Capítulo 7 ― Comunicação não é o meu forte
São Paulo, 2023
Se o feed de fotos de Yue já era uma pequena desordem de imagens aleatórias, seus stories eram como uma caça ao tesouro. A foto de uma mão segurando um copo de pingado com o relógio marcando seis da manhã, um adesivo de protesto colado a um poste já desbotado e enrugado pelas chuvas, um par de botas apoiadas uma sobre a outra perto do meio-fio.
Tomás franziu o nariz quando viu essa última. Parecia ter sido tirada por alguém sentado no banco de um ponto de ônibus. Yue tinha acordado cedo, então imaginava que fosse algum dos bicos que ele fazia e suspirou.
Era sábado, mas não um com contação de histórias como tinha sido o anterior. Saiu do hospital algumas horas antes e passou em sua cafeteria favorita antes de ir para casa. Ainda tinha um dos croissants num prato na mesinha de cabeceira enquanto se esticava preguiçosamente na cama do pequeno quarto. O kare pan que trouxe para a vó esfriava em um pacotinho no micro-ondas esperando que a Pedacinho de Céu fechasse.
Deixou o celular de lado e já quase se rendia aos olhos pesados clamando por um cochilo quando a tela se acendeu. Resgatou os óculos recém-colocados cuidadosamente ao lado do travesseiro, ajeitando-os no rosto enquanto procurava a origem da notificação: uma mensagem de Lótus. Um vídeo.
Não qualquer vídeo, mas um que fez o rosto de Tomás ser tomado por um rubor surpreso que evoluiu até um riso divertido.
Sentado sobre o grande polvo de pelúcia, Lótus ondulava o quadril. O cropped curto quase deixava à vista as flores que circulavam as cicatrizes da mastectomia, e destacava a curva alta de sua barriga. A calcinha preta, com as laterais bem erguidas, marcava bem o quadril. Ele gemia baixinho a cada movimento, os olhos tão presos na câmera que passava a impressão de estar olhando diretamente para Tomás. Eram cinco minutos daquilo, os gemidos ficando mais molinhos até terminarem em um grito rouco, as coxas grossas apertando a pelúcia em espasmos.
― Você não tem juízo, sabia? ― Enviou por áudio, instantes antes de tomar um pedaço de croissant entre os dedos e enfiá-lo na boca, dando play no conteúdo mais uma vez.
“Nunca foi uma das minhas qualidades 🌸”, o celular o notificou da resposta, seguida de outra que dizia “gostou do presente, bichinho? 🤭”
“Gostei. Posso salvar esse? 🥺”, Tomás digitou, já sabendo a resposta.
“Não 💕”
No minuto seguinte, o vídeo tinha desaparecido do histórico de mensagens e Tomás fez um bico, aproveitando a cara para enviar uma selfie com a legenda “já sinto falta do inesquecível”.
Rolou na cama, deitando de bruços, abraçado ao coelho de pelúcia cor-de-rosa que usava como segundo travesseiro.
“Vai ficar em casa hoje? Num SÁBADO?”, Lótus perguntou. Tomás riu. Era assim tão previsível? “E o omegaverso?”, emendou.
“Disse que tem compromisso”, Tomás respondeu de imediato. Ele e Vi trocaram mais algumas mensagens, mas entre suas coisas da faculdade e os corres dele com a loja, não tinham conseguido uma chance de sair de novo ainda. “Tipo você com seu jantar chique. Acho que vou esperar a vovó e ver se ela quer pedir lámen”, acrescentou na mensagem seguinte.
“Nenhuma novidade do contador de histórias? 😑”
Nada, Tomás pensou em responder. Uma ou outra curtida em imagens de café e em uma foto que postou de si mesmo uns dias antes, mas nenhuma palavra.
Voltou a abrir o Instagram, por desencargo. E então arqueou as sobrancelhas. Ele tinha postado uma imagem nova, que os dedos curiosos de Tomás fizeram logo o favor de abrir.
Um pôster de evento informando o show de uma banda naquela noite perto do Anhangabaú. O bar se chamava Gaveta. Tomás pendeu a cabeça. Era um nome peculiar. No pôster promocional, o slogan dizia “Gaveta: o bar de todas as tralhas”. Aquilo quase o fez rir. Principalmente quando Yue postou uma nova foto de um copinho de cerveja apoiado sobre o balcão de um bar com a legenda acompanhando a curvatura da boca do copo: “chegando cedo pra ser tralha”.
Tirou print dos dois posts, reabrindo a conversa com Lótus para enviá-las seguidas de um “!!!”.
“Parece que sabemos onde está Wally hoje 🔎”
Sabia. Mas o que faria com essa informação ainda era um limbo. Tomás mastigou o interior do lábio. Então, convencido a evitar seu próprio tique, se serviu do último pedaço de croissant.
“Eu devia ir lá? Não vai ser muito stalker?”
“É super stalker. Eu acho sexy 🔥”
“Não vou.”
Voltou a rolar na cama, trazendo junto a pelúcia de coelho, apertando-a contra o peito. Ponderou o que as pessoas diriam sobre a situação. Lótus já tinha deixado claro que achava que ele deveria ir; sua avó resmungaria que Tomás devia estar pensando mais na faculdade e menos em safadeza; Bernardo, o barista simpático da cafeteria, provavelmente emendaria alguma frase pronta no estilo “siga seu coração”. Tomás contemplou a única certeza que podia tirar disso tudo: a de que precisava fazer amigos. E suspirou, derrotado.
“Bichinho, deixe de leriado que se ele não quisesse ser stalkeado, não tinha postado a informação tão de bandeja assim também, né? Se ele postou sobre esse show, então ele ESPERA que as pessoas vejam e vão. É divulgação o nome 🌿”
Fazia sentido. Não tinha sido o convite que esperava, mas era ― de certa forma ― um convite para um evento. Mesmo que fosse um geral e que corresse o risco de chegar lá e ser apresentado a algum namorado ― ou namorada ― de Yue, que a essa altura já deveria saber sobre o estagiário louco do hospital que ficava dando indireta com olhares. Se fosse o caso, sempre poderia fingir uma dor de cabeça e voltar para casa. E depois nunca mais passar na ala infantil quando fosse dia de contação de histórias.
No máximo, teria um mico para compartilhar com Lótus e com os futuros amigos que faria quando se convencesse a isso.
“Talvez eu vá”, Tomás enviou, abrindo um sorrisinho. “E se der muito errado, você me manda doces pra eu me sentir melhor 🥺”
“Mando! 🍫”, respondeu. A segunda parte demorou alguns minutos para chegar. Veio quando Tomás já separava uma roupa do armário, esticando-a sobre a cama em um teste:
“Não esquece de passar aquele perfume que te deixa mais gostoso 💞”
━ • ✿ • ━
― Yue, cadê o cara? ― Suzano perguntou, batucando os dedos sobre o tampo do balcão. Tinha as baquetas meio enfiadas no bolso, como um adereço.
― Ótima pergunta ― ele respondeu. A forma como mordiscou a unha do polegar em seguida foi a única coisa que o impediu de xingar o ar. Yue deu um último gole no copo de cerveja e se virou, chamando o baterista com a mão para voltarem ao camarim. ― Já resolvi. O irmão da Mina tá vindo cobrir.
Deu uma última checada no celular antes de enfiá-lo no bolso e passar as mãos pelas laterais do cabelo. O coque pequeno no alto da cabeça deixava o undercut bem à mostra, assim como os alargadores em ambas as orelhas, um deles espiralado, comprado de um artesão no calçadão da Paulista em um domingo qualquer.
O espaço do Gaveta era pequeno e abafado, o que fez o caminho até o camarim ser curto, embora tivesse precisado desviar das poucas pessoas que já tinham chegado para ver o show. Desceu a rampa à luz baixa, passando pelo espelho horizontal e pulando de uma vez os três degraus que levavam ao palco e à salinha lateral, com parede descascada, que servia como camarim.
― Como tá o rolê lá fora? ― Mina questionou sem tirar os olhos do baixo.
― Quente. ― Havia uma sugestão de sorriso em sua boca quando a garota o encarou. ― Vai encher, fica tranquila. Seu irmão tá chegando?
― Parece que enfiei GPS no cu dele, por acaso?
― Quer que eu responda? ― Yue ergueu as sobrancelhas, desviando numa gracinha do copo de plástico que ela atirou e sequer chegou perto dele.
― A gente tá brincando de “só perguntas”, porra? ― Mina riu, coçando o nariz num gesto bruto. ― Ele já deve tá no metrô. Fica sussa ― acrescentou, se ajeitando na poltrona velha perto do espelho iluminado. Abriu a boca para tecer um comentário, mas a expressão no rosto de Yue indicou que não era o melhor momento. ― Ow, se precisar relaxar, pede mais um litrão. Ou senta aqui no meu colo que te faço um cafuné. ― Ela segurou o riso. De outra cadeira, Yue a olhou pelo canto dos olhos sem responder.
― Já vão começar a putaria sem mim? ― Suzano anunciou a própria chegada com o vozeirão, se jogando do lado de Yue.
― Que putaria? ― Mina rolou os olhos. ― Com o Yue? Eu seduzo o Papa antes desse aí.
― Cara, mas e aí? Chamou seus parça pra colar? ― Suzano abriu na mão a latinha de coca que tinha pegado antes de entrar, bebendo o primeiro gole. ― Uns contatinho?
― Eu chamei minha tia, mas ela acha vocês feios demais pra perder tempo.
― Vai se foder ― Mina deu um chute no ar que passou perto do seu joelho. ― Su, taca coca nesse fodido!
― E gastar minha preciosa coquinha com isso? Deixa ele morrer seco e sem amigos.
― Vocês falam demais. E tocar, tocam? ― Yue arqueou as sobrancelhas, se levantando num movimento firme que os outros dois seguiram no automático. O irmão de Mina, um moleque alto e espinhento de sorriso torto, entrou esbaforido no camarim quase na mesma hora. ― Bora passar som.
Tomás chegou por volta das onze da noite e o bar já era uma massa de gente. Tinha ouvido em algum lugar a música que escoava para fora, vinda das caixas de som.
— Essa é a banda de hoje? — perguntou para um moço que fumava na calçada, enquanto aguardava sua vez na curta fila de entrada.
— Esse é o System of a Down, cara.
— Ah, claro. — Assentiu, e pressionou com os dedos a haste dos óculos, desviando o olhar para se poupar da vergonha.
O letreiro de neon emprestava tons fantasmagóricos à fachada escura. O “V” no meio do nome piscava como se já fosse Natal e emitia estalinhos suspeitos. Alguns bêbados surgidos de outros bares nos arredores do viaduto se misturavam entre os pequenos grupos que matavam o tempo de um cigarro nas calçadas, dividindo batatas fritas oleosas demais e restos de bebida.
“Só tem metaleiro aqui 🥺 eu to destoando muito”, enviou para Lótus.
“Bom que aí tu chama atenção que só 🌸 nem vai ter como o lesado achar que tu não tá aí por causa dele!”
Tomás franziu o nariz, se impedindo de torcer o rosto em uma caretinha para morder o interior da bochecha. No meio de tantas camisetas de bandas, ele próprio estava vestindo uma blusinha de tricô leve cor de creme, com as mangas abauladas até perto dos pulsos. Tinha escolhido um colar de gatinho preto, que se destacava sobre o tecido, e uma sombra brilhante sutil que aparecia por trás dos óculos redondos só quando vista de perto.
― Tá perdido, lindo?
A moça na porta, alta como um poste e de cabelos raspados, o encarava com uma preocupação genuína. Tomás achou que ela tinha cara de ser parte da equipe da casa, no que estava certo.
― Eu vim pra ver a Canto da Sereia ― respondeu com um sorriso. Pelo nome da banda, não tinha imaginado que fosse atrair tantos… Será que o termo certo para aquele estilo seria góticos? Bem, então talvez sua escolha de colar tenha sido minimamente certa. ― É aqui, não é?
― É aqui mesmo. ― Ela parecia segurar uma risada e fez um gesto amplo em direção à entrada.
Com a comanda na mão, Tomás se espremeu no mar de pessoas para chegar até o bar. Lá dentro, a música explodia nas caixas de sons em graves incômodos e o ar-condicionado não dava conta de tanta gente. O bar tinha umas poucas opções, a maioria saída de garrafas e latinhas.
― Nós fazemos martini com azeitona ― respondeu o barman quando Tomás perguntou sobre drinks. ― Te faço um?
― Por favor. Dose dupla ― Os olhos de Tomás quase fecharam quando ele sorriu. Abanava a si mesmo usando a gola da blusa. ― Você sabe que horas a banda vai entrar?
― Em algum momento entre agora e três da manhã ― o barman brincou, gargalhando diante do olhar assustado de Tomás. ― Eles tiveram um probleminha com o guitarrista, mas já tá resolvido. Lá pra meia-noite os bonitos colam no palco. Primeira vez na casa? ― Ao ver Tomás concordar, ele riu. ― Era pergunta retórica. Vou te dar umas batatinhas pra aguentar a brincadeira.
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