03 de junho - 6AM - Urbazio, Gaiiau Sul
Batidas na porta. Na velha porta de madeira, como tudo naquela casa: madeira e cimento. "Quem quer que seja, eu te odeio'', pensou Segrel. Ele acabara de deitar, depois de um longo banho, tentando se recuperar da noite anterior, e esperava ter algumas horas de sono antes de voltar ao trabalho. Mas sem tempo para pensar, as batidas na porta ficavam cada vez mais altas.
“Só podia ser”, resmungou ao abri-la.
— Não tem modos, Khahn Ái? Deixar um amigo esperando assim — disse um cara, aparentemente da mesma idade do vietnamita. Ele tinha cabelos vermelhos e ondulados, muito bagunçados, e vestia uma calça de moletom e uma camisa solta — Não estava me ouvindo bater?
— Karasu — disse, fingindo ânimo, e abriu passagem. O jovem entrou e fechou a porta atrás dele — Isso é hora?
— Soube da filha do bom velhinho? Claro que soube. — tirou um maço de cigarros e um isqueiro do bolso, pegando um e o acendendo — Pobrezinha, deve estar tudo uma merda com aquele bando de playboy dentro de casa né?
— Como você sabe sobre os Diversini? — perguntou, desconfiado.
— Khahn, Khahn… Eu sei de tudo — tragou o cigarro depois soltou a fumaça — Inclusive, soube que foi um incêndio criminoso.
Segrel franziu o cenho. Karasu estava falando sério ou era mais uma de suas insinuações? Ninguém havia falado sobre isso, nem Kamau, nem a detetive. Se bem que ele não poderia negar que o cara realmente sabia de muita coisa, principalmente no mundo do crime.
— Se eu fosse sua amiguinha, ficava esperta — continuou, enquanto apreciava seu tabaco — Enfim, não estou aqui pra fofocar. Tenho um trabalho pra você.
— Claro, o Karasu nunca perde tempo — ironizou Segrel, descontente.
— Duas — o visitante jogou dois pacotes no sofá — Pro seu namoradinho.
— Ele nunca foi, você sabe — respondeu o vietnamita, indo em direção a porta e colocando a mão na maçaneta — Só isso?
— Claro — sorriu, irônico — Manda um abraço pro Yüry-kun, por mim — soltou o resto do cigarro no piso, apagando com os pés, e foi embora acenando de costas.
Segrel suspirou, observando a mercadoria que deveria entregar. Ele ia agora? Tirava sua soneca e deixava para depois? Mandava alguém buscar? Decidiu, por fim, se permitir descansar, pelo menos um pouco.
Duas horas depois, o vietnamita acordou, um minuto antes de o despertador tocar. Escovou seus dentes, penteou seu cabelo, colocou os pacotes na moto, que na verdade é de Kiki, mas ficava com ele nas férias, e saiu para fazer a entrega.
8AM - EDEN, Gaiiau Central
Restos de tinta colorida, fumaça, ornamentos e freezers; contornados por diversos prédios abandonados: ЭДЕМ. O paraíso dos psicodélicos estava agora calmo e apagado, silencioso como nunca. Esta vista vazia, a luz do dia, não era nada atrativa.
— Ora, ora, se não é meu aviãozinho preferido — disse uma voz distante, Segrel respondeu com um olhar irritado e foi em direção a ela, que vinha de uma pista de skate, como várias que tinham ali — Desculpa əzizim, eu sei que cê não gosta dessas brincadeiras — continuou, quando o vietnamita desceu da moto e se sentou ao seu lado.
— Então, por que cê ainda faz? — o outro deu de ombros, Khanh Ái suspirou e mudou de assunto — Sozinho? Cade seus capangas?
— Rad ta estudando — respondeu enquanto coçava o nariz — Aslanyan, o que eu tenho a ver?
— Não sei porque você ainda trabalha com essa mulher, Yüry — contestou seu amigo — Eu não conseguiria conviver com alguém que não acredita na minha existência…
— E eu não sei porque você ainda trabalha pra eles — retrucou Yüry.
— São coisas diferentes, grande Aksa — pronunciou seu apelido de forma irônica, colocando a mão em seu ombro e aproximando seus rostos.
Yüry Aksakov, ou simplesmente Aksa, era famoso por dar os melhores afters de Gaiiau. Em seu grande terreno, conhecido como ЭДЕМ, recebia gente de todo tipo, depois que todos os estabelecimentos eram fechados. Não era cobrada entrada, então ele e sua equipe ganhavam pelo que vendiam ali, equipe essa que era composta por Aslanyan Ankine, formada em economia que nas horas vagas organizava toda a parte financeira, e Sabbah Radul, estudante de direito, mediador entre os dois e as autoridades locais.
— Enfim — Aksa mudou de assunto desviando o olhar — O que te trouxe aqui hoje?
Segrel respirou fundo e retirou debaixo do banco da moto a mercadoria que deveria entregar, a jogando ao lado do amigo, que a observou e voltou-se para ele.
— Claro que era por isso… — cruzou os braços — E eu achando que cê tinha vindo por mim — Aksa mordeu o lábio inferior.
— Não fica chateado, eu ainda tenho um tempo, posso ficar aqui mais um pouquinho — o vietnamita mudou seu tom, aproximando sua boca no ouvido de Aksa, que sentiu um arrepio subir por sua coluna.
— Cê não ia ficar se eu não pedisse — mordeu o lábio novamente — Mas vou relevar, só porque eu to gostando disso aqui.
Os dois foram interrompidos pelo telefone de Segrel, que logo o atendeu.
— Desculpa, Yüry, tenho que ir agora — levantou abruptamente, subindo na moto.
— Deixa eu adivinhar, Nakisisa? — o moreno revirou os olhos — Vocês transaram? — seu amigo franziu o cenho e negou com a cabeça, como se ele tivesse dito algo impossível — Ótimo, ainda estou em vantagem.
Suas palavras eram irônicas, mas no fundo havia um sentimento de alívio. Porém, Segrel ficou um pouco irritado.
— Não tem nada a ver com a Nakisisa, Aksakov. Somchai passou mal na escola, tenho que buscar ele mais cedo e levar no hospital — vestiu seu capacete — Estou indo — acelerou a moto, deixando seu querido amigo falando sozinho.
— Mas cê mal se… Despediu… — murchou os ombros observando a imagem de Segrel sumir.
Além de não ter paciência para os ciúmes sem noção de Yüry, Segrel estava preocupado com Somchai, o garoto era seu mundo.
Ele não podia se atrasar…
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