Quando encontrei Angelina no hall da grande escadaria, ela estava conversando com um dos alunos que dávamos reforço às segundas e quartas. Ela falava sempre com um sorriso nos lábios e eu sabia como Lina conseguia ser amigável e acolhedora daquela forma. Assim que nossos olhos se encontraram ela se despediu da criança e caminhou até mim, entrelaçando nossos braços enquanto balançava sua garrafinha com a outra mão. Eu gostava daquilo. Do contato. Me sentia seguro e confortável quando podia estar com ela e com Hanjun.
— Me deixa tão curiosa essas suas conversas particulares com o diretor. Parece tão secreto e digno de conspirações.
Dei uma risada baixa.
— A curiosidade matou o gato, Lina, e teorias da conspiração são coisas da cabecinha do Hanjun. Você está passando tanto tempo com ele que está ficando contaminada. — Ela também deu uma risadinha e rugas se formaram na ponte de seu nariz e no canto de seus olhos. Eu a achava tão linda. Angelina fazia totalmente jus ao significado do nome que fora batizada.
— Eu posso conviver com o fato de ser uma gatinha curiosa, mas é um desrespeito você dizer que estou ficando louca igual o Hanjun, Domi. Tenhamos limites traçados aqui.
Os alunos nos cumprimentavam enquanto passavam por ali e desapareciam escada acima. Desenrosquei meu braço do de Lina e ela sentou na mureta, enquanto eu me encostei no arco de pedra à nossa direita, esperando Hanjun chegar com nossas mochilas.
Me encolhi em meu suéter, sentindo a brisa gelada que vinha de fora passar pelo meu corpo e me congelar até os ossos. Não era inverno ainda, mas as noites já eram frias pelos ventos da maré e os dias chuvosos sempre tendiam a deixar alguém gripado.
— Domi, aconteceu alguma coisa? Eu sei que você gosta de desabafar com o padre, mas você esteve estranho hoje e agora parece que uma grande pedra saiu de cima de você.
Me agachei na frente dela, abraçando meus joelhos e apoiei o queixo em cima deles, tentando evitar seu olhar questionador. Embora Lina fosse minha melhor amiga da vida toda, as vezes eu sentia que não podia ser tão aberto com ela, que havia coisas que precisavam ser segredadas a padre Credence, porque parecia que só ele poderia me entender.
— É uma bobagem. Tive um pesadelo e contei para ele quando me confessei no domingo, depois da missa. Era algo que estava me deixando pensativo, sabe?
Angelina colocou a mão em meu braço e deu um olhar carinhoso.
— Você podia ter me contado, se isso estava te tirando o sono. Se não a mim, ao Hanjun. Sabe que nunca julgaríamos você.
— Eu sei que non, mas as vezes eu preciso que Ele me acalme e o prêtre é o mensageiro de Dieu, me sinto confortável quando conto as coisas para ele.
Ela parecia uma irmã mais velha que ficava entre o repreendimento e o fato de entender meus motivos e me acolher. Tínhamos a mesma idade, mas parecia sempre que Lina tomava para si uma responsabilidade muito maior do que deveria. Angelina estendeu a mão e fez um cafuné carinhoso nos meus cabelos.
— Você se sente melhor agora? — Concordei com a cabeça e olhei para o outro lado, para onde havia a porta principal. Madre Madeline entrou e segundos depois foi acompanhada por um homem alto. Não vi muito mais que isso antes que meus olhos fossem tampados. Sorri, sentindo o cheiro da colônia amadeirada que Hanjun espirrava por todo o quarto.
— Você só tem uma chance para acertar quem eu sou. Se errar, levarei a donzela bonita para a torre do meu farol. — Ele fez uma voz grossa e caricata e eu não consegui evitar de rir, segurando os pulsos dele. O movimento me forçou para trás e eu cai sentado no chão frio, mas suas mãos permaneceram cobrindo minha visão.
— Você é François L'ollonais.
— Errado, mas pelo menos você está prestando atenção nas aulas de história. — Ele destampou meus olhos e piscou para mim, se sentando ao lado de Angelina e deixando nossas mochilas no chão. — Oliver Allen quase matou um aluno na biblioteca. Isso requer muita força de vontade e total falta de saúde mental.
— Você está obcecado por ele, Han.
— Não é uma obsessão, apenas verdades que meus olhos de lince puderam observar. Eu trago para vocês as fofocas desse internato.
— Non deveríamos falar mal das pessoas pelas costas. Está na bíblia. "Non julguei para que non sejas julgado".
Han bufou e Lina bateu nele com o ombro.
— Não vamos arranjar problemas, Hanjun. Principalmente com o Oliver.
— Blá, blá, blá. Tá bom, não está mais aqui quem falou. — Hanjun fez um bico e tocou a ponta do meu sapato com o dele. — Vocês não tinham monitoria hoje?
— O diretor disse para deixarmos para outro dia. E o Domi ficou mais de 20 minutos conversando com ele, então o tempo já teria sido perdido de qualquer forma.
Hanjun arqueou a sobrancelha e me lançou seu melhor olhar inquisidor. Novamente eu me senti naquela espiral de sentimentos onde eu contaria meus problemas bobos para meus melhores amigos e eles dariam tapinhas em minhas costas, dizendo que tudo ficaria bem.
— Mamãe mandou uma carta. Vocês sabem que ela prefere se comunicar assim do que ligando pra cá. Ela disse que estava chateada por eu não ter ido tão bem em biologia e história, mesmo eu me esforçando muito para passar na matéria. Ela parecia tão zangada, disse que eu non estou fazendo as coisas direito. — Apertei mais os braços em volta dos joelhos, procurando um ponto aleatório para fixar meus amigos. Qualquer lugar que não fosse meus amigos. — Então eu tive um sonho ruim, onde Dieu se comunicava comigo para dizer que estava desgostoso com meu desempenho. E eu lembrei de quando latim era tão difícil pra mim que minha cabeça doía. — Molhei os lábios com a língua. — Então eu achei que seria melhor me confessar ao prêtre Credence, porque eu já tinha contado para ele sobre meus receios antes. Eu disse que tinha medo de Dieu estar triste comigo, que ele não iria mais responder minhas orações.
— Deus não é assim, Domi. Ele é bom e sempre vai te ouvir. Você sabe disso.
— Sim, o prêtre também disse isso. E é uma insegurança tão boba que nem deveria passar pela minha cabeça. Ele disse que Dieu non iria se chatear por duas notas baixas. Que eu só precisava me recuperar. E eu estou fazendo de tudo para que isso aconteça. Mas eu continuei com aquele medo de non estar indo pelo caminho correto. E o prêtre sempre parece saber quando eu preciso conversar. Então hoje, no final da aula de latim, ele disse que eu seria bem-vindo para uma conversa. Então nós conversamos e agora está tudo bem.
Hanjun estendeu a mão e apertou minha bochecha até ela doer, me oferecendo um sorriso tão gentil que eu não pude rejeitar.
— Eu sei que é importante pra você o que o padre fala, mas eu durmo na cama ao seu lado, cara. Você pode falar comigo, sempre.
— Eu sei. Me desculpem por non ter dito sobre isso antes. Acho que foi só uma insegurança boba que falou mais alto.
O hall de entrada já estava vazio e a chuva havia engrossado. Para fugir das gotas grossas que caíam do lado de fora, Angelina se levantou e colocou a mochila nas costas, estendendo a mão para que eu levantasse.
— Desde que você possa se sentir confortável, não tem problema, Domi. Agora vai, tome um banho e coloque uma roupa quente. Você já está começando a parecer o Rodolph, a rena do nariz vermelho.
Hanjun gargalhou e eu parecia um peixe fora d'água, tentando entender o que ela tinha dito.
— Amo a sua gama cultural, Lina.
Ela sorriu e deu de ombros.
— Eu poderia rir apenas por respeito, porque eu non entendi a referência, mas o diable é o pai da mentira, então non vou mentir apenas para que você se sinta bem. — Eu a provoquei, arrancando um revirar de olhos seus. Vesti a minha própria bolsa com as duas alças nos ombros para distribuir o peso.
Hanjun me segurou pelo pulso e começou a me arrastar para o nosso lado da escadaria, parando no sopé dos degraus. Ele a olhou profundamente e depois soltou minha mão, os dois apostando para ver quem chegava no próximo andar primeiro. Hanjun venceu a corrida e mostrou infantilmente a língua para Angelina. Ela deu de ombros, emburrada e acenou com a garrafinha, começando a subir para o próximo andar, desaparecendo na esquina do corredor.
Quando cheguei até onde ele estava, Hanjun colocou o braço ao redor dos meus ombros e me apertou contra seu corpo. Então nós voltamos a caminhar para o quarto 455 que ficava no segundo andar.
— Era só isso mesmo, Domi? Sobre a conversa que estávamos tendo antes.
— Era sim. Só a sensação ruim de non estar dando o melhor de mim. Mas vai passar, Han. Dieu está comigo.
— Não só Ele, Domi. Não só Ele.
†
— Eu estou falando sério quando digo que vou ler todo o livro em inglês sem precisar de ajuda, Angelina. — Hanjun parecia tão envolvido na discussão que estava tendo com Lina que eu sentia que a qualquer momento ele iria bater na mesa e apontar o dedo no rosto dela para provar seu ponto.
— "Sem precisar de ajuda" não é só sem o dicionário. É sem o Dominique também.
— Você sempre pensa pouco de mim, Lina. Que tipo de amizade é essa onde eu sou só julgado?
— É o tipo de amizade sincera que você estava precisando.
Ele me olhou e depois olhou para ele. E depois atuou perfeitamente na expressão mais penosa possível.
— Esse é o passado do vilão. Ser desacreditado. O homem não nasce ruim, é a perversidade de seus amigos que o corrompe.
— Você não é um vilão. Só o tipo de pessoa que não sabe dosar o próprio drama.
Hanjun se inclinou para responder, mas ficou quieto quando Oliver Allen se aproximou da mesa e se sentou, com a expressão fechada de sempre. Eu tentei me lembrar, mas acho que nunca vi ele sorrir verdadeiramente antes, só quando estava com sua única amiga. Hanjun estava sentado do meu lado e foi fácil para ele se inclinar e sussurrar num tom audível demais em meu ouvido:
— Ele parece um assassino de jovens criancinhas hoje. O que quer que tenha acontecido, eu não gostaria de estar na mira dele.
Senti um chute em minha perna e levei a mão até onde havia tido o impacto, soltando um gemido dolorido. Angelina me olhou com culpa e depois fuzilou Hanjun com seus olhos azuis.
— Era pra acertar o Han, desculpa.
Dei de ombros e voltei a deixar meu olhar se perder. Os pensamentos intrusivos entrando em minha mente e tudo ficando cada vez menos claro do que deveria. Acho que tudo seria mais fácil se eu pudesse pensar mais claramente sobre as coisas que aconteciam ao meu redor.
Olhei para frente, justo quando aquele garoto gentil do terceiro ano — Bastien — entrou no salão acompanhado de um homem que destoava totalmente de tudo o que eu já havia visto no Sainte Jeanne d'Arc. O na vida.
— Puta merda, ele tem uma tatuagem no pescoço. — Meu melhor amigo exclamou e eu percebi que não era o único que encarava de forma mal educada o rapaz.
Ele tinha desenhos coloridos no pescoço e nos braços, onde a blusa de frio estava enrolada até os cotovelos. Seu cabelo era bagunçado e tão escuro como carvão. E ele tinha uma expressão que parecia não dar abertura para que as pessoas se apresentassem. Os dois se sentaram há uma mesa de distância e eu evitei olhar na direção deles, para que não soasse bisbilhoteiro demais.
— Por isso esse internato não esperava. Agora só resta saber o que uma pessoa como ele veio parar aqui. — Fiodor, que estava sentado ao lado de Angelina, falou alto o suficiente para qualquer um ouvir.
— Por que alguém como ele? Por que a diferenciação? — Ele me olhou de forma engraçada e eu não senti nenhum resquício de bondade vinda de seu sorriso contundente em minha direção.
— Alguém que não é como você. Esse lugar está cheio de Dominiques e Angelinas. Pessoas que consigo reconhecer à distância. Mas ele não parece nem um pouco com vocês.
Fiodor lembrava do meu nome, mas disse de uma forma tão jocosa que eu senti o ímpeto de me encolher.
— Ser um Dominique é legal. — Han tentou me consolar, de alguma forma, mas só tornou aquilo mais estranho. O que eu era? Ser como eu significava o quê?
Antes que eu pudesse questionar com meus cinco segundos de coragem e sete de curiosidade, todo o burburinho cessou quando padre Credence e madre Madeline entraram no refeitório. Eles foram até a mesa principal, onde comiam os professores, e todos ficaram de pé para a oração.
— Boa noite, irmãos e irmãs. É sempre bom ter vocês para a partilha do pão. Antes de rezarmos, gostaria de apresentar nosso novo aluno. Jason, poderia acenar?
O garoto que mantinha a expressão fechada levantou uma mão e balançou rapidamente, como se não quisesse chamar a atenção para si. Eu podia entender. Ter a atenção daquelas pessoas era um sentimento um pouco sufocante. Elas te olhavam com aqueles olhos atentos, esperando sempre o momento que fosse cometer um erro. Era aterrador.
Ele usava braceletes pretos nos pulsos — pude ver antes que o garoto enterrasse as duas mãos nos bolsos da calça jeans.
— Espero que possam recebe-lo bem e mostrar a união que promovemos dia após dia aqui. Rezemos, irmãos: Senhor, abençoai este alimento que iremos compartilhar. Que nunca nos falte a comida na mesa e que possamos, com o Seu auxílio e benevolência, ajudar aqueles que tem fome. Amém.
Todos nós nos sentamos e começamos a passar um para o outro a comida que era colocada na mesa pelos funcionários da cozinha. O salão voltou ao falatório mais do que normal e, até o final do jantar, tenho que admitir que não foram poucas as vezes que meu olhar viajou até a mesa dos veteranos, para um rosto desconhecido que muito atiçava minha curiosidade exacerbada.
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Espero que tenham gostado da reescrita. Eu não sou tão acostumada a escrever em primeira pessoa, foge totalmente da minha zona de conforto, mas eu estou tentando, juro. O feedback de vocês é muito importante, então se puderem comentar algo, ou até mesmo me mandar por mensagem privada, eu agradeceria.
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