A noite na base da Von Voyage estava mergulhada em sombras, como se o próprio ambiente compartilhasse a tensão prestes a desabrochar. Juntamente com Lohan, segui para fora da enfermaria, meu corpo ainda vibrando com os eventos recentes, enquanto nos encaminhávamos para o refeitório, notei que o ruivo, agora estava bem arrumado, de cabelo em seu estilo típico de madeixas curtas e desfiadas, e com a barba feita, trajando um terno impecável, além de exalar um cheiro forte de perfume amadeirado com um tiquinho de nervosismo, um contraste marcante com sua habitual confiança.

– Céus... você não precisar mais usar a caixa aqui, Blackstar. – Ele tentou tocar na caixa que estava sobre minha cabeça. Instintivamente, afastei-me, ainda sentindo-me inseguro para tirá-la.

– Foi mal, cara, mas prefiro mantê-la por enquanto. E você parece um pouco nervoso, Lock... Quer dizer, Lohan.

– Scheisse! Estou ótimo como nunca! – em um tom sarcástico.

 – Tá atrás de uma gatinha, é? Seu garanhão austríaco! se for pra me apresentar uma eu espero que seja a Estele?! – Com um sorriso dou umas leves cotoveladas e seu braço, ele me encara de forma séria e passa a mão aonde encostei. De fato, aquele terno azul marinho tinha cara de que custava mais do que todos os meus orgãos juntos.

– Na verdade, estou procurando por Olivera, ou melhor dizendo, Wires. Vou apresentá-lo a você. Há algumas coisas que preciso esclarecer a ele sobre você e seu papel aqui como nova piloto de WIRES.

– VISH? WIRES?! Ah, ok, Mas vocês nem me testaram antes! – balbuciei – Eu sei que tudo ocorreu rápido hoje mas eu pelo menos achei que a troca não ia ser tão urgente assim... que eu ia começar por um Voyageur menor antes de assumir WIRES...

– Você ser Blackstar. Capaz de superar todos os desafios. Treinarei você para a WIRES pois vejo potencial em você. Não vejo mais Olivera se encaixando nessa unidade.

Lohan tentava recuperar a determinação conforme caminhávamos para o refeitório, enquanto eu estava tentando captar essas novas informações, total confuso com a velocidade das mudanças, a ansiedade era tanta que eu não pensava nem em me alimentar e não me lembrava da última vez que mordisquei algo.

Finalmente chegamos ao refeitório, as mesas e cadeiras pareciam serem feitas de um material resistente e futurista, com cores neutras e um design elegante. Logo de cara, eu percebi imediatamente a presença do tão falado Wires, sentado em uma das mesas dos fundos, um piloto que, apesar de eu não gostar tanto dele, ainda assim me deixava entusiasmado em poder vê-lo pessoalmente, eu sabia que ele não ia estar presente no Voyage Con, mas a falta de uma explicação oficial dessa ausência pra mim era bastante intrigante. O garoto, por outro lado, parecia cabisbaixo e bastante diferente daquilo que aparece ao público, ele estava vestindo uma regata preta de gola alta que destacava seus braços reminis, revelando aquela habilidade já incorporada naturalmente em seu corpo, devido a um incidente que fora bastante comentando na época. Ele tinha adesivos de cores verde e azul espalhados por seu pescoço e ombros, provavelmente para tratar feridas recentes. O seu cabelo castanho escuro estava molhado e bagunçado, com uma franja caindo sobre seu olho esquerdo, onde sua marca Remini estava aninhada, intrigante como os seus olhos profundos se obscureciam ainda mais pelo seus óculos. Aquilo foi um choque para mim, aquela aparência contrastava por completo com a imagem pública do garoto, quase parei Lohan para lhe perguntar sobre o que havia acontecido nos bastidores da companhia.

– Lohan Graf Von Zeppelin, que surpresa vê-lo aqui. Há quanto tempo...– Wires se levanta, erguendo a mão para um cumprimento formal.

– Ya, De fato, três anos. Como tem passado, Olivera? – o sardento franziu a testa, quando percebeu a condição de Wires, que não possuía ambos os braços e utilizava a Remini em seus lugares.

– Não se preocupe em fingir surpresa, Lohan. Quanto aos meus braços... Já me acostumei com a Remini fazendo parte de mim 24 horas por dia. – As palavras trocadas entre os dois deixavam claro que havia uma história subjacente que eu desconhecia. As marcas das batalhas eram evidentes em seu corpo, enquanto a Remini ocupava o lugar de seus braços perdidos.

– Então, você é o famoso Oliveira Wires? Estava ansioso para conhecê-lo! Mas você está tão diferente de quando aparece nas mídias... Ah! Eu achei que os outros também estariam aqui, mas lembrei que hoje teve o VCXP. – tentei quebrar a tensão que corria entre os dois, interrompendo suas trocas de olhares que estavam me dando desconfortos.

– Sou tão designado para missões, que agora todo mundo resolveu esquecer meu nome de nascimento. Sei bem que... A própria Von Voyage começou a fazer marketing me chamando de Wires. – o garoto fala em um tom de deboche – Ei, Lohan, quem é o da caixa?

– Olivera, esse ser Kelsey, Reminiscente da Estrela Negra e o novo pilota da unidade Type2Beta-WIRES. Você está sendo substituído nessa unidade. O departamento de marketing e eventos estarão organizando um evento para marcar essa transição em breve.

Um momento de silêncio pesado se instalou na conversa, com Wires processando a informação e o Zeppelin mantendo uma expressão séria e observadora. Parecia que havia muito mais para ser dito ou entendido entre eles, o garoto virou-se para mim após eu retirar a minha caixa, mirando seus olhos verdes e cansados exatamente nos meus, encontrando-se em troca de olhares intensa que eu não conseguia descrever aquilo, mas que, de alguma forma, começou a doer na espinha.

– Ah, sim, o Blackstar que você tanto procurava. O novo piloto WIRES, certo? Espero que esteja disposto a ser explorado pela Von Voyage.

– Explorado...? O quê quer dizer? – balbuciei as palavras, eu estava confuso naquele meio e sabia que, se era para eu adentrar ali, precisava pelo menos saber o contexto das coisas.

– Exatamente, Blackstar. Você não faz ideia de como é ser um dos “heróis” explorados por essa empresa. Sugam você até a última gota por você, simplesmente, ser um Remini.

– Olivera, precisamos conversar... Eu querer te ajudar. Você sabe que eu nunca abandonei você. – o ruivo chega perto de Wires e fala calmamente, tentando contornar a situação.

– E os outros pilotos? Estão no evento Voyage Com? Nem sequer tiveram coragem de me chamar, depois de tudo que fiz! Estão me jogando para escanteio enquanto tentam mascarar a verdade! – Wires desabafou com raiva, empurrando Lohan e lançando seu prato para longe. Zeppelin tentava manter a calma, enquanto eu, nervoso, recolocava minha caixa de proteção. – E o que esse aqui tem de tão especial? Com essa caixa, nem precisaria daquelas maquiagens e filtros para aparecer nas mídias.

– Olivera, por favor...

– Fala pro Blackstar que tudo que ele vê nas mídias é filtrado por aparências e tecnologia. Eles querem que o público acredite que somos heróis perfeitos, quando somos apenas peões num jogo sujo. – O moreno tenta avançar para cima de mim mas Lohan o segura pelo braço.

– Olivera, eu vou ajudar a mudar essa—

– E onde está Naomi Nagatsuki? Cadê a minha suporte para as missões? Se você realmente se importa, tiraria ela da quarentena ao invés de buscar uma solução para me salvar – o Wires se vira indo para a porta de saída, em um último ato ele para na frente da porta e levanta sua mão, mostrando seu dedo do meio, ainda de costas. – Eu já estou morto, Zeppelin.

Toda essa discussão deixara o clima do refeitório tenso que, após a partida de Wires, caímos sobre um silêncio se estendeu no ambiente, pesado e incerto. Enquanto eu refletia sobre o que acabara de ouvir, pensei sobre minhas próprias escolhas e o que estava prestes a enfrentar na Companhia Von Voyage. Eu aceitar fazer parte daquilo não era exatamente minha escolha, pior ainda saber que é uma furada, não vale a pena e minha vida corre risco. Em toda a minha vida, eu sempre me metia em encrencas mas dessa vez na parecia uma via simples, uma brincadeira assim por dizer. Olhei para o Lohan, que parecia “perdido na lua”, seu semblante mostrava como se ele estivesse carregando um fardo invisível. Me aproximei, chamando- o para a Terra e tirando de eu próprio mundinho. Eu só queria alguma orientação, algum indício de como proceder e ouvir o que ele tem a dizer à mim diante dessa enxurrada de informações perturbadoras.

– Blackstar, sente-se. Acho que precisamos conversar. – Nosso olhar se encontrou, e enquanto eu me acomodava na cadeira, Lohan se sentou à minha frente. Havia um peso palpável no ar, uma sensação de que as coisas nunca mais seriam as mesmas. –  que você acabou de presenciar é apenas a ponta da iceberg. A Von Voyage não é o que parece. As missões, os pilotos, as aparências... tudo é cuidadosamente orquestrado para manter a fachada de uma empresa benevolente.

– Mas por quê? Por que eles fariam isso? – digo com incredulidade – Todos amam a Von Voyage!

– Blackstar... O Poder, controle, lucro... Eles estão manipulando a opinião pública, usando-nos como peões em um jogo sujo. Aquela imagem de heróis destemidos é apenas uma ilusão, projetada para manter o público entretido e alheio à verdade.

Eu senti um nó se formar em meu estômago. A realidade que eu tinha aceitado estava desmoronando diante dos meus olhos. Era como se o mundo que eu conhecia estivesse sendo reconfigurado, revelando um lado obscuro que eu nunca tinha imaginado.

– Mas e os outros pilotos? Eles sabem disso? Como podem aceitar essa mentira?

– Muitos deles estão presos, principalmente Olivera. Eles não têm escolha a não ser continuar pilotando, presos em um ciclo vicioso de demandas implacáveis para fechar as fendas no espaço. Alguns desapareceram, outros foram silenciados. Aqueles que conhecem a verdade estão em minoria, e muitos têm medo de falar.

O impacto daquelas palavras ecoou em mim, e uma sensação de revolta e impotência tomou conta. Eu me sentia perdido em um labirinto de enganos e traições.

– Eu não posso ficar em uma organização assim. Preciso sair disso, preciso fazer algo para expor essa farsa!

– Blackstar, eu entender como você se sente, mas sair não é tão simples quanto parece. Pai ser poderoso, influente e tem recursos inimagináveis, mas algo faltava... – Lohan toca em meu ombro – Ele estava botando a vida de um jovem em risco porque ele precisava de alguém poderoso como você, Blackstar. Agora ele pode salvar o mundo com o seu poder da estrela negra para acabar com todas as fendas!

Eu olhei para Lohan, buscando coragem e orientação em seus olhos. A sensação de ser um peão em um jogo maior me deixou, pela terceira vez naquele dia, com a sensação da traição me atingindo como um soco no estômago. As palavras de Wires ecoavam em minha mente, e o fogo da revolta queimava dentro de mim. Olhei fixamente para o alemão, meus olhos ardendo com uma mistura de tristeza e raiva.

– E vão desgastar a minha sanidade igual como fizeram com o Wires?! Você sabia de tudo isso e mesmo assim me trouxe para cá, como se minha vida não valesse nada? – Lohan permaneceu em silêncio, seu semblante nervoso e assustado. Era como se ele não soubesse como lidar com a fúria que eu estava exalando. O ambiente estava tenso, carregado de emoções conflitantes.

– Kelsey, eu... eu não tinha escolha. Eu estar preso, envolvido nesse sistema. A vida do meu amigo é importante! Eles... eles têm controle sobre nós, sobre todos.

Naquele momento, eu não queria ouvir desculpas ou justificações. A traição que sentia era profunda, e a vontade de confrontá-lo fervilhava dentro de mim, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, algo inesperado aconteceu. O Zeppelin desesperadamente alcançou algo em seu bolso, na confusão do momento, eu mal tive tempo de perceber o que era e, antes que pudesse reagir, um guarda se aproximou rapidamente e atirou com um dispositivo que carregava com ele. Com o impacto do dispositivo entrelaçado em todo o meu corpo, acabo que caindo no chão, sinto uma onda de choque percorrer, deixando-me imobilizado e com a minha capacidade de se mover bloqueada, pelo o que sinto, isto seria um controlador de Remini. Lohan parecia tão surpreso quanto eu, como se tivesse agido por impulso. Outros guardas adentraram no local.

– O que... o que você fez? – exclamei a Lohan, que olhou para mim com um olhar assustado, a confusão e a dor estavam começando a turvar minha mente. Dois seguranças me seguraram firmemente, me carregando em seus braços como se eu fosse um objeto descartável. Meus membros não respondiam, minha visão estava turva, e a sensação de impotência retorna.

– Senhor Graf Von Zeppelin, precisamos controlar a situação. Vamos levá-lo para um local seguro.

E assim, fui levado até um quarto e jogado lá dentro como se fosse, novamente um saco de batatas. Minha mente estava em um turbilhão de emoções, minha revolta e indignação lutando contra a sensação de incapacidade imposta pelo dispositivo. A porta se fechou com um estrondo, e fiquei sozinho, lutando para entender o que havia acontecido e como diabos eu iria sair daquela situação. Talvez esse seja o meu fim.