Mo Tian seguiu os aplausos que caíram como uma cortina sobre Xiang Dao, com toques leves e desanimados entre as mãos.
Xiang Dao havia repetido o mesmo que havia falado para seus servos quando as preparações para a cerimônia se iniciaram. Tudo deveria estar perfeito para atender as exigências de um Celestial com um poder tão destrutivo quanto abençoado. O revés ou a sorte dependeriam exclusivamente de seus esforços para serem os mais excepcionais que poderiam.
Ninguém tinha muitas informações sobre a passagem de Celestial Coelho no mundo mortal ou o que o trouxe até ali, era o tipo de assunto que apenas cabia aos imortais de Taisui e, talvez, cultivadores mais experientes. Mas era claro que Xiang Dao tomava cuidado para pisar em ovos quando se tratava desse Celestial em particular; aliás, era claro que tinha medo dele. Era o mais próximo de uma divindade que já tinha aparecido em Lanhua e, apesar de ser uma honra ter comportado sua existência, havia pouca informação sobre o que verdadeiramente se sucedeu com Ta Yeh e o motivo de a guerra ter piorado com sua vinda.
O papel dos servos e civis, entretanto, era muito importante nesse tipo de passagem para o próximo ano. Coube a Mo Tian organizar tudo para que Lanhua não fosse assombrada por anos de dificuldades…
Se algo saísse errado, ele seria duplamente penalizado. Era a primeira vez que deixavam nas mãos de alguém como ele a organização de Shangyuan. Alguém que foi parar ali por mera casualidade do destino, tendo vindo justamente do clã rival de Lanhua na guerra, o clã Aki.
Para se adequar àquela realidade, Mo Tian teve que se transmutar como uma borboleta. Se moldar ao que queriam que ele fosse. Ser perfeito, mais do que o comum. Um dos artifícios de sua personalidade que mais colaboraram para isso era sua boa comunicação. Bom, o que importava não eram os anos de calos e sofrimento, mas como tudo estava perfeito agora. Havia sido aceito por aquela população depois de vários sorrisos, esforços e a naturalidade com que dava suporte e ajudava quem precisasse. Uma mãozinha na reforma? Uma mensagem que precisava ser entregue ao destinatário? Um filho que havia perdido o pai em uma montanha gelada e precisava de alguém para explorar a região a sua busca? Ou, então, apenas um ombro amigo para desafogar as mágoas, ou um abraço quentinho para chorar? Era Mo Tian que procuravam.
Daí ele tirava as tantas histórias que contava num tom baixinho e pedia para as pessoas não repassarem.
Yawen Chen saiu de seu lado quando menos percebeu, rumo à plataforma de convenções. O que ela pretendia ali? As pessoas já se movimentavam em fila para pegar uma lanterna e pincel, escrevendo num papel seus desejos e colocando-o dentro da bolha que voaria até a imensidão das constelações. As estrelas que formavam a imagem do Coelho piscavam no céu, se assemelhando a cílios cintilando.
— Atenção — ela pediu ali de cima, limpando a garganta auditivamente. — O festival desse ano foi organizado por vários servos que se dedicaram por dias para que vocês aproveitassem todas as decorações e construções. Cada luz, barraca, comida, música e dança que vocês viram hoje foi pensada por uma equipe muito dedicada. Queremos prestar uma homenagem a quem coordenou tudo isso. Mo Tian de Lanhua, obrigada por ser tão prestativo!
O sangue gelado desceu com tudo por seus músculos.
— N-não… realmente não pre…
Mo Tian ficou completamente sem jeito, gesticulando com as mãos o que não conseguia mais dizer, pois um barulho de prestígio invadiu seus ouvidos. Seu peito batia descompassado no som das palmas que tomaram pelo menos um minuto do vácuo deixado pelo discurso de Xiang Dao. Toda aquela atenção fez a onda de calor subir, tênue, até as bochechas cor de cobre. Elogios foram ouvidos quanto à decoração e a escolha dos pratos e organização dos eventos principais. Até Xiang Dao sustentava um sorrisinho petulante e fino nos lábios ao encará-lo. Algumas pessoas foram parabenizá-lo. Mo Tian se deu conta que conhecia cada uma delas, pois já tinha falado com todas pelo menos uma vez desde que chegou em Lanhua.
A verdade é que ele estava feliz. Algo em seu peito borbulhava com aquela atenção e sorrisos gentis. Constatou que era realmente querido por aquelas pessoas, que pareciam genuinamente felizes por ele. Mo Tian se provou digno de fazer parte do clã. Ele não poderia querer mais nada na vida. Será que… realmente merecia tanto carinho assim?
— Não fique tão exibido. — Yawen Chen bufou ao descer as três escadas do palanque, com um sorriso ao ver como o amigo estava feliz. — Eu não ficaria tão contente de ser quase uma figura paternal para essas pessoas. Algumas são tão egoístas.
— Não diga isso assim — Mo Tian negou, mas havia um sorriso incapaz de morrer que fazia suas bochechas doerem e linhas de expressão se desenharem em seus olhos, como pés de galinhas. — Você não tem ideia do quanto… do que isso significa para mim. Parece até que ninguém nunca pensou que eu seria um espião do outro clã, que nunca confiariam em mim porque eu trairia Lanhua quando chegasse a hora.
— Justamente, não perdoo eles por terem pensado isso alguma única vez na vida deles.
— Cada um tem seus defeitos e pensamos coisas ruins, somos humanos. Você, por exemplo, só quer as coisas do seu jeito…
— Olha quem fala! — Ela deu risada. — Você quer que todos tenham o mesmo ritmo de trabalho que você tem. Até se finge de distraído quando está limpando, mas na verdade está ouvindo a conversa de todos ao redor. Isso não é ser um bisbilhoteiro fofoqueiro?
— Ah, sabe o que eu fiquei sabendo, inclusive? Os cultivadores do pico estão aqui, hoje. — A fala fez Yawen Chen se empertigar, olhando-o com surpresa. — Nem Liu Jin-Daozhang escapou de participar do festival dessa vez. Por que você não vai soltar uma lanterna junto com ele?
— Você…! Por que não me disse antes? — Ela ajeitou os cabelos, que já estavam arrumados demais, sem um fio para fora do penteado com presilhas e muito gel. Ela bateu o pó inexistente em sua roupa e começou a se afastar. — Ei, Mo Tian… seu defeito é ser auto negligente demais. Se dê um crédito e aproveite a noite. Eu vou… ali por um momento.
Ela desapareceu com sua lanterna e Mo Tian ficou sozinho com a dele, vazia de um pedido. Inspirou o ar frio da noite. Era uma pena que a visão para o dia era formada por nuvens nubladas, sem visão para grande parte do brilho na extensão do tecido negro. Mo Tian esperou até o fim da fila, vendo as expressões animadas daqueles que tinham fé que seus desejos seriam atendidos e suas vidas abençoadas pelos poderes do Celestial Coelho. Ele era, afinal, o animal do zodíaco que proporcionava mais sorte aos seus regentes. Havia até mesmo algumas pessoas mais velhas fechando os olhos e escrevendo seu sonho com tanto afinco que se Mo Tian pudesse, ele mesmo atenderia suas vontades.
Com a lanterna branca em mãos, que mais parecia uma mini-lua redonda feita de papel, ele prensou os lábios. Os músculos do rosto ainda doíam pelo tanto que havia sorrido antes. Em minutos, todos deveriam lançar as lanternas e ele ainda não tinha decidido o que pedir…
— Qual é o seu desejo, Mo Tian?
O sangue de Mo Tian esfriou quando ele reconheceu a voz.
Merda.
No mesmo segundo ele prestou uma reverência curta e respeitosa, estendendo os braços na horizontal, a felicidade sendo rapidamente substituída por nervosismo. Quem estava diante de si era Song Ning, o cultivador que mais se destacou nos últimos anos, irmão marcial de Liu Jin. O que ele estava fazendo ali e não com os outros cultivadores?
— Vim te parabenizar pessoalmente — Song Ning explicou após retribuir a mesura. — O festival está melhor do que me lembrava nos anos anteriores. Isso é graças a você, certo?
Mo Tian sempre se safava de situações difíceis por uma questão de sobrevivência. Aprendeu a ter palavras e molejo. Não havia preparação que o ensinasse a saber lidar bem com Song Ning, entretanto. Ele se sentia extremamente desconfortável na presença do cultivador, na mesma medida que sentia que devia sua vida a ele.
— Eu fui o primeiro a te estender a mão e veja só quantas pessoas te adoram agora.
O sorriso de Mo Tian tremeu, mas ele continuou a sustentá-lo, disfarçando o temor em ficar perto de Song Ning. Não era porque aquele cultivador era um discípulo de artes marciais e tinha um núcleo de poder, mas porque ele nem sempre usava esse poder para ajudar as pessoas e protegê-las.
Desde que era criança, pessoas diziam coisas sobre Mo Tian: que ele trazia má sorte, que era um espião, que traria desgraça para toda Lanhua. Dedos sempre foram apontados para ele. Song Ning, porém, foi o primeiro a estender a mão. O que seria admirável, se não fosse feito isso com segundas intenções.
— Obrigado por tudo de bom que você fez por mim, Song Ning. — Mo Tian curvou-se até dobrar o corpo. — Você sempre foi muito gentil comigo. Eu… devo muito a você.
Uma parte dentro de Mo Tian quis gritar. Suas memórias eram nebulosas e não se recordava de tudo o que aconteceu naquele fatídico dia, mas se teve algo que Song Ning não foi, foi ser gentil.
— Não precisa me agradecer, foi um prazer te introduzir ao nosso clã. — Song Ning colocou o punho fechado em cima do coração. — É surpreendente o poder que a palavra de um cultivador possui, não é verdade?
Mo Tian congelou no mesmo lugar e seu sorriso finalmente vacilou. Seus instintos o mandavam virar as costas e correr, mas sua mente racional sabia que seria em vão. Não adiantava se esconder se o estrago que Song Ning poderia fazer em sua vida não era contra sua integridade física.
Song Ning passou por ele, deu um tapinha em seu ombro e sussurrou em seu ouvido:
— Sabe onde me encontrar.
E se foi.
Demorou vários minutos até Mo Tian conseguir se acalmar. Suas mãos tremiam e o suor gelado na nuca escorria pela coluna. A roupa parecia apertada demais de repente. Fechou os olhos e respirou fundo, tentando procurar um lugar para se apoiar. Estava cercado de gente. A sensação claustrofóbica de que poderia ser esmagado a qualquer momento. Pelo clã. Por Song Ning.
Seria pedir demais não ter que se provar o tempo inteiro?
No meio do pânico, uma frase surgiu em sua cabeça, clara como água, mas turbulenta como um redemoinho no mar.
Meu desejo é viver em paz!
Com a mão trêmula, ele pegou o pincel e começou a escrever na lanterna. Os traços saíam grossos, dando vergonha a qualquer pessoa que prezasse por uma caligrafia impecável. Quando terminou a frase, sentia-se um pouco melhor, mas ainda com a sensação pulsante de querer sair dali o mais rápido possível.
Mo Tian se aproximou do canteiro onde o grupo de servos iria soltar suas lanternas. A lua cheia não estava visível, coberta por nuvens grossas que ameaçavam desabar em um temporal a qualquer momento. O tempo parecia cada vez pior; se continuasse daquele jeito, iriam ter que cancelar a parte preferida de todos, que era a hora de lança as lanternas.
Quando Mo Tian pensou nisso e o desespero começou a crescer novamente porque, ora, ele havia se esforçado tanto para trazer o evento mais perfeito dos últimos vinte anos, as nuvens começaram a se dissipar ao redor da lua, como fumaça. Ele achou assustador e duvidou dos próprios olhos. Tudo aconteceu tão rápido que ninguém percebeu, mas Mo Tian viu a lua prateada iluminar por inteiro a estátua do Coelho. Antes que pudesse esboçar um suspiro de surpresa, um raio atingiu o ornamento bem na cabeça, partindo-o em duas.
Mo Tian foi jogado para trás por uma lufada de vento. Um pouco antes de desmaiar, viu a silhueta de duas orelhas grandes cintilando no céu.
Continua...
No próximo capítulo...
Depois de desmaiar e ter sonhos estranhos, Mo Tian acorda confuso, sem ter ideia de onde estava. Mas ele reconhecia aquele quarto… ele estava na cama no quarto do líder??
No próximo capítulo: "Traidor"
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Até o próximo capítulo!
Beijos felinos,
Mork
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