Para meus amores, amados, adorados, mortos. Tudo o que fiz, foi por vocês. - CELENE
A Biblioteca Real era conhecida por todo o continente.
Os motivos da sua fama eram diversos, o grande acervo que guardava mais de cem mil diferentes títulos de história, política, química, física, medicina, e dos mais diversos assuntos, o fato de ser o lar dos maiores estudiosos e mentes do século que trabalhavam incansavelmente para descobrir os mistérios inalcançáveis, mas principalmente, por ser a escola mais difícil, mais completa e mais elitista que existia no mundo.
As pessoas que moravam na Biblioteca Real eram as melhores de todo o Continente, isso porque todos os reinos enviavam seus próprios estudantes para se formar na Biblioteca Real, todos os reinos menos Sívinia, a grande rival de Astoria e seu inimigo em um conflito vindo de décadas.
A forma de ingressar eram difíceis, os saberes que as pessoas deveriam adquirir eram diversos e intensos, os alunos tinham que ter habilidades avançadas na memória, escrita e leitura, tinham que saber as línguas continentais, a história básica e um raciocínio avançado.
Só os melhores tinham o privilégio de se formarem na Biblioteca, mas isso não significava que apenas os mais ricos tinham acesso a essa oportunidade, surpreendentemente, diferente da cultura de outros reinos, Astoria acreditava que o ensino deveria incumbir a todos, e que todos podiam ter esse privilégio, que o conhecimento e estudo faziam as pessoas evoluir, isso significava que dois terços dos estudantes na Biblioteca eram astorianos, e dessa parte, metade vinha de origem humilde, e dividiam as mesma localizações, acessos e oportunidades com filhos de grandes comerciantes e lordes poderosos.
Isso era uma grande vantagem para Kale porque falar que ele vinha de origem humilde era muito, muito pouco. Kale não tinha nada, família, dinheiro ou posses, mas por causa da sua capacidade mental recebia o melhor que o mundo podia oferecer.
Ele também não era ingrato. Kale tinha noção da sorte que tinha por poder desfrutar de todas aquelas oportunidades.
E gostava muito. Exercitar a mente com o conhecimento era uma das coisas que o fazia levantar da cama todos os dias, sua mente obsessiva e curiosa, tinha que aprender mais, saber mais, e as vezes ser o melhor do que todos os outros que estavam ali.
A competitividade de Kale, era um dos motivos pelos quais a maioria dos estudantes o desprezava.
Kale não se importava, a opinião de desconhecido não fazia se sentir culpado de ser o melhor entre todos. Mas, todos o odiavam por ele saber que era melhor, apesar de não expor aquela característica evidentemente.
Kale sentia os olhares de raiva enquanto andava pelos corredores.
A Biblioteca ficava na capital de Astoria, contudo, se localizava no final da cidade, isso porque foi construído em um lugar espaçoso, com o objetivo de ser o lar de centenas de pessoas. A Biblioteca era dividida entre alas, os dormitórios, os acervos – que não se encontravam apenas livros, mas também qualquer tipo de artefato de estudo – os escritórios dos Mestres, as salas de descanso e por último, as salas de aulas.
Kale estava andando por lá, passando pelas salas de química, história da magia, religião, estudo dos povos, todos os tipos de matéria. Tudo isso para chegar em uma de suas salas favoritas.
A de medicina.
Ele entrou cuidadosamente, a porta estava fechada, era de madeira e velha, por isso foi devagar para não atrapalhar o professor que dava aulas naquele dia. Porém, apesar de Kale entrar no local, ele não estava ali para assistir como qualquer aluno, ele estava ali para ensinar.
A hierarquia da Biblioteca era bem distinta. Existiam níveis em que os alunos se encontravam. O nível mais alto era o do Mestre Supremo, desse tipo só havia um, o maior sábio de todos, existiam tantos critérios para se tornar um Mestre Supremo que Kale nem sabia de todos eles, mas este cargo era muito raro, isso porque uma vez que se tornava Mestre Supremo, só a morte poderia retirar seu título.
Depois disso havia Mestres, homens e mulheres formados pela Biblioteca que se mostraram tão distintos intelectualmente que foram convidados a ficarem como professores depois do término da jornada estudantil.
Havia também os discípulos, pessoas que estavam em um nível avançado de estudo que poderiam escolher quais áreas a se especializar e se tornarem ajudantes de Mestres. Não Mestres que eles mesmo escolheram, mas Mestres que convocaram pessoas específicas, isso significava que todos tinha que mostrar seu talento para serem escolhidos. Tinham que ser os melhores. Kale era um discípulo, um discípulo que estava se especializando em medicina, história política e por último e o único que ele não tinha escolhido, a arte da magia.
Por isso Kale estava na aula de medicina, ele era o ajudante aquele dia, ajudaria o Mestre Mori, seu tutor, a lecionar aulas que ele mesmo assistiu anos atrás.
Mestre Mori estava falando, a sala estava em silêncio, isso porque a idade avançada do professor fazia com que sua voz fosse tão baixa que se mais alguém falasse junto com ele ninguém entenderia.
Todos os alunos estavam com a cabeça abaixada anotando devidamente em seus cadernos. Kale observava tudo. Essa era uma das coisas que ele gostava tanto na Biblioteca, o esforço e a dedicação dos alunos ao estudo, ele sentia um grande prazer naquilo, e adoraria se o futuro permitisse se tornar um Mestre.
Mori levantou os olhos e encontrou Kale, com isso parou de falar, a falta da voz do professor chamou a atenção de todos que seguiram o olhar do tutor até Kale.
Ele não se importou com a atenção ou com os olhares feios, outro motivo pelo desgosto velado era a idade de Kale.
A maioria dos estudantes entravam na Biblioteca Real com seus vinte anos, se tornavam discípulos nos meados dos trinta, justamente por terem anos de aprendizados pela frente, a vida dedicada as Ciências eram um fator sério, as pessoas simplesmente gastavam toda a sua vida com isso, mas Kale?
Kale, ao contrário de todos os outros alunos da Biblioteca Real tinha se tornado discípulo com vinte e quatro anos, muito mais cedo que a maioria das pessoas.
Kale ficou sério e não sinalizou nervosismo na frente do escrutínio dos alunos. Mestre Mori sorriu. Levantou a mão em um sinal para Kale se aproximar.
-Meu discípulo. – Ele cumprimentou enquanto Kale murmurou “Mestre” – Trouxe tudo o que pedi?
Kale assentiu se aproximando de Mori com uma caixa em suas mãos e uma bolsa em seu torso.
-Maravilha, maravilha. – Mori falou com um sorriso. Ele passou as mãos pelas roupas e se sentou meio ofegante. – Me perdoem pelo cansaço, mas vou me sentar um pouco senão se importam.
Mori parecia com dificuldade de respirar, o rosto vermelho e soava bastante, Kale deixou os pertences em cima da mesa e se voltou preocupado com seu mentor. Mori era velho, e com sua velhice vinha alguns problemas de saúde inevitáveis, isso, porém, não fazia com que Kale parasse de se preocupar.
Ele pegou um lenço entre suas vestes e passou pela testa de Mestre.
-O senhor quer um copo de água? Voltar para seus aposentos? Um chá de lirabel? – Ele perguntou baixinho, mesmo que todos conseguisse ver e provavelmente até ouvir.
Mori tossiu um pouco, mas balançou a cabeça.
-Não, não. – Ele falou. – Estou bem. Apenas a idade me alcançando. – Ele falou com um sorriso. – Achei que tinha me escondido bem, mas ela sempre me acha.
Kale não sorriu junto, ele olhava para o Mestre com escrutínio como se o analisasse procurando por qualquer sinal de doença ou mal-estar.
-Vamos, Kale. – Ele reclamou. – Não seja tão mal-humorado e sério.
-Não posso rir do senhor enquanto sei que passou mais uma noite inteira acordado. – Ele murmurou. Mori levantou as sobrancelhas meio surpreso, Kale deu de ombros.
-Seus olhos estão cansados. – Ele explicou. – E suas olheiras muito maiores.
Mori sorriu.
-Obrigado por tantos elogios.
-O senhor é de idade avançada. – Kale disse enfático. – E sabe que não pode mais fazer certo tipo de coisas. Renegar o sono é uma delas.
-Tinha muito o que fazer, meu filho. – Mori falou mais sério.
Kale concordou com a cabeça, sabia das responsabilidades de seu Mestre, e enquanto ajudava a descarregar toda aquela pressão realizando um pouco das atividades, porém, não conseguia pegar o necessário para o descanso do Mestre por causa de suas próprias tarefas.
-Vamos cancelar a aula de hoje, e o senhor voltará para seus aposentos para o descanso. – Kale pediu.
Mori balançou a cabeça.
-Mas, é claro que não. Temos muito o que fazer e ensinar. Surpreendentemente já me sinto melhor, sua presença sempre tem esse efeito em mim – Ele levantou, mas se desequilibrou. Seus pés cederam e Kale foi rapidamente ajuda-lo, Kale e todos os outros alunos da sala, todos se levantaram ao mesmo tempo e olhavam de pé preocupados com o Mestre.
-Mestre Mori, por favor. – Kale pediu, mas uma vez. – O senhor claramente não está disposto.
- Não podemos desistir de nossos afazeres por prazeres bobos.
-Prazeres bobos? – Kale falou rindo indignado. Ele balançou a cabeça, sabendo que não poderia discutir com o Mestre, ele sabia melhor, tinha vivido por muitos anos para saber. – Mal consegue ficar de pé!
Mori olhou para Kale com tanta intensidade que Kale se arrependeu de suas palavras. Esqueceu por um momento que estavam em público, e por mais que Mori não se importava com a informalidade e os enfrentamentos de Kale em particular, em público, isso pareceria que Kale era desrespeitoso com o próprio Mestre.
Ele abaixou a cabeça e pediu desculpas humildemente, mas Mori estava enganado se achava que ele deixaria de lado as dificuldades que seu Mestre estava passando.
-Então. -Kale começou. – O senhor fica sentado aqui e eu faço a demonstração da aula sob sua orientação. – Ele cedeu.
Mori levantou as sobrancelhas.
-Uma boa ideia. – Ele disse. – Devia ter mais dessas.
Kale deu um sorriso forçado.
-Não saia desta cadeira, está bem? – Kale falou.
-Claro. Agora voltemos para a aula.
Kale se virou para os estudantes que o analisava. Kale se aproximou da mesa tirando as coisas da bolsa, tudo o que era necessário para uma aula prática de medicina.
-Se aproximem, aprendizes. – Mestre Mori falou. – Hoje teremos uma demonstração prática sobre o assunto que acabamos de discutir. A anatomia humana.
Kale abriu a caixa e começou a retirar de dentro dela pedaços de ossos de um braço humano. Ele colocou todos em cima da mesa com cuidado, retirou a caixa vazia e começou a montar o braço com todas as partes nos lugares corretos, como algum tipo de quebra-cabeça estranho.
Mestre Mori começava a falar enquanto os aprendizes se aproximavam e olhavam para o que Kale fazia.
Durante aquele momento, enquanto Kale montava as partes dos
ossos, sua mente desligou, os pensamentos cessaram e pela primeira vez no dia,
Kale se sentiu em paz.
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