― Marido ― Juno entoou. O tom retinto de sua pele tinha um rubor novo concentrado nas bochechas.
― Sem necessidade de drama. É pra isso que temos o curandeiro. ― Quando puxou Yan pelo pulso, o toque brusco quase fez a bandeja ir ao chão. ― Ele cuida disso. Não cuida, Yan?
― Sim, mestre Farkas ― Yan respondeu, quase sem voz. De seu ombro, Shu mostrou a língua de um jeito agressivo.
Oz exibiu os dentes. Se distraiu por tempo o suficiente observando a cena nas cadeiras para que o homem tivesse tempo de se ajeitar. Cambaleava por efeito de uma porrada na cabeça e tentou retrucar com um soco no estômago. O grito de alerta veio de Shu antes mesmo que Yan pudesse avisar. Foi atrasado, e o punho não tão firme atingiu Oz nas costelas.
Ravi segurou um riso debochado, que murchou de volta quando Oz atingiu o homem na testa com uma cabeçada. Um canino do imponente crânio de lobo sobre sua cabeça abriu um talho no supercílio do sujeito, que começou a sangrar.
O soco potente com que atingiu o homem em seguida o fez curvar o corpo e cambalear para trás. Ele cuspiu sangue, surpreso com o pouco tempo antes de receber o golpe seguinte. Então o próximo.
As pupilas dilatadas de Oz desapareceram no oceano escuro de suas íris, negras como as noites profundas com que os imortais puniam as Cidades Flutuantes nos tempos mais sombrios. Por dentro, ele se sentia em chamas, queimando em um incêndio que crescia no fundo do estômago e se espalhava, fazendo arder até os nós dos dedos, marcados pela violência.
Foram cinco socos. E então dez, sem qualquer interrupção. Quando o corpo do homem tombou no chão, seu rosto coberto de hematomas era difícil de encarar. E Oz continuava o acertando, as mãos trêmulas descarregando golpes automáticos, esperando pela ordem para parar.
― Mestre ― foi Yan quem rompeu o silêncio. As juntas doíam, de tanto que apertava a bandeja. ― Eu acredito que ele esteja morto.
― Morto? ― Ravi enfim reagiu, se inclinando interessado. O corpo do homem estava no chão, virado para a porta, com as costas voltadas na direção deles, em meio a marcas sangrentas que se espalhavam pelo chão de pedra. Oz tinha apoiado uma mão em seu pescoço enquanto a outra golpeava. Sua respiração era cortada e audível, como a de um animal ferido. ― Vá verificar, Yan. Oz ― ele ergueu a voz ―, chega.
O último soco, preparado ao lado da cabeça, morreu no ar. Ele se afastou, se levantando em um único movimento, dando alguns passos para trás. Os olhos não saíram do homem no chão, mesmo no tempo em que Yan levou para deixar de lado a bandeja e se adiantar até o meio da sala.
O curandeiro se abaixou, tocou os dedos na lateral do pescoço do homem. E então suspirou em reconhecimento.
― Está mesmo morto, mestre ― reportou a Ravi.
A expressão de Oz se contorceu, confusa. Ele voltou a mirar o homem, as narinas alargadas, as sobrancelhas pesadas quase forçando os olhos a se fecharem. A forma como o encarava era a prova de que Yan não precisava: de que aquela era a primeira vez de Oz admirando a morte trazida pelas próprias mãos e nada mais.
― Mestre, eu posso…? ― Yan deixou a pergunta no ar. Ravi o respondeu com um aceno de mão displicente enquanto se levantava.
― Sim, faça o seu negócio. Não precisamos ser tão duros quanto os punhos do meu filho. ― Ele ajeitou a postura, tomou a mão de Juno na sua para guiá-la para si, casual como em um fim de baile. ― Nós vamos nos arrumar para o evento desta noite. Deixe que alguém se ocupe da bagunça em seguida.
Yan esperou que eles saíssem. Com uma mão, virou o corpo do homem de peito para cima. E checou Oz com um olhar rápido.
Ele continuava parado no mesmo lugar, encarando a forma como o corpo sem vida virou no chão sem resistência.
― Ele está mesmo morto? ― perguntou. ― Tão fácil?
A segunda pergunta foi a mais incômoda. Fez as pequenas orelhas de Yan se agitarem, desconfortáveis.
― Por pouco tempo ― respondeu. E tocou a mão no peito do homem, por baixo da túnica esgarçada, coberta de suor e gotejos sangrentos.
Sua pele ainda estava quente. Para o toque de Yan, era uma sensação morna diferente da vida, mais como a impressão de uma porta ainda aberta. Podia resolver.
Seus olhos se iluminaram, alaranjados e brilhantes, o brilho enfatizado pelas lentes dos óculos. Era muita energia, mas usada pela melhor das causas. Um dom raro. Desgastante, ainda que precioso.
Só afastou a mão quando o homem gemeu de dor, o derradeiro sinal de que a vida tinha voltado a circular por seu corpo.
Oz mal piscava. Tinha entreaberto os lábios para respirar lufadas mais potentes de ar. Agora mostrava os dentes numa expressão mais acuada do que agressiva. Ainda assim, o necessário para que o sujeito começasse a implorar assim que o viu ainda ali.
― Senhor, consegue se levantar?
Yan tentou ajudar, empurrando suas costas até que ele pudesse se sentar. As mãos vasculharam habilidosamente a inseparável bolsa transpassada ao corpo. Trazia nela diversos preparos de emergência, uma pequena parte reservada ao que Ravi solicitava; a maioria, uma lista de coisas que conviver com Oz o ensinara a sempre ter à mão.
― Este unguento vai secar as feridas e evitar infecção. E esta pomada, senhor, é um bom alívio para as marcas. O embrulho de ervas é bom contra a dor. Um pouco de cada de manhã e à noite e sua recuperação será acelerada ― Yan falava de um jeito automático. Seu foco não era o desconhecido, mas o dom da cura o impedia de apenas ignorá-lo.
Estava com Oz antes mesmo que o sujeito terminasse de se levantar, com o auxílio de um dos servos. O tocou na mão e na bochecha, virando o olhar estático de Oz para seu próprio rosto.
― Eu matei ele ― Oz murmurou. Yan segurou sua mão, pressionando o lenço empapado de tônico sobre as juntas feridas. ― Eu matei e você trouxe de volta. Isso é… ― Yan teve certeza, pelo tom de voz, que ele completaria com assustador. ― Engraçado, não é?
Encontrou o olhar dele. A marca no centro das bochechas aparecia apenas levemente no sorriso incerto. Yan retribuiu o sorriso, mais confiante. Trouxe a mão de Oz até perto do rosto e beijou seus dedos feridos. A mão dele tremeu quando a afastou.
― O seu tônico de força é mesmo poderoso, viu? ― Ele tentou firmar mais o sorriso. Yan não sabia dizer se ele tinha conhecimento do quanto falhou naquilo. ― Vamos.
Oz espiou o homem sendo carregado para fora da sala por dois leva-e-traz mais fortes. Não parecia bem para andar com as próprias pernas, mas a cabeça mantinha-se ereta, o que indicava consciência. E Yan tinha falado sobre uma recuperação acelerada, então nem podia ser assim tão grave. O sorriso relaxou um pouco.
― Eu tenho esperança de descansar depois do almoço pra não perder um instante do evento da noite… ― Oz tocou a mão no cabelo de Yan, desviando de Shu ainda encarapitado em seu ombro. Quando a mão pousou na nuca dele, Oz já tinha parado de tremer. ― Você devia descansar comigo… ― brincou. ― Talvez me preparar um chá, pra ser mais relaxante.
― Eu posso ― Yan respondeu, se encostando em seu peito, dando-lhe um beijo suave sobre a gola da túnica. Ali de perto, podia ouvir seu coração ainda disparado em aflição.
― Quem sabe desta vez você prepare o meu com a dose extra de mel, como faz o do meu pai ― gracejou, rodeando os ombros de Yan em um meio abraço, primeiro protetor, mas logo apertado demais para que fosse só isso.
― Não ― Yan respondeu sem voz e envolveu o corpo dele num abraço inteiro em resposta.
― Por que nunca faz o meu desse jeito? ― Ele bufou pelo nariz, contrariado. ― Meu pai sempre fala sobre os chás doces e deliciosos enquanto eu fico sentindo gosto de grama na língua.
― Porque ― Yan começou, então ponderou, acrescentando o fim da resposta com tom de segredo ― em Nivaria, essa era a forma como se preparava o chá de uma criança. E você não precisa disso.
Comments (0)
See all