Dominique – Julho de 2011
"Eu já não dei o suficiente, dei o suficiente?
Sempre a tola com o coração mais lento."
- Gilded Lily, Cults
"Deus todo poderoso, que tudo ocorra bem, que eu consiga passar nessa prova, que eu possa orgulhar meus pais e ao Senhor também. Deus misericordioso, essa prova é importante pra mim, eu preciso passar, eu preciso ser bom."
Dominique estava de olhos fechados no carro que balançava na estrada entre Montpellier e a península de Erreur. Seu coração estava aberto para Deus, ele poderia implorar quantas vezes fossem necessárias, não podia parar, seu futuro dependia disso.
Não foi uma grande surpresa para seus pais quando passou da primeira fase da prova para a bolsa de estudos do internato Sainte Jeanne d'Arc. Mesmo na tenra idade, Dominique já se mostrava alguém de vasta inteligência, contudo, não era o suficiente. Seus pais haviam dito que qualquer um com um mínimo de QI poderia passar na primeira prova, comemorar era para os tolos que se garantiam com pouco. Vivienne, sua mãe, prometeu que, se ele passasse na segunda fase com a nota mais alta, ganharia um prêmio. Talvez aquilo fosse uma forma de recompensar o filho pelas noites em claro, estudando com afinco ou um petisco para o cachorrinho obediente que Dominique era. Fosse o que fosse, ele não poderia realmente se importar agora, estava ansioso demais para pensar no que viria depois.
— Repassou aquelas questões que você estava demorando para resolver? — Sua mãe perguntou em um francês polido, olhando pelo retrovisor do carro. Aqueles olhos afiados pareciam analisar cada uma de suas ações e até mesmo julgar de forma antecipada o que ele ainda não havia feito.
Dominique abaixou a cabeça, arrancando a pelezinha ao redor de um de seus polegares. Aquele assunto que sua mãe abordou era um tópico que o deixava ainda mais nervoso. Por mais que seus pais tivessem entrado com aquela matéria avançada pouco antes de sair o editorial da prova, o garoto não tinha tido tanto tempo para fixar na mente.
— Repassei sim, mamãe, mas ainda não estou cem por cento seguro. — Sua voz era baixa, respeitosa. Ousou olhar para cima, para os olhos de Vivienne e só conseguiu encontrar um olhar contrariado, uma tal decepção que não queria que estivesse ali.
— Estude agora.
— Não consigo ler com o balanço do carro, mamãe. Eu fico enjoado.
— Deve ter alguma sacola aí atrás. Vomite nela se precisar. Pegue seu caderno e estude o que te ensinamos.
A mulher regia a vida do filho a punhos de ferro e Dominique era grato pelo esforço que ela empregava em sua educação, mas às vezes só queria que sua mãe pegasse um pouquinho mais leve.
— Okay mamãe.
Quando o carro finalmente chegou nos grandes portões de ferro da instituição, Dominique sentia seu estômago revirar e uma dor de cabeça que parecia despontar desde sua nuca e envolvia suas têmporas num abraço desconfortável. Fechando o livro, sentiu seu coração acelerar, como se pudesse sair do peito. Faltava menos de meia hora, segundo o que seu pai tinha dito há quase cinco minutos atrás.
Primeiro ele faria uma prova discursiva de sessenta questões dos mais diversos assuntos e depois, com a oportunidade de uma segunda bolsa, teria uma prova de aptidão em artes visuais. Pelo menos pintar era algo que ele poderia se garantir e, ao mesmo tempo, respirar aliviado.
— Lembre-se, Dominique: É o seu sonho. É o início da sua preparação para ser padre. Jesus Cristo só tinha 12 anos quando encantou os grandes doutores no templo com sua inteligência. Só um ano a mais que você. Reze para ter um quinto desta e faça a prova.
— Sim, esse é o meu sonho, mamãe, não vou falhar.
— Não prometa coisas que não pode cumprir, Dominique. E nem as faça para receber recompensas no final. — Seu pai disse, estacionando o carro perto de uma árvore.
— Eu vou dar o meu melhor, papai, eu vou sim.
— Não se esqueça da etiqueta também. Quando entrar, só fale em inglês, cumprimente a todos e peça a benção ao padre.
— Vocês não vão entrar? — Ele olhou temeroso. O céu estava lindo do lado de fora do carro, com quase nenhuma nuvem e o cheiro de maresia era um sinal claro dos poucos metros que havia dos rochedos banhados pelo mar Mediterrâneo, todavia, dentro da cabeça de Dominique havia um nevoeiro espesso que se tornava cada vez mais difícil de respirar.
— Nós vamos, obviamente. Mas você estará sozinho, faremos uma visita por todo o castelo, para conhecer. Por isso é sempre bom lembrá-lo das boas maneiras.
Ele assentiu. Parecia que o cinto do carro tinha ficado quatro vezes mais apertado em seu peito quando sua mãe disse aquilo. Ficaria sozinho.
Desceram do carro e caminharam pela longa entrada até a escadaria que levava até a porta. Havia uma mulher, uma freira, parada ali com seu hábito preto e a cruz de madeira que pendia de seu pescoço.
— Boa tarde, fico feliz que tenham vindo. São a última família a chegar. Sou a madre Madeline, coordenadora e professora de estudos religiosos.
O pai do garoto sorriu e colocou a mão no ombro de Dominique, apertando como se para passar confiança.
— Somos Vivienne e Saymon Blanchard. Esse é nosso filho, Dominique. Moramos em Dijon, é um pouco longe, mesmo saindo cedo.
A mulher sorriu.
— Está tudo bem, vocês chegaram a tempo. — Apontou para dentro. — Por favor, entrem e me sigam, vou levar vocês até onde estão os candidatos. O diretor está esperando.
Madre Madeline seguiu na frente, trocando uma ou duas palavras gentis com seus pais, explicando como seria a prova e como seriam distribuídos os alunos para o teste de aptidão. Dominique seguia atrás, olhando para o interior bem requintado. Haviam tapeçarias que cobriam algumas paredes, as janelas dos corredores que dava para o pátio interno deixavam que o garoto visse a grande fonte centralizada que jorrava água pelo jarro de um anjo. O teto era alto e dele pendiam lustres que seguiam de um canto até outro para a iluminação. Eles entraram na biblioteca e seguiram até a escadaria do canto, subindo para o segundo andar onde ficava o auditório com mesas e cadeiras. Havia, no mínimo, vinte alunos ali com seus pais. Todos sentados de frente para um púlpito onde um homem de calças brim pretas e uma camisa clerical do mesmo tom estava em pé com uma pilha de papéis em sua frente. Ele usava óculos redondos e possuía um sorriso bondoso que fez Dominique se sentir um pouco melhor.
— Estes são os últimos, diretor.
— Obrigado, irmã Madeline. Podemos começar então. — Ele pousou as mãos em cima dos papéis e exibiu uma expressão calma. — Sou o padre Credence Mallet e é um prazer tê-los aqui.
†
Jason – Setembro de 2016
"Meu pai colocou uma arma na minha cabeça
Disse: Se você beijar um garoto,
eu te mato".
- Parents, YUNGBLUD
Jason sentia cada pedaço do seu corpo doer e não havia sombra de dúvidas que suas costelas estavam partidas. Jogado no chão de seu quarto, respirava com dificuldades, o lábio partido ardendo muito mais do que achava possível. Seu pai não havia pegado leve daquela vez. A surra não tinha um ar de repreendimento, era mais como as consequências de suas ações quase o matando.
E talvez ele quisesse isso. Talvez ele quisesse tanto morrer que apenas permitiu ser espancado com todo o ódio que Brian Loomis poderia despejar sobre ele.
Tossiu sentindo aquela pontada dolorosa nas costelas, como se elas estivessem cutucando seus órgãos sem qualquer piedade. Tudo estava uma merda, uma grande e destroçada merda, ele tinha que admitir. Seu pai não esperou nem mesmo um dia de sua volta para Londres para lhe dar uma lição por não ser o filho que ele deveria ser.
— Jay...? — Ele escutou a vozinha hesitante de Matthew do outro lado da porta. Era bem provável que todos daquela casa teriam sido plateia para o show ao vivo da surra arreigada de xingamentos que seu pai fez. Fugir de seu irmão seria difícil depois disso.
Estava prestes a usar sua voz rouca e cansada para pedir que ele fosse embora, quando escutou sua mãe do outro lado.
— Deixe-o dormir, Matthew. Jason acabou de chegar de viagem. Já fez suas tarefas?
—Já sim. Eu fiz tudo.
— Então vamos até a sala do piano, toque um pouco para a mamãe.
E os passos foram se distanciando cada vez mais, até que ele ficasse sozinho novamente, estirado no tapete cinza escuro que decorava o chão de seu quarto desde que se mudou para a casa do primeiro ministro, em Westminster, há cinco anos.
A luz do sol entrava pela janela, iluminando as paredes de tom azul petróleo. Fazia tanto tempo desde que estivera naquele quarto que estar ali só lhe causava uma grande sensação de estranhamento. E medo. Ele não queria estar ali, ele não queria ter apanhado pelo motivo mais desproposital existente, ele não queria ter ouvido as palavras ruins de seu pai sobre ele e sobre Even principalmente. Saber que havia uma possibilidade de nunca mais vê-lo lhe assustava como o inferno. Seu pai havia dito que Even tinha aceitado o dinheiro para manter as coisas em sigilo, para nunca mais ver ele. Even não teria feito isso, certo? Even o amava, assim como Jason o amava infinitamente. Ele só precisava enviar uma mensagem para ter certeza de que tudo estava bem e qualquer dor seria esquecida.
Jason se apoiou nos cotovelos e se sentou lentamente, gemendo de dor. Era um milagre que seu pai não tivesse quebrado algum membro seu, tamanha violência que empregou nos golpes de punho fechado.
Seu celular estava jogado embaixo da cama pelo fato de tê-lo soltado ao ser atingido pelas costas. Ele segurou em sua mão, a tela trincada, mas ainda dava para usar. Abriu o aplicativo de mensagens e correu até a última pessoa para quem tinha enviado algo há três dias. Três dias atrás onde tudo ainda estava normal, onde nada poderia dar errado entre ele e Even, envolvidos em uma bolha de amor onde acreditavam que iriam permanecer por muito tempo.
Respirou fundo e encostou na cama, clicando no nome de seu namorado e relendo a última coisa que havia enviado para ele. Era uma bobagem qualquer, não uma despedida. Eles nem mesmo se despediram. Jason fora arrancado da bolha, arremessado da órbita e mandado de volta para um país do outro lado do oceano. Sem seus amigos, sem seu padrinho e sem seu Even.
Enviou um "oi" e esperou.
Nada.
Por vários minutos, apenas um grande nada.
Então Jason resolveu discar. Tirar logo a dúvida. Onde quer que estivesse, mesmo em aula, Even iria atender.
"Desculpe, esse número está fora de serviço."
Fora de serviço.
Fora de serviço?
Jason tinha sido bloqueado. Irrevogavelmente bloqueado.
Seu coração estava acelerado. Sua mente estava nublada. Even tinha bloqueado seu número? Não era possível. Tinha que ser algum problema do chip ou do seu próprio celular. Ele não podia ter sido bloqueado pela única pessoa em quem confiava que estaria ao seu lado. Ele esperava aquilo de qualquer um de seus amigos, até de seu padrinho — o homem já não tinha mais idade para se meter nos problemas de um adolescente idiota —, mas não de Even.
Jason arremessou o celular e se encolheu, abraçando os joelhos. E chorou. Chorou toda a dor que ele estava sentindo, física e emocional. Estava exausto. Não queria acreditar. Não ia acreditar. Não importava, ele iria esperar. Esperaria até Even se sentir seguro para entrar em contato, para que eles pudessem conversar, falar sobre seus sentimentos, para que Jason pudesse ter a certeza que seu garoto estava bem, apesar de tudo.
As dores em seu corpo pareceram triplicar. Ele queria morrer, ele queria que Deus fosse bom e uma única vez atendesse seus pedidos. Que se nada fosse dar certo, que pelo menos ele pudesse desaparecer daquele mundo tendo o sorriso de Even como a última imagem bonita que ele viu. Sua última boa memória. Porque viver novamente com seus pais era um pesadelo e ele sabia que só estava começando.
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