Há dias ele esperava por aquele encontro. A ânsia certamente o consumia. Já começava a se perguntar se o acordo entre os dois havia sido esquecido ou pior, não passara de meras palavras.
Após finalmente alcançar o andar desejado da torre de vigília, Artur bateu imediatamente na porta do escritório de James. Ofegava por ter subido às pressas aquela interminável escadaria.
— Entre! — disse a voz inconfundível de seu professor do outro lado.
O menino então obedeceu ao comando.
Ao girar a maçaneta e entrar na sala, ele se deparou pela primeira vez com o escritório do professor Jordan. O local era compacto e bagunçado, repleto de livros e pergaminhos onde quer que os olhos percorressem.
— Garoto! — exclamou James com um tom de surpresa, do outro lado de sua mesa, ele parecia estar redigindo algo. — Tranque a porta, por favor!
O menino, então, ao fechar a porta, girou também a chave pendurada na fechadura. Ao se certificar que o local estava enfim trancado, ele se aproximou do professor a passos lentos, enquanto estudava os arredores.
A maioria dos livros espalhados pela sala era sobre magia negra, sobre demônios e sobre antídotos misteriosos.
Havia pendurado na parede ao lado um grande mapa da ilha, com muitos setores demarcados conforme a periculosidade do bioma existente. Neste mesmo mapa havia algumas etiquetas demarcando todos os locais onde eventos estranhos aconteceram, onde pessoas haviam sido mortas ou desaparecidas. Uma delas chamou a atenção do garoto, seu nome era Eric A. J., Artur tinha a impressão de que já vira esse nome em algum lugar, talvez até em algum dos seus sonhos.
Atrás de James havia um comprido cobertor branco que parecia ocultar algo na parede, era como uma espessa cortina, mas que não escondia uma janela, já que a sala continuava além daquela parede. Diante daquele profundo silêncio, o menino escutou algo borbulhar por trás dela, algo aparentemente viscoso, como se uma sopa grossa estivesse sendo fervida por ali.
Curioso com o que lá havia e aproveitando o momento de total distração do Sr. Jordan, o menino contornou o local, esticou o pescoço e avistou algo oculto por um cobertor níveo. Este estava úmido e cobria o que parecia ser um caldeirão. O que teria ali dentro?
— Pode retirar o cobertor se quiser — pronunciou James inesperadamente, enquanto continuava a escrever com naturalidade no pergaminho em sua mesa. — Só aconselho a não tocar no que há aí — alertou em sequência.
Ao ouvir aquilo, o rapaz ficou ainda mais tentado em bisbilhotar o caldeirão. Ele puxou o cobertor e fitou o conteúdo misterioso: um líquido borbulhante e prateado que exalava um cheiro forte e desagradável. Embora fosse fascinante observar a mistura, não parecia ser mesmo uma boa ideia tocá-la.
— O que… o que é isso? — indagou o menino.
James, então, em silêncio, largou sua pena, guardou o pergaminho o qual escrevia em uma gaveta e se levantou de sua cadeira para ir até o rapaz.
Próximo a ele e avistando o mesmo caldeirão, o homem cruzou seus braços e encostou-se na parede ao lado.
— Isso aí é a nossa maior esperança, minha maior arma contra Azaroth, embora ainda esteja inacabada. Ela é o motivo de tudo isso.
— De tudo o quê?
— De você estar aqui — respondeu prontamente. — Venha comigo.
Artur, então, o seguiu até a mesa.
— Sente-se! — ordenou o homem e o menino apenas acatou.
— Isso tem a ver com o nosso acordo, não é? — perguntou o rapaz ao se acomodar. — Você demorou para me procurar depois disso, eu achei que…
— Perdão, garoto. Estive muito ocupado envolvido nas buscas.
— Ah, sim. E… e como elas vão?
— Receio que quem não foi resgatado até agora jamais será visto de novo, como ocorreu com tantos outros nessa maldita ilha.
Aquele comentário havia sido doloroso. Significava que a academia iria mesmo desistir das buscas? Parecia cruel simplesmente aceitar o paradeiro de seis jovens inocentes e abandoná-los como uma trágica memória a ser esquecida.
— Mas creio que as buscas não cessarão assim tão rapidamente — acrescentou James, para a surpresa do menino. — Daqui há alguns dias o Barão Lizenberg atracará no porto e trará alguns reforços para nos ajudar nas incursões.
Um zelo que a coroa provavelmente não teria se um dos desaparecidos não fosse o filho de um membro da realeza, disse Artur em seus pensamentos. Só esperava que aquela busca rendesse bons resultados. Era tudo o que mais importava.
— Bom, garoto. Vamos direto ao que interessa — começou o homem seriamente, apoiando os cotovelos sobre a mesa e cruzando os dedos próximo ao rosto. — Antes de mais nada, gostaria de salientar que o que vou lhe mostrar agora é extremamente confidencial, ninguém pode saber disso fora desta sala. Está me escutando? — O calvariano gesticulou positivamente com a cabeça. — Nem sequer membros da academia superiores a mim podem saber o que está acontecendo por aqui. Não quero que escreva cartas sobre isso, não quero que conte isso para o seu irmãozinho, nem ninguém por mais que você confie.
— Tá legal!
— Quero que me prometa! Tem muita coisa em jogo aqui.
— Tá! Eu prometo! — disse o rapaz impaciente.
— Muitos problemas iriam sobrar para mim se Robert descobrisse que envolvi um aluno nisso, principalmente em um plano que ele mesmo é contra.
— Eu juro a você que ninguém mais vai saber. Tá? Eu prometo!
— Confiarei em você.
O homem, então, levantou-se e caminhou até uma cordinha que havia ao lado do pano branco. Após envolvê-la em seus dedos, ele a puxou, revelando o quadro misterioso que por lá se escondia.
O menino arregalou seus olhos perante a quantidade de informações que avistava ali. Havia inúmeros pergaminhos colados, formando uma imensa árvore de rastros do demônio. Havia o registro de todos os seus eventos na ilha, páginas rasgadas de livros, iluminuras e muitas outras coisas.
— Como sabe, Azaroth não pode se aproximar do vilarejo, pois os poderes que ele extrai das artes das trevas são anulados nesse território. É por isso que seus ataques são sempre a distância e por meio de enviados. Ele é poderoso, mas não é páreo para a luz que nos resguarda, e é somente isso o que o impede de tomar esse vilarejo inteiro para si — explicou James. — Por que está fazendo essa cara, garoto? Alguma dúvida?
— N-não! É que… você disse que ele extrai seus poderes através das artes das trevas.
— E daí?
— E daí que é estranho um demônio precisar realizar magia das trevas para ser poderoso.
James coçou a lateral da cabeça e resmungou:
— Você tem mesmo muito o que aprender.
— Hã?
— A questão, garoto, é que ele é uma ameaça para todos nós e por isso precisamos exterminá-lo o mais depressa possível. — Voltando a encarar o quadro, ele então continuou: — Venho o estudando há anos e nunca cheguei tão perto de uma esperança para o nosso vilarejo como agora.
Com uma chave, o professor destrancou uma gaveta em sua mesa onde retirou o que parecia ser uma caixa de madeira pequena e ornamentada.
— Semanas antes de vocês desembarcarem no Porto de Rostwood, eu encontrei algo muito valioso próximo ao vilarejo.
— Oh! O-o quê? — perguntou o rapaz curioso.
— Um corpo.
— Isso não me parece muito valioso.
— Ele estava enterrado há quase dez anos e pertencia a uma mulher, uma chuva o revelou, junto a isto — acrescentou o homem, apontando para a caixinha de madeira que estava depositada em sua mesa.
O garoto, um pouco hesitante, a abriu e voltou seus olhos para o que havia em seu interior. Havia ali algumas páginas ilustradas de pergaminhos velhos e rasgados. Pareciam pertencer a um livro muito antigo e escrito à mão.
Aquelas páginas aparentemente instruíam o preparo de algum antídoto. Seja o que fosse, parecia ser algo muito complicado de se produzir, com uma lista imensa de ingredientes estranhos.
— O que… o que é isso, hein?
— Passei muito tempo estudando o que havia aí, venho tentando reproduzir o preparo descrito, mas nunca vi veneno mais complexo em toda minha vida — disse o homem pensativo.
— Ve-veneno? — perguntou o rapaz de olhos arregalados. — Espera? Quer dizer que… o seu grande plano para matar Azaroth é envenenando ele?
— Matar não, garoto. Enfraquecer! — corrigiu o homem, com um tom confiante. — Lembre-se que não estamos falando de um veneno qualquer.
— Sério?
— Deve conhecer as histórias do triunfo de Anatus contra o demônio Ghaizer, não é?
— Sim… mais ou menos.
— Muito bem, e você sabe como ele o derrotou? — perguntou o homem, fazendo o rapaz parar para buscar essa informação em sua mente.
Ele quase desconhecia as lendas, fora apresentado a elas muito recentemente. Tudo o que sabia era que, após derrotá-lo, Anatus erguera sua cabeça para o povo rostwoodiano contemplar pela primeira vez o rosto de seu algoz.
Diante do silêncio dele, James interveio:
— Pois é, poucos sabem dos detalhes, poucos se interessam por eles, mas eles que fazem a diferença. Anatus o atingiu com uma flechada no peito, garoto.
— Ah, sim! Mas… só isso?
— Claro que não! A flechada não o matou.
— O… enfraqueceu!? — adivinhou Artur.
— Exatamente!
O homem, portanto, entregou ao rapaz um livro grosso com a ilustração de um corpo, em meio a uma grande estrela desenhada ao chão.
— Demônios, em sua maioria, são criaturas que não possuem coração. Além de que, quando invocados, eles se erguem do submundo habitando os corpos já falecidos de pessoas sacrificadas em um ritual. Nenhuma flechada simples mataria um demônio, garoto. Muito menos uma flechada no peito.
— Parece um ritual… de necromancia — observou Artur, ainda contemplando a figura do livro. — A professora Cicília já falou disso na aula e eu… já procurei sobre.
— É basicamente a mesma coisa — informou o homem. — A única diferença é que em um ritual de invocação, os responsáveis sabem o que estão fazendo e sabem o que estão prestes a trazer ao mundo.
James retirou o livro da frente do rapaz e o guardou.
— Há muitos escritos que tentam explicar em diferentes versões como a flechada de Anatus surtiu efeito no demônio, mas há um que encontrei antes mesmo de vir trabalhar em Rostwood, na biblioteca de Pyrigon. Este datava a época dele e dizia que antes de confrontar Ghaizer, Anatus banhou sua flecha em uma solução complexa, desenvolvida por ele mesmo com a sabedoria que lhe foi legada pelos deuses, por meio de ingredientes obtidos da própria natureza — parafraseou. — Pouco se sabe sobre esse veneno, poucos alquimistas conseguiram reproduzi-lo.
Ele então pegou outro livro de sua coleção e o abriu em uma página já demarcada.
— Ainda assim, esta poderosa e mágica solução já foi utilizada algumas vezes. Ela foi uma importante arma na derrota contra o terrível Behemoth, que atacou a cidade de Tallef há setenta anos. — Ele pegou outro livro e o colocou aberto na frente do menino. — Também foi utilizada contra o demônio Niférius, que invadiu Gravehill com uma horda de possuídos há uns trinta anos. — E com uma página rasgada ele completou: — Também foi utilizado contra a poderosa Lilith, há quase um século.
— Mas… pelo o que sei, Lilith foi uma bruxa, não? — interrompeu o rapaz, relembrando seus estudos. — Ela foi… uma feiticeira das trevas.
— Não importa, garoto. Ele deve funcionar contra qualquer ser que utilize magia profana. A questão é que, como eu disse, há registros do uso deste veneno ao longo de toda a história. O conhecimento sobre ele ainda é muito escasso, mas agora é a nossa vez de utilizá-lo também, e esses pergaminhos são a chave para isso. Eu sei que são!
O homem abriu novamente a gaveta e pegou um frasco de vidro âmbar arrolhado que parecia conter um fio de cabelo negro.
— Isso pertence a Azaroth, recolhi quando o confrontei na última vez, pois achei que poderia ser útil de alguma forma. Bom, eu acertei. Segundo os pergaminhos, a solução necessita de um fragmento daquele a quem se destina o veneno. — Ele recolheu novamente o vidro e o guardou. — Suponho que o antídoto só surtirá efeito nele.
— Vo-vo-você já enfrentou Azaroth cara a cara?! — questionou o rapaz boquiaberto. — Ma-mas dizem… dizem…
— Que ninguém que deu de cara com Azaroth sobreviveu para contar a história, é? Besteira, garoto! — exclamou ele. — Mas confesso que nunca enfrentei ser parecido em toda minha vida. Se escapei foi por muita, muita sorte.
James pegou a caixa em seus braços e a fechou novamente, enquanto o garoto tentava digerir aquela quantidade avassaladora de informações.
— Como… você sabe que esses pergaminhos são mesmo confiáveis?! — perguntou Artur, preocupado com aquele entusiasmo do homem a sua frente. — Quer dizer… você nem sabe a origem deles. Como você sabe que isso vai mesmo dar certo?
— Essa é a questão, garoto… eu não sei, mas eu preciso ter fé — respondeu, para a surpresa do rapaz. — Se no fim das contas não tiver dado certo, ao menos terei tentado algo. É melhor isto do que ficar parado vendo tudo desmoronar, não concorda?
Não parecia justo jogar suas próprias palavras contra ele.
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