Eu estava distraído há algum tempo, precisava admitir. Com o olhar perdido nas figuras dos vitrais coloridos, só percebi estar fora do tom quando Angelina deu um cutucão nas minhas costelas com o seu cotovelo, me assustando. Perdi a batalha de encarar contra Louis-Marie Grignion e voltei a fazer os solos contratenores em Adeste Fideles.
No final da última repetição, o padre Credence sorriu para nós e abaixou as mãos, o coral terminando a canção lentamente até que todos ficassem em silêncio. Angelina aproveitou aquele momento para tomar um grande gole de água e depois me ofereceu. Aceitei, cansado. Estava há tanto tempo ali em pé e usando minha voz que eu só desejava poder voltar para o quarto e esticar as pernas em cima da cama, contudo, ainda assim era uma honra poder cantar para o Senhor em um evento tão grande quanto Seu aniversário. Era desafiador, requeria muita dedicação e esforço, mas o final era sempre recompensador.
Eu amava o Natal, era meu feriado favorito de todos os outros existentes. Não havia data mais querida no meu calendário. Todo o simbolismo, a magia, as luzes, as canções, a grande árvore enfeitada, o presépio e a missa. Cada pequeno detalhe transformava o dia 25 de dezembro no melhor dia do ano e por essa razão eu sempre me empenhava no coral natalino, porque o menino Jesus merecia todo o meu esforço.
Padre Credence fez um barulho com a garganta e colocou a batuta em cima do púlpito que estava ao seu lado. Tinha sido um longo final de tarde, 1h e 30 minutos ininterruptos de ensaio para uma noite que ainda estava longe, mas que não poderia ter falhas.
"Não se comete erros quando o assunto é adorar o Senhor.", mamãe sempre me dizia isso.
Troquei o peso para a perna esquerda e senti a vontade de bocejar vindo forte, como uma tentação inapropriada que te faria pecar. O nosso sacerdote esperou que todos fizessem silêncio antes de abrir seu sorriso acolhedor e esconder as mãos nas costas.
— Acho que é o bastante por hoje. — Ele disse e parte de mim se sentiu aliviado. A outra parte me repreendeu por isso. — Os mais novos estão progredindo cada vez mais nas canções de maior dificuldade e logo poderão acompanhar seus veteranos sem qualquer problema.
Angelina — Lina, minha melhor amiga, que tinha entrado para o coral junto comigo há dois anos — sorriu para mim e entrelaçou seu dedo mindinho com o meu, apertando. O sentimento segredado entre nós dois. Éramos os mais velhos agora, o exemplo a ser seguido. Demorou, mas havia chegado nosso momento de acolher e auxiliar aqueles que estavam entrando agora.
— Estão dispensados para se prepararem para o jantar. Vão em paz na companhia de Nosso Senhor Jesus Cristo. — Ele nos abençoou e entoamos um "amém", como era costume. Todos começaram a pegar suas coisas e sair, mas eu sentia o olhar do padre em mim. Eu sabia que ele esperava que eu ficasse e mesmo que aquilo me deixasse ansioso, me sentei nos bancos da pequena arquibancada, deixando que a capela ficasse vazia.
— Fico feliz que ainda esteja aqui, Dominique. Eu gostaria de falar com você, se não for incômodo.
Angelina me olhou com uma sobrancelha arqueada, me perguntando pelo olhar sobre o que se tratava. Só acenei com a cabeça, para que ela deixasse pra lá e fosse embora. Que estava tudo bem. Ela pegou a garrafa de água e se curvou perante ao altar antes de sair, desaparecendo pela porta lateral.
Estava caindo uma fina garoa do lado de fora, eu conseguia escutar as gotas de chuva se chocando contra as telhas do teto baixo da capela. Padre Credence arrumava as partituras dentro de um fichário preto de couro junto dos papéis com as letras das músicas que ele nos dava para passar 15 minutos antes do início dos ensaios. Continuei sentado, brincando com meus dedos escondidos pelo suéter azul escuro do uniforme de inverno. Mamãe sempre comprava números maiores porque ela era convicta de que um servo de Deus nunca marcava seu próprio corpo como uma carne de açougue à mostra. Mas talvez ela só soubesse da minha grande propensão para engordar.
Estar na presença daquele homem deixava meu coração acelerado, um nervosismo que irradiava do meu peito e comprimia minha nuca. Ele era o tipo de pessoa admirável que me deixava com vergonha de estar sozinho na sua presença, porque eu era apenas um humano comum, com falhas e acertos, mas que buscava ser tão bom de coração quando padre Credence.
Mastiguei minha bochecha ao ponto de sentir o gosto de ferro na boca. Olhava para o chão, para as madeiras pregadas num tom terroso, quando ele me estendeu o fichário e sorriu, segurando o púlpito móvel com a outra mão. Rapidamente peguei o objeto e fiquei de pé, soprando para cima a franja que caía em meus olhos.
— Podemos conversar enquanto caminhamos? — Assenti com a cabeça e fiquei do lado dele quando padre Credence começou a andar para a sacristia. — Obrigado por ter ficado, não sabia como pedir para que aguardasse sem que os outros pudessem pensar que estou te favorecendo na minha aula. — Ele brincou, mas aquilo era terrivelmente sério para mim. Nada seria digno de manchar a honra daquele homem, era definitivamente um pecado desconfiar que Credence pudesse ser menos do que uma pessoa correta.
— Non acho que poderia me favorecer, prêtre. O senhor é um homme muito justo. — As palavras se embolaram com a rapidez que eram pronunciadas e se não tivéssemos a mesma língua materna, tinha certeza que ele não entenderia metade do que eu disse.
O padre sorriu para mim, tocando em meu ombro, apertando aquele local.
— Não precisa ficar nervoso, Dominique. Somos apenas nós dois aqui, em uma conversa amistosa.
Apertei o fichário contra meu peito e desviei o olhar para os meus pés, prestando mais atenção na madeira rangente do piso da capela do que no fato dele ainda estar me tocando. Para mim, era como se padre Credence possuísse uma santidade que me atraía como uma mariposa para a luz.
— Vou te contar uma pequena história, tudo bem? Algo como um conselho de amigo, de alguém que se preocupa com você. — Ergui meus olhos para ele, definitivamente interessado. Padre Credence trocou o púlpito de mão e começou a procurar suas chaves no bolso da calça social; o barulho delas se chocando ecoou no silêncio.
Paramos na frente na porta da sacristia, um lugar que eu conhecia bem pelo meu tempo como coroinha, alguns anos antes. Ele entrou e deixou o púlpito perto de uma mesa. Pegou o fichário das minhas mãos estendidas e colocou numa prateleira alta que ficava ao lado do armário de madeira responsável por guardar as casulas de rito litúrgico. Quando saímos, ele voltou a trancar a sala e retomamos a nossa caminhada.
— Quando eu era mais novo, — começou — eu não tinha muita fé. Ia para a igreja porque a minha mãe queria. Participava da comunidade porque o meu irmão mais velho participava e, quando se tem irmãos mais velhos, ou você quer ser como eles ou quer fugir dos estereótipos. E naquela época eu faria qualquer coisa para ser como meu irmão Pierre.
Eu sabia um pouco sobre a história de padre Credence, porque ele mesmo já havia nos apresentado sua irmã, uma enfermeira de olhar caloroso que trabalhava no abrigo em que éramos voluntários de sábado, porém, 'Pierre' era uma nova peça para se encaixar na história do homem que estava ao meu lado.
— Sabe, Dominique, nem todas as pessoas nascem com o chamado de Deus. Não é uma coisa que se possa forçar. Ela vem de dentro. Do seu coração. É por isso que é chamada de "vocação". — Ele me olhou e eu apenas acenei com a cabeça. — Minha mãe é uma boa mulher. Sempre colocou Deus, seus filhos e meu pai em primeiro lugar. Ia pra igreja, participava das celebrações, se envolvia no meio. Era alguém muito admirada por todos. Mas sempre foi uma pessoa muito teimosa.
Nós nos sentamos em um banco em frente ao altar e eu me virei para que ele pudesse me ver e ter a certeza de que eu estava prestando atenção.
— Ela colocou na cabeça que Pierre iria ser padre. E eu também pensei que ele seria. Veja só, meu irmão era um homem correto, um homem muito bom. Eu até pensei que ele poderia ser canonizado algum dia.
Quando olhei para ele, padre Credence tinha uma expressão carinhosa no olhar, mas também, perdida no tempo.
— Minha mãe disse: "Pierre, você pode estudar, desde que seja padre." Ela nunca quis aprender inglês, sempre amou a língua materna. Então imagine aquela mulher baixinha com uma colher de pau na mão e um olhar afiado que partiria laranjas ao meio?!
Ele riu e eu me senti livre para rir também. Parecia muito doméstico aquilo. Aconchegante. Mamãe não era assim. Ela era a mulher mais rígida do mundo, muito mais que a madre Madeline quando nos repreendia. As vezes eu só queria que ela sorrisse mais, mas tudo bem, mamãe estava certa em ser alguém casca grossa, era tudo pelo meu aprendizado, para que eu fosse alguém melhor.
— Pierre queria estudar muito. Sempre sonhou em ir para a faculdade. Mas ele também queria ser um exemplo para mim e para Catherine, então ele aceitou aquela condição que nossa mãe impôs. Mas como eu falei: Servir a Deus é uma vocação, não uma imposição.
O olhar de padre Credence foi substituído por expressão de pesar e aquilo me deixou com medo. Não parecia uma história feliz como as que ele sempre me contava.
— Meu irmão se formou como o melhor da turma. Estava tudo certo, mas ainda faltavam três anos de estudo para que ele fosse padre. Três anos esses que ele deveria focar nos seus objetivos. Mas aquilo mexeu com Pierre, deve ter sido uma pressão muito grande para ele tudo aquilo. Então ele fugiu. Deixou uma carta dizendo que precisava de um tempo para se reconectar com Deus, mas que amava nossa família e que logo estaria de volta. — Ele suspirou e me olhou. Seus olhos me capturando, não deixando que eu perdesse nada. — No dia seguinte acharam o corpo dele boiando no rio Thiou.
Arregalei os olhos e escondi a boca com uma mão. Eu não estava preparado para o rumo que aquela história estava tomando. Parecia tão abrupto. Murmurei um 'sinto muito' e estendi minha outra mão, segurando a dele com força. A palma quente e calejada devolvendo o aperto que eu dei. Contudo, ao mesmo tempo que eu esperava uma espiral de tristeza pela revelação que ele havia feito, padre Credence só sorriu agradecido, como se aquela dor já não o afetasse mais.
— Pierre partiu de uma forma condenável, Dominique, e você talvez pense que naquele momento eu me rebelei contra Deus. Mas foi ali que eu me encontrei com Ele. — Falou, a voz branda e cheia de sentimentos que me envolvia como uma carícia afável. — Deus foi quem me ouviu na dor, quem tocou meu coração. Quando eu pensava em meu irmão, apenas lembrava com carinho dos nossos bons momentos juntos. Não existia mágoa, porque Deus se tornou meu refúgio. E então eu abandonei tudo. Meus amigos, a faculdade, a vida mundana. Entrei para a formação sacerdotal ainda naquele ano e decidi que não seguiria os passos do meu irmão, mas sim o que Cristo havia preparado para mim.
Pierre era uma alma perdida e era triste pensar nisso. Ele era alguém que não poderia nem ter o luxo que rezassem por sua alma no purgatório. Eu me sentia mal por ele e pelo padre, por perder alguém que ele tanto amava. Mas aquela havia sido uma escolha de Pierre: ao invés de servir à Deus, ele escolheu entregar sua alma para o diabo e agora estava longe da salvação eterna.
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