Seus olhos sonolentos se abriram em um salão mais iluminado e menos cheio. Uma manhã gélida e acrômica parecia adentrar pelos vitrais e pelas frestas de todo o castelo. A estranha névoa violeta parecia mesmo ter ido embora, deixando um clima de dúvidas pelo ar. Pessoas entravam e saiam livremente do salão, os portões do castelo já deveriam estar abertos.
Com uma careta, ele se ajeitou para que pudesse se sentar. Uma dor extremamente incômoda irradiava em sua lombar. Dormira em uma posição completamente desfavorável à coluna. Harry ainda adormecia em seus braços.
O rapaz nunca imaginou que um dia tivesse que pernoitar no chão rígido e gélido do grande salão, mas aconteceu. E fora uma experiência terrível que jamais se esqueceria.
Quando se atentou a sua mão direita, o menino se chocou ao observar que adormecera segurando a empunhadura de sua adaga. Talvez fosse o artefato mais valioso que tinha sob sua posse, poderia até ter sido roubado enquanto dormia. Desde a competição, não passara um dia longe do alcance daquela lâmina. Ele a guardou devidamente e analisou os arredores.
Um café da manhã estava sendo servido em uma grande mesa posicionada no centro do salão, reunindo uma grande concentração de pessoas em torno. Alguns ainda dormiam pacificamente pelos recantos, como se ignorassem todo o falatório e movimentos nas redondezas, talvez fossem pessoas que, vítimas da tensão, passaram a noite em claro.
— Harry, acorda! — murmurou o menino em seus ouvidos, enquanto o sacolejava pelo ombro. — Anda! Todos já se levantaram!
O garotinho então ergueu seus olhos pesados e se espreguiçou.
Era difícil não ver cabelos desgrenhados ou rostos abatidos pelos arredores. Mas muitas pessoas interagiam naquele café da manhã como se nada tivesse acontecido.
— Bom dia! — saudou Scott ao ver os dois irmãos se levantarem.
— Bom dia — respondeu Artur sem muita energia, entregando a roupa de cama que utilizara nas mãos de um oficial.
O rapaz avançou lentamente até a mesa com o seu irmão e retirou apenas um pouco de toda aquela fartura, somente para quebrar o jejum. As lembranças preocupantes da noite anterior conseguiam expurgar todo seu apetite. Harry, por outro lado, fartava-se com uma abastecida bandeja de doces e pães.
Artur não conseguia parar de pensar na névoa. Teria mesmo que conviver com aquilo durante todo seu tempo em Rostwood? O que exatamente era aquilo?
Após seus olhos varrerem todo o local, o rapaz avistou o professor James Jordan do outro lado do salão, examinando tudo com uma postura enrijecida e com a mão sobre a empunhadura fixada em seu cinturão.
— Hey, Harry! — chamou Artur, sem desviar seus olhos. — Vou ali conversar com o professor e já volto, ok? Fica aqui!
— “Tufo” bem! — respondeu com a boquinha estufada de comida.
O calvariano então, se afastou da mesa e atravessou a multidão em direção ao Sr. Jordan, quem não disfarçava a perturbação naqueles olhos sérios, inflexíveis e, ao mesmo tempo, inquietos.
Quando chegou próximo a ele, James foi o primeiro a falar.
— Garoto, como vocês estão?
— Estamos bem!
— Ótimo!
— Agora… pode me explicar o que foi exatamente isso?
O homem soltou um suspiro profundo, como se estivesse cheio de ter que responder aquela questão a alguém.
— Em suma… o nevoeiro é como uma mascote de Azaroth. Um colosso, um ser das profundezas que passa alguns meses em hibernação e que, depois, acorda para trazer, em uma noite, mais almas para seu mestre. Em seguida ele volta a dormir e nós ficamos com a contagem das vítimas — explicou o homem.
— Ele… é tão poderoso que consegue enfraquecer… até a chama sagrada nas piras?
— Há muitas coisas que você desconhece, garoto. A chegada dele sempre causa isso. Ficamos expostos por um tempo… vulneráveis, indefesos… isso é inevitável. Ele contorna os adarves das muralhas e carrega todos que alcança. — Após encarar as pessoas aglomeradas em torno da distante mesa, ele completou: — É um verdadeiro tormento para o povo de Rostwood.
— Só não entendo o porquê a Academia escondeu a existência desse… nevoeiro para a gente. Nem os veteranos nos contaram sobre isso!
— Porque assim foram instruídos — respondeu James. — Ordens de Robert. Ele julgou que seria melhor os novatos terem ciência disto em um momento mais apropriado, para não antecipar o temor em seus corações.
— Ma-mas não acha que descobrir assim foi bem pior? — protestou.
— Foi Robert, garoto. Não concordo com a maioria dos seus métodos.
O homem desviou disfarçadamente seu olhar de um canto ao outro, sondando os arredores para se certificar se era seguro falar. E então, em um tom mais estrito e circunspecto, ele disse:
— Começo a questionar se foi mesmo uma boa ideia te chamar para me ajudar. Está ficando cada vez mais perigosa a situação. Já é o segundo ataque em um mês, este nevoeiro chegou cedo demais. Ele está ficando mais forte.
— Mais um motivo para não recuar — argumentou Artur. — Estamos juntos nessa e nós vamos conseguir!
— Vinte pessoas desapareceram essa noite, garoto. Havia um grupo de excursão acampando fora do vilarejo. O nevoeiro não poupou ninguém.
“Robert decretou duras diretrizes. As aulas de Combate e de Culto aos Deuses serão intensificadas, todos os alunos agora serão escoltados por guardas e professores pelo castelo, o sino tocará mais cedo, haverá mais guardas patrulhando os corredores e as torres. Além disso… estão suspensas quaisquer atividades fora de aula na arena de lutas, seus portões terão que ser selados após as aulas, eu… sinto muito.”
Lá se foram seus treinos noturnos individuais, era triste ter que escutar aquilo. Aquele decreto parecia complicar ainda mais o acordo entre os dois.
— Parece… que as coisas estão feias, né? — murmurou o rapaz.
— Esse nevoeiro foi uma catástrofe, garoto. Plantações foram devastadas, casas destruídas, comércios arruinados, nem mesmo o velho moinho na margem do riacho escapou.
O menino empalideceu e arregalou-se em choque. Ouvira bem?
— O que houve? Garoto? GAROTO! — berrou o homem, ao ver o menino simplesmente dar de costas e desaparecer desenfreado para fora do salão.
Ele esbarrou com violência nas pessoas a sua frente, dentre elas, nos seus amigos, Kelly e Scott, que conversavam com naturalidade com outros alunos. Eles o observaram seu agito e, apreensivos com a atitude, o seguiram.
— ARTUR! — gritavam enquanto se apressavam para atingir seu encalço.
— Thomas! — sussurrava o calvariano desesperadamente para si, sem conseguir olhar para trás, enquanto atravessava o grande saguão em direção aos portões do castelo. — Thomas, não!
Embora soubesse que estava sendo seguido, ele já nem se importava mais em resguardar o sigilo que envolvia a moradia de seu amigo. Sua vida era mais relevante que qualquer segredo que tenha sido lhe confidenciado.
O garoto atravessou o vilarejo, atravessou a pequena ponte arqueada e margeou o riacho ininterruptamente. Seu peito suplicava por fôlego, mas ele se via incapaz de parar.
— Thomas! — repetia.
Ao chegar na longínqua instalação, Artur ficou boquiaberto como uma gárgula ao enxergar seu estado. Tudo estava em ruínas.
O telhado da varanda havia desmoronado, pedaços de madeira estavam espalhados por todos os cantos, muitas das tábuas boiavam pelo rio, cujas águas já não moviam mais a grande roda. Seu mecanismo havia emperrado.
Seus dois amigos, confusos e ofegantes, pausaram seus passos logo atrás do rapaz. Silenciosos, eles voltavam seus olhos alarmados e inquietos para o alojamento aluído, sustentado sobre uma frágil estrutura. Era perigoso estar ali.
A passos lentos, o menino entrou no local. Os demais o seguiram silenciosamente por trás.
No interior da estalagem, ajoelhado sob o local onde antes era uma sala de estar, estava Thomas, encurvado e a soluçar de tanto chorar. Rog aparentemente, não estava por ali.
— Ah, não! — murmurou Artur com uma voz tristonha e o olhar preso no pobre rapaz. Já era capaz de ligar todos os pontos só com aquela visão.
Mesmo na presença de todos, Thomas não conseguira pausar suas lágrimas. Seria difícil demais.
— Vo-vo-você?! — exclamou Scott, perplexo ao avistar o menino Wegg depois de tantos meses. — Achei que estava desaparecido o-ou morto!
— Esteve aqui durante todo esse tempo? — perguntou Kelly abismada. — Artur, você sabia disso?
O calvariano não queria, nem iria responder, sua mente estava em outro plano agora. Como aqueles dois não podiam perceber isto? Somente ele sabia o peso por trás daquilo que seus olhos presenciavam, somente ele era capaz de compreender o quão aquele era o pior momento para dar explicações.
Estava diante de um cenário pavoroso. O moinho estava um verdadeiro caos, em seu interior. Havia vários entulhos e estilhaços espalhados pelo chão.
— Foi… foi horrível! — dizia Thomas, suas lágrimas caiam como gotas de chuva em suas vestes sujas de poeira.
Artur se aproximou do amigo, encarando-o com um olhar preocupado.
— O que aconteceu? — perguntou.
— O nevoeiro… entrou ontem à noite… quebrando as janelas e levou o meu tio… pelos tornozelos — explicou ele, soluçando. — Sugou ele para o céu… ele atravessou o telhado… e desapareceu.
Aquilo explicava o rombo imenso na cobertura. Com aquilo, vários pedaços de telha ameaçavam seriamente a cair em suas cabeças.
— Não vou aguentar! Vim até aqui… só para vê-lo morrer desse jeito?!
— Não, Thomas! — exclamou Artur, abraçando suas costas encurvadas.
Um silêncio horrível tomou conta do local, interrompido apenas pelas soluçadas e fungadas do rapaz e pelo uivo ameaçador do vento.
— Ele me trancou no porão antes do ataque começar — explicou ele, enquanto mais lágrimas derramavam de seu rosto inchado.
Artur desviou seus olhos para o alçapão e viu seu trinco arrancado como se algo tivesse o arrombado de dentro para fora.
— Azaroth é mesmo poderoso — murmurou Scott aproximando-se. — As chamas sagradas já não conseguem proteger tanto o vilarejo desse monstro.
Kelly mantinha-se muda, encarando o menino Wegg com uma expressão que não escondia a curiosidade e, ao mesmo tempo, a preocupação.
— Hey! — chamou o menino Raymond, atraindo a atenção de Thomas. — Arrume suas coisas, você vai dormir no meu quarto a partir de agora.
O rapaz enxugou as lágrimas do rosto e olhou com assombro para Scott.
— Mas… mas…
— Scott tem razão — disse Artur —, não podemos deixar você morando sozinho nesse lugar. Você agora é um segredo nosso! — O menino olhou rigorosamente para seus amigos e, com força na voz, acrescentou: — Não é?
— Mi-minha boca é um túmulo — respondeu Kelly imediatamente, mas ainda sem esconder o espanto.
— O meu quarto tem espaço de sobra, vai ser legal dividir com alguém — insistiu o menino Raymond.
— Eu… não sou mais aluno, isso vai infringir ainda mais as regras e…
— E daí? — perguntou Artur. — Já te coloquei no meu quarto, lembra? Cooperaremos juntos para manter você escondido.
— Sim, agora vamos! Temos que aproveitar essa chance, enquanto não tem nenhum coordenador patrulhando os corredores da torre. É o momento perfeito para te levar! — disse Scott com um sorriso de consolação.
— Obrigado! — respondeu o rapaz enxugando o pranto mais uma vez.
Enquanto Artur apalpava carinhosamente as costas do jovem Wegg, o menino lamentava internamente algo que o corroía também ali.
O nevoeiro não só carregara um número nefasto de pessoas, ele levara consigo também a maior esperança de Rostwood. Afinal, agora sem o velho Rog, como os demais pergaminhos iriam ser encontrados?
∴
FIM DO CAPÍTULO 1
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