Lindo, foi tudo o que Mo Tian conseguiu pensar quando encontrou o homem parado no centro do escritório.
Estava sem a parte superior das vestimentas pretas com detalhes em dourado, os dedos examinando um corte sangrento no peito, a pele sem sequer uma mácula à exceção do machucado recente que não parecia ser tão sério. A trança volumosa, de cabelos cor da lua, era longa como uma serpente e escorria por sua coluna, ao ponto de Mo Tian tê-la perdido no meio do caminho. Ter se perdido. Suas bochechas esquentaram por ter se demorado na imagem de outro homem se despindo.
O instinto de perigo disparou quando percebeu que ele era o novo líder. Só alguns seres nesse mundo poderiam ter um aspecto divino, com tamanha beleza impecável — mas esses seres imortais não sangravam.
A confusão na sua mente já era tanta que ele quase não escutou a pergunta, dita por uma voz grave e tão gostosa aos ouvidos quanto a aparência era aos olhos.
— O que você está fazendo aqui?
Pânico. Mo Tian estava estático, mas seu raciocínio já buscava formas de responder àquela pergunta e sair dali sem maiores problemas. Como se uma chave tivesse virado em seu anterior, Mo Tian sustentou um sorriso amarelo, usando seu instintivo mecanismo de defesa para lidar com a situação — ele era bom em usar a simpatia para convencer pessoas, afinal.
— Eu, na verdade, não sou ninguém importante e não faço a mínima ideia de como vim parar aqui. — E riu, coçando a cabeça de um jeito adorável, como um cachorrinho fazendo graça. Imperceptivelmente, caminhava para trás e pousava a mão na porta. — Desculpe interromper, senhor. Se me dá licença…
A porta foi aberta de abrupto, mas não por Mo Tian, que se assustou e deu um pulo para o lado, o coração saltando dentro do peito. Uma caravana de seis homens armados entrou no local e foi aí que Mo Tian achou que era sua hora. Eles tinham vindo para matá-lo.
Os homens entraram e se ajoelharam, batendo a armadura no chão, esperando por uma ordem. Aquele rapaz, o líder, os encarava com um visível incômodo que unia suas sobrancelhas claras, brancas como papel. Mo Tian podia sentir o fio da lâmina que cortaria sua garganta em breve…
— Eu solicitei que vocês cuidassem dele e me informassem assim que acordasse. Não fui claro na ordem?
O… o quê?
Definitivamente não era isso que eu estava esperando.
— Cães que falham em cumprir ordens não servem para mim. — Apesar das palavras duras, seu tom era solene e educado. Sua expressão, de tranquilidade. — Saiam.
Os dois homens continuaram prostrados com o corpo inteiro no chão, pedindo perdão com uma reverência digna somente do líder do clã. Se fosse Xiang Dao ali, ele com certeza usaria sua fuchen para marcar para sempre os infelizes que não cumpriram ordens simples. Naquele caso, entretanto, o homem nem estava em posse de qualquer arma.
Com a dispensa, todos os quatro saíram com cabeças baixas, mais impactados do que se tivessem recebido oitenta chibatadas cada. Tinham acabado de perder o posto de soldado, trazendo desonra às próprias famílias e perdendo todo o prestígio que vinha com o título.
Mais uma vez, Mo Tian estava sozinho com suas inúmeras perguntas.
Com aquele homem.
— Lamento por fazê-lo me ver assim. Xiang Dao não quis aceitar pacificamente a derrota e precisei me… sujar.
A voz aveludada acordou Mo Tian do seu transe e, quando encarou a figura, olhos vermelhos estavam fixados nos seus. Nunca havia visto olhos vermelhos em seres humanos em toda a sua vida. Aquele tom rubro ardente que faria qualquer um corar e desviar os olhos para outro ponto. Exatamente o que Mo Tian fez.
— Tudo bem, eu nem reparei — respondeu, colocando um sorriso simpático no rosto. Quem sabe não escapasse da punição assim?
Como um besouro sendo atraído pela beleza de uma flor venenosa, porém, o olhar dele foi atraído para a ferida que o homem enxugava com um pano repleto de manchas vermelhas, como se ele estivesse secando a tinta de um quadro. Como se um arquiteto estivesse tentando consertar o círculo cromático de um desenho perfeito, borrando ainda mais. Era agoniante de se ver. Mo Tian não se aguentou.
Ele deveria ter saído marchando da sala e corrido para tirar suas dúvidas com Yawen Chen, mas seus pés o guiaram para outra direção. Em direção ao perigo. Mo Tian não pensou quando tirou o pano sujo e marcado das mãos daquele homem, dobrou ao inverso e começou a limpar de forma apropriada todo o sangue escorrendo do machucado. Calmo e controlado. O tecido macio deslizava pela pele branca; o corte não estava tão longe da rubéola rosada do seu mamilo, saltando pela dobra do hanfu que escorregava pelo ombro. Mo Tian tentava focar só naquele corte e no sangue vazando. Ah, aquilo com certeza deixaria uma cicatriz feia.
Mo Tian conhecia aquele escritório. Cada estante. Cada gaveta. Sabia o que havia dentro de cada documento. Se tudo tivesse sido deixado como ele arrumou desde a última limpeza, a caixa com pomadas, talas e tecidos estaria na quinta gaveta do armário à esquerda. Mo Tian suspirou ao ver a caixa exatamente no lugar certo.
Enquanto ele terminava de limpar e fazer o curativo, os olhos vermelhos escorriam pelos movimentos de Mo Tian — o pulso correndo de um lado para o outro, o cuidado ao enfaixar, o respeito ao não encarar demais. Não tentou impedir. Não fez um movimento a mais que pudesse atrapalhar.
Quando enfim terminou, o homem recolocou seu hanfu preto com toda calma.
— Como ele não te matou, eu não sei — comentou Mo Tian, casualmente.
Mo Tian escutou um “hunf” irônico.
— Ele não é assim tão forte.
— N-não, não quis dizer isso! O senhor parece mesmo muito forte e saudável. Como isso — ele apontou para onde estava a ferida — não te matou, é a questão. Mas agora não vai mais te afetar. Não fiz muitos curativos na vida, mas acho que isso vai servir para estancar o sangue e não infeccionar.
Internamente, Mo Tian só pensava desde quando gaguejava ao conversar com outras pessoas. Onde estava a sua confiança? Sentia-se um adolescente outra vez, perdido e sendo julgado por gente desconhecida de uma seita inimiga.
— Não se preocupe com isso. Você já fez mais do que o bastante por mim.
— O que eu fiz por você?
— Você me salvou. Você me reviveu.
Eu fiz isso?
Mo Tian não teve uma reação imediata. Pensou ter escutado errado. Depois, no momento de silêncio que se seguiu, pensou no quanto aquela frase era um absurdo. Não só porque não se lembrava de ter revivido ninguém, como porque jamais iria violar o túmulo e a morte de uma pessoa para trazê-la de volta! Se fizesse isso, seria preso. Um passo fora da linha significava desconfiança e chacota, no seu caso. Jamais consideraria reviver alguém.
Ainda mais reviver alguém que sequer conhecia.
— Hm… — Mo Tian era ótimo em ter respostas prontas, mas se sentiu subitamente perdido. Lembrou-se dos homens sendo expulsos de seus cargos e tomou cuidado com cada palavra. — Veja, eu não faria algo assim. Reviver alguém? Eu não sou nem um cultivador, não tenho um núcleo, nem nada do tipo. Mas se estiver falando do seu machucado, o que eu fiz não foi realmente nada de-...
Não havia voz que se sustentasse quando um homem como aquele se aproximava subitamente, acabando com cada centímetro que os separava, afundando o rosto próximo ao seu pescoço, inalando o ar e o perfume de sua pele. Mo Tian sentiu o arrepio se espalhar sem controle, e ficou tão paralisado que se afastar se tornou uma ação esquecida no tempo. As pernas ficaram moles como papel. Também sentiu o odor dele. Um cheiro limpo, de folhas de outono após receberem insolação pela manhã, algo inebriante que o fazia lembrar dos momentos pós limpezas pesadas, quando assistia o fruto do seu trabalho brilhante. Mo Tian quase tombou para frente, mas conseguiu assumir controle dos joelhos antes que passasse por mais uma cena vergonhosa.
— Foi você. Eu me lembro do seu rosto, da sua promessa. Me lembro de você colocando o ornamento abaixo da luz ying da lua. Você foi a primeira coisa que vi quando voltei a esse mundo. Eu não iria me esquecer.
Apesar das palavras, sua expressão não era das melhores. Mo Tian pôde identificar uma pontada de decepção em seus olhos e não soube dizer porque aquilo o incomodou tanto. Mesmo não entendendo o que ele queria dizer, Mo Tian já estava pronto para se explicar pelo incidente do ornamento, o medo se avolumando em seu interior como uma lagarta envenenada.
A expressão facial diante de si endureceu.
— Seu rosto está uma confusão. Esperei que fosse me reconhecer, mas talvez as pessoas não se lembrem mais da minha imagem. Afinal, foram duzentos anos preso naquela peça de jade.
Com isso, as cortinas da realidade começaram a se abrir.
— Você disse que estava preso na jade? Aquela… aquela jade?
— Sim, eu estive preso lá por todo esse tempo. Como se sente sabendo que libertou um Celestial?
Eles ainda estavam perto para que qualquer suspiro ou a falta dele fosse sentido na pele do outro. E Mo Tian perdeu totalmente o ar dos pulmões quando seus olhos analisaram uma, duas, três vezes e de novo o cabelo daquela pessoa e finalmente vislumbraram duas orelhas brancas se escondendo entre os fios, estes tão prateados quanto fios de seda, exceto por uma mecha azulada que contornava a trança como as águas de um rio. Seus olhos arregalaram. Não havia volume de orelhas humanas. Só havia aquilo, que nenhuma outra pessoa era capaz de possuir, apenas um imortal. Um xian.
Orelhas de coelho.
— Ta Yeh — ele disse o nome do Celestial Coelho num fôlego só.
Continua...
No próximo capítulo...
“Se perder ali parecia… tentador.
— Venha comigo.
Mo Tian piscou, se achando na porta do labirinto rubro.
— Para onde?
— Já que está de joelhos, deve me acompanhar. Vamos fazer isso da forma correta.”
No próximo capítulo: "Xícaras de Dragões"
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Até o próximo capítulo!
Beijos felinos,
Mork
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