— As pessoas... Elas olhavam estranho para você... Por causa dele? — Perguntei meio incerto se aquela era uma boa coisa para se abordar em uma conversa como aquela.
Lembrei de uma discussão que mamãe teve com tia Mayleen. Ela me disse uma vez que as pessoas a olhavam estranho na igreja pelo comportamento herege que sua irmã tinha e que aquilo a envergonhava muito. Coisas assim podiam mexer no equilíbrio familiar, eu sabia muito bem e talvez o padre Credence tivesse passado pelo mesmo. Se fosse assim, talvez eu pudesse entender ao menos um pouco sobre como ele se sentir.
Eu amava tia Mayleen. Ela sempre fora uma mulher doce e gentil e gostava de me dar doces e presentes e fazer com que eu me sentisse especial. Eu a amava porque Deus é amor e nós sempre devemos amar o próximo como a nós mesmos, mas nunca consegui entender porque uma mulher tão boa como ela não seguia a Cristo corretamente. Minha tia era a ovelha negra que precisava buscar a Deus antes que fosse tarde demais, mas por algum motivo, ela não buscava.
— Olhava sim. — Ele respondeu e sorriu. — Mas temos que lembrar o que é mais importante para nós, Dominique. Quem importa mais? Deus ou as pessoas passageiras em nossas vidas?
— Dieu.
Ele fez carinho no dorso da minha mão, me acalentando, como sempre fazia, porque padre Credence sempre precisava se assegurar de que eu estava bem, mesmo que ele fosse a pessoa a ser consolada.
— Só que nem tudo é como nós esperamos, sabe? Nos meus primeiros anos como padre, tudo ocorreu bem. Conquistei a confiança do povo, sempre tinha ensinamentos para passar nas missas. Eu cuidava de uma pequena paróquia em Annecy, os resquícios da morte do meu irmão já não eram o assunto da comunidade, foi esquecido aos poucos. Minha família estava bem. Mas então veio a morte do meu pai e tudo pareceu perder a cor novamente.
— Do que ele morreu? — Não pude refrear minha curiosidade — mamãe sempre me dizia que ser curioso era um mal e que Deus não gostava de pessoas mexeriqueiras —, mas padre Credence parecia não ligar, na verdade, ele até mesmo incentivava minhas perguntas intrometidas.
— Meu pai era fumante, — ele falou. — Acho que um dos únicos defeitos dele. Fumava maço atrás de maço. — Credence — de forma íntima pela qual eu o chamava apenas em pensamento — suspirou e olhou para nossas mãos unidas. — No começo era apenas um mal hábito de um velho homem, mas depois do que aconteceu com Pierre, ele se transformou em uma pessoa com um vício incessante e vícios são coisas ruins, Dominique, no que quer que seja.
Concordei com a cabeça, sem tirar meus olhos dele. Uma vez mamãe havia me batido por aceitar uma barra de chocolates que tia Mayleen havia me dado em segredo. Eu não conseguia mentir para mamãe, então mostrei pra ela, até ofereci dividir se ela me deixasse comer. Mas ela ficou brava. Disse que eu ficaria viciado no doce e que aquilo era pecado aos olhos do Senhor. Eu nunca mais toquei em um chocolate. Tinha medo de ser fraco e me viciar, acabando por magoar Deus com meus atos egoístas.
— Depois que nossa família passou pela segunda perda, pregar a palavra já não parecia mais tão prazeroso. Era como se meu proposito tivesse se perdido. E eu tive medo. — Credence me olhou com seriedade e eu sabia que precisava ouvir suas palavras sábias e guarda-las bem. — O medo e a luxúria são armas de Satã. Elas são usadas para te fazer desviar dos caminhos que o Senhor preparou. Nunca deixe que isso te contamine, Dominique.
— Eu non vou, prêtre.
— Eu pensei, naquela época, que tinha cometido um erro. Que eu era como meu irmão e que a vocação não estava em mim. Mas havia um homem, o arcebispo de Montpellier, que viu um broto onde eu pensei que só havia uma terra arenosa e infértil. Ele estava procurando um padre para dirigir esse instituto e também que pudesse cuidar da comunidade que fica aos arredores da costa, trazendo Cristo para aqueles que moravam nas vilas e não podiam ir frequentemente para a cidade grande. E eu fui chamado para uma conversa, como uma entrevista, mas sem toda aquela pressão para passar.
Ele soltou minha mão e eu segurei forte a barra do meu suéter, sentindo meus dedos suados. Do lado de fora a chuva começou a se intensificar e eu podia ver as gotas que escorriam do lado de fora das imagens sagradas, gravadas no vitral.
— O arcebispo me deu a opção de vir para cá e eu já queria ir embora de Annecy há algum tempo. Então vim com Catherine, enquanto mamãe continuou sendo parte ativa da nossa antiga paróquia. — Disse. — No começo eu apenas fazia minhas funções, dirigindo o internato e celebrando as missas, mas comecei a me interessar pelo latim, um idioma que eu já era familiarizado pela minha formação sacerdotal e resolvi substituir o antigo professor que se aposentou. E foi aqui que eu achei meu novo propósito, Dominique. Quando o arcebispo foi atrás de mim, há seis anos, eu pude sentir que era um chamado de Deus.
— Dieu sabe de tudo, prêtre. Ele já devia saber que o senhor seria une personne muito boa para nós, por isso o enviou para cá. — Padre Credence enfeitou seu rosto com um sorriso e bagunçou minha franja, fazendo com que ela caísse em meus olhos.
— Eu amo o que eu faço, Dominique. E agora eu sei que meu dever é fazer jovens como você encontrarem seus propósitos através da palavra. E assim como viram algo em mim e insistiram que eu podia fazer a diferença, eu vejo algo em você também. Eu me lembro quando eu comecei a dar aula de latim e você tinha dificuldades. Lembro que disse para mim que tinha medo de não ser bom o suficiente para ser padre. Mas isso é bobagem. Sua vocação não é medida pelo que você sabe ou não, mas pelo que você tem dentro do peito.
O padre se levantou e eu demorei um pouco, porque meus joelhos estavam dormentes por ter ficado sentado depois de tanto tempo de pé.
— Você é capaz, Dominique. Capaz de fazer grandes coisas dentro da igreja. E eu me vejo em você. Não o meu irmão, o que ele era antes, mas a mim. A pessoa que deixou tudo para servir à Cristo. Lembre-se: Iesus est ego sum via, veritas et vita. Significa que Jesus é o caminho, a verdade e a vida. E ele sempre vai te guiar, mesmo que você pense que o caminho que está trilhando é tortuoso. Só precisa ter fé e seguir seu coração. — Ele apertou meu ombro e olhou no fundo dos meus olhos de uma forma intensa que fez um turbilhão de sentimentos passarem pela minha mente. Senti um arrepio subir pela minha espinha. — Sabe que eu só falo isso pelo seu bem, não sabe? Deus não faz distinção dos seus filhos, mas se posso dizer um segredo que ele me contou, é que há algo muito especial guardado para você. O tempo dirá.
Segurei sua mão e beijei o dorso, dando um sorriso onde tentei passar minha gratidão por ele ter compartilhado um pedaço de sua história comigo. Ao mesmo tempo que estar com ele me deixava nervoso, eu saía 20 vezes mais leve e com aprendizados que eu levaria para a vida.
— Merci beaucoup, prêtre. Eu darei o meu melhor para orgulha-lo.
— Sei que sim, Dominique. Você sempre faz tudo o que pode para agradar a Deus. Não pense que seu esforço não será recompensado. Agora vá para o prédio principal antes que a chuva piore. Tenho certeza que Angelina deve estar te esperando.
— Sua benção, por favor.
— Deus te abençoe, Dominique.
Beijei novamente a mão do padre, como um sinal de respeito, ensinado por mamãe desde que eu tinha idade o suficiente para entender o significado daquele ato, e sai pela porta lateral, voltando para dentro do instituto.
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