração. Estar em pé não era realmente um problema, de qualquer forma.
― Tem mais gente para entrar ou estou aqui à toa? ― Ravi se inclinou para frente, deitando o cotovelo sobre o apoio da cadeira. O verdadeiro leva-e-traz, um homem de meia-idade parado perto da porta, se apressou em mandar entrar o próximo assunto. Certamente tinha esperado a discussão da família se amansar, o que não foi uma ideia boa para um dia como aquele.
Yan precisou firmar as mãos na bandeja quando Ravi pousou de volta o copo com um peso desnecessário e pigarreou, irritado.
― Não deixe essa discussão idiota tirar seu foco, rapaz. É porque conheço a qualidade dos seus remédios que faço tanta questão da sua presença. Temos uma celebração mais tarde e eu odiaria estar indisposto. ― Ele meneou a cabeça, coçando o tufo de barba no centro do queixo. ― Você vai conosco, inclusive. O Senhor Instrutor solicitou. É bom. Já que conhece intimamente o meu filho, poderia ajudá-lo a cortejar alguém interessante. Uma diplomata da Ópera seria uma escolha agradável.
Oz soltou o rosnado que tinha preso à garganta. Ao redor dos assentos, o pequeno grupo de lobos-híbridos mostrou os dentes por reflexo.
― Lá vai você tentar me negociar de novo um casamento estúpido. Eu já disse que não tenho interesse desde que… ― Oz se interrompeu com a abertura da porta da Sala de Escuta.
― Falamos sobre isso em outra ocasião, garoto. ― Ravi o encarou, sério. ― Agora cale a boca.
O leva-e-traz conduziu para dentro um homem de ombros troncudos, com os pulsos presos um ao outro por um tira grossa de couro.
― Qual foi a ocorrência? ― Juno tomou a frente, uma sobrancelha arqueada em interesse. ― E bem no último dia do festival?
― Esse senhor furtava bebidas do estoque do mercado, madame ― o leva-e-traz anunciou. ― Aproveitou a festa como uma distração. Foi pego ontem à noite depois de consumir três dos nossos galões de vinho de cevada, bêbado e desgracento, fazendo marra. Ainda por cima, socou um dos híbridos.
― Socou um lobo? ― Ravi tinha o semblante entediado. Teria deixado passar, não fosse aquela parte do relato. ― Em Farkas, durante o Festival da Vitória? Isso soa como uma afronta ― pigarreou. E mostrou os dentes. Yan apertou a bandejinha na mão. Sua lanterna para Niva seria uma afronta ainda mais séria.
― E o nivariano que cultiva como curandeiro pessoal não soa, mestre? ― O farkasiano mirou suas orelhas de arminho. Yan desviou o olhar para baixo. Oz rosnou de seu lugar.
― Não me lembro de ter dado permissão para questionar, homem. ― Ravi meneou a cabeça. Ao seu lado, era Juno quem agora soltava um pigarro baixo, fechando os olhos em um suspiro profundo. ― Veja bem, além de roubar dos Farkas, agora você questiona o líder dentro de seus aposentos e ao lado de sua senhora. E socou um lobo.
― Aquele lobo tentou rasgar minha bolsa de dinheiro.
O silêncio que sucedeu a acusação só foi rompido com a sonora risada de Ravi.
― Ridículo. Nossos lobos não são cães de rua. ― Estreitou os olhos, se recompondo, então tocou o pulso de Yan com uma mão firme, guiando-o para perto para poder se servir de mais chá. O silêncio retomou seu espaço, respingado pelo som baixo e gutural do rosnado de lobos. ― Mas se esse é um esporte que o interessa, então eu gostaria de uma demonstração. ― Tomou um gole e então sinalizou na direção do filho. ― Oz, vá até ele. Eu quero ver se ele é mesmo capaz de socar um lobo.
Ele não protestou, não como na primeira vez em que Ravi o pediu algo assim. O sorriso de Oz se alargou para a esquerda, o canino aparecendo mais conforme a covinha se cavava na bochecha. Yan sentiu o coração disparar.
― Quero mesmo ver se ele vai fazer mais algum comentário sobre o Yan. ― Se levantou, balançando displicentemente os braços num alongamento por provocação. ― Leva-e-traz, solta os braços dele. Se ele me acertar um soco, ganha um pouco mais do meu respeito.
― Mais? ― Ravi pontuou, se ajeitando na cadeira com as sobrancelhas arqueadas, emendando outro gole de chá.
― Roubou três galões de vinho bem debaixo das barbas de todo mundo, não foi? ― Apoiando a mão na curva com o dorso, Oz girou um dos ombros para trás, então o outro. ― Um feito e tanto para um cara corpulento. Vem! ― Se agitou ao ver o homem chacoalhar no ar os pulsos agora soltos. Ergueu o rosto, soltando um uivo breve, seguido pela dúzia de lobos que habitava os aposentos.
Nix, uma das híbridas mais próximas de Oz, se sentou ao lado de Yan, o rabo preto felpudo balançando no chão ao seu lado enquanto encarava as provocações com os olhos díspares — um orgânico e outro mecânico.
― O grandão barulhento tá uivando de novo? ― Shu sibilou baixo. Yan se alarmou, relaxando os ombros ao notar que só ele pôde ouvir a voz baixa do lagarto em seu ombro. ― Eu que não vou perder isso.
― Shh… Shu ― pediu.
― Eu admito a derrota se me acertar primeiro, homem. Nem precisa ser forte ― Oz se gabou, fingindo ajustar as braçadeiras em volta das mangas. Nem mesmo tinha tirado o crânio de lobo da cabeça, em uma demonstração de arrogância.
O homem avançou, abordando Oz pela esquerda com um gancho armado. A coisa toda não durou mais do que alguns segundos. Ele parecia ter encontrado uma brecha. Preparou o soco e o lançou. Oz o bloqueou com a esquerda, agarrando-o pelo braço com a guarda aberta. Seu punho atingiu o homem bem no meio do rosto e o derrubou.
Os lobos uivaram mais, sapateando no chão em excitação. As unhas tilintavam como uma chuva de pedrinhas.
Oz se abaixou, rosnando ao ter o olhar do perdedor no seu.
― Roube, se puder, mas não soque um lobo ― disse. Abaixando a voz, continuou: ― E não ache que pode abrir a boca para falar de Yan na minha presença.
Yan apertou as laterais da bandeja. Quando voltava para seu lugar, Oz tinha um sorriso para ele, confiante e protetor. Aquele sorriso tinha existido desde quando se conheceram.
― Onde pensa que vai? ― Ravi ergueu a voz grave, coçando a barba no queixo. As unhas rebarbentas deixavam marcas avermelhadas na pele clara de seu queixo. Ao seu lado, Juno mal esboçava reação, mas o olhou pelo canto dos grandes olhos negros quando ouviu a voz do marido.
― Meu filho já fez o que pediu ― enfatizou, como se o homem ao seu lado tivesse perdido momentaneamente a capacidade de ver com os próprios olhos.
No centro da sala, o ladrão de bebida se erguia com a mão cobrindo uma mancha que começava a aparecer sobre o osso do nariz. Se há poucos minutos tinha sido acusado de socar lobos, agora a situação claramente se invertera, bem na frente dos olhos da família de líderes do clã e de sua alcateia de lobos de confiança.
― Se ele acha que um único golpe vale a honra de todo o seu clã… ― Ravi deu de ombros, se ajeitando na cadeira e cruzando os braços antes de limpar a garganta. ― Me preocupa que esse seja o único herdeiro que temos.
― O homem estava no chão. ― Oz fechou o punho. ― Mais do que isso seria uma punição exagerada. Pelo quê? Algumas palavras e um porre? ― Riu debochado. ― Estamos passando necessidade de vinho de cevada, pai?
― Volte imediatamente, garoto.
Já tinha anos que não havia justificativa para se referir a Oz daquela maneira, a não ser como uma mostra direta de desprezo.
― Ou você pode aplicar sua punição com seus próprios punhos ― Oz rebateu, dando mais um passo em direção à cadeira, que Ravi bloqueou com o braço em um gesto duro.
― Eu sou o líder do seu clã. Até que isso mude, os seus punhos são meus. ― Sem mover o braço, apontou o queixo em direção ao homem. ― Agora volte lá e deixe que eu resolva o quanto vale a nossa honra.
O olhar de Oz encontrou o de Yan, brevemente, no caminho entre o rosto de seu pai e o do homem que o esperava em pé no centro do espaço. O ladrão se justificava, a voz erguendo um tom de um jeito defensivo, enquanto ele levantava as mãos na frente do rosto.
― Tente me enfrentar, pelo menos ― Oz rosnou, caminhando num meio círculo ao redor dele. ― Fica menos feio se conseguir me acertar pelo menos uma porra de soco.
Ele hesitou. E então tentou. Ergueu a mão pesada no ar, lançando o punho na direção de Oz. Ele o segurou, apertando até ouvir um estalo, então o atingiu na lateral do rosto com um soco vindo da esquerda.
Yan soltou o ar em um ofego desconfortável.
Nunca foi a velocidade. Era a força. Oz fazia valer, sem muito esforço, a alcunha de Lobo dos Punhos de Chumbo, um apelido conquistado nas ruas da cidade por um histórico bobo de brigas desmedidas e investidas protetoras ― muitas delas por causa de Yan. A violência por punição tinha começado depois e era coisa de Ravi. O chão da Sala de Escuta era quem ditava o fim. Bastava que o punido caísse e o caso era dado como encerrado, sob panos quentes.
Mas, em todos os mundos, as leis flutuavam com o humor de seus líderes. Em Farkas, não seria diferente. Pelo contrário, as coisas ali eram escancaradas e barulhentas, como a boca de um lobo raivoso.
Três socos e o homem voltou a cair. Yan reconheceu no rosto de Juno o mesmo olhar de expectativa que tinha agora para Ravi. Ainda assim, ele nem mesmo titubeou, encarando Oz e nada mais.
― Não te mandei parar ― reforçou. ― Levante, homem. Já não está bêbado. Por que ainda parece tão difícil se sustentar nos próprios pés?
Apoiando a mão no joelho flexionado, o homem se levantou. Tinha o rosto desfigurado em pelo menos quatro pontos.
Oz encarou o pai. As sobrancelhas grossas e peludas enfatizavam a incompreensão que transbordava do olhar.
― Ele cai muito fácil. Vamos extinguir essa regra por agora. Você para apenas ao meu sinal, garoto. ― Ele ergueu o rosto. Pigarreou, irritado. Yan tentou abordá-lo com um pouco mais de chá, mas foi momentaneamente ignorado. ― Adestrei toda uma matilha. Não ache que não posso adestrar alguém da minha própria linhagem.
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