O estouro foi audível para todos ali, os nativos se agitaram de imediato, os lobos tensionaram seus músculos como se prontos para correr depois de verificar o que estava ocorrendo. os olhares dos magos correram na direção de onde o som tinha vindo, e um segundo depois, ele se repetiu de novo, várias vezes.
Com um grunhido seco, os lobos se agitaram, os ciranos gritaram algumas ordens para os animais e voltaram a correr. Nattan, entre a selva e os nativos, saltou daquela direção enquanto seu grupo se aproximava dele às pressas, e com preocupação, viram a matilha fugir na direção contrária de onde vinham os sons dos tiros. Mas, contudo, os disparam apareceram naquela direção também. De forma trágica, as balas que zumbiam no ar e ricocheteavam nos troncos almejando os nativos acertaram seus alvos por pouco mesmo com a armadilha elaborada dando frutos. Alguns lobos deixaram escapar uivos de dor, mas seguiram em frente com determinação ligada aos seus donos nas costas e avançaram para dentro da floresta disparados.
- O que tá acontecendo? – Jhon se perguntou, se aproximando de Nattan, que se unia a Fyrr e observavam juntos a matilha se afastar.
- Estão vindo, - Fyrr revela, virando suas orelhas animalescas instintivamente.
- Mais lobos? – Hory questiona.
- Não, são sons de botas, e vem da mesma direção das balas. São os atiradores. – A raposa os conta, se erguendo despreocupadamente e encarando a fonte dos sons agitados em perseguição da matilha que se afastava cada vez mais.
Quando os outros se levantaram, já era visível a nova virada de eventos.
Da direção contrária à deles, um grupo de menos de dez homens se aproximava, e não qualquer um, como o bom senso lhes instigava a pensar. Cada um vestia os uniformes brancos militares, com calças e botas de camuflagem, correias nas costas que prendiam os tubos com seus suprimentos e uma longa banha de facão na cintura. Todos com baionetas nas mãos, corriam com cuidado saltitando entre as raízes expostas das árvores imensas e do terreno extremamente irregular, e com certa habilidade, mostrando que tinham experiência nisso. Seus chapéus escuros e altos tinham a sua credencial no centro, o símbolo de armas de Krista, que deixava tudo ainda mais claro.
Eram todos curdos, mas isso não fazia diferença. O grupo já estava de atenção dividida entre a matilha e os quatro. Porém, com uma olhada cuidadosa, sentiram que o segundo grupo que emboscava a matilha já estava iniciando a perseguição contra ela, logo, sua atenção se voltou inteiramente aos quatro desconhecidos encontrados num lugar onde era praticamente proibido de se estar se não tivesse permissão prévia, ou caso fosse um louco.
Circulando-os cautelosamente, não chegaram a apontar suas baionetas neles, mas os perscrutaram firmemente com o olhar enquanto mantinham as baionetas em descanso na frente do peito.
Os soldados kristanos os cercaram num semicírculo. Segundos depois, mais alguns passos apressados apareceram, e surgindo por de trás do grupo, outros três soldados tomaram a dianteira. Um deles, o líder aparente, carregando um trio de medalhas no peito, esmagava sem preocupação a terra e folhagens mortas enquanto não tirava o olhar afiado do grupo que permanecia quieto e indeciso. O homem de cabelos ralos escuros e olhos ardilosos pousou primeiro no mais estranho das figuras, uma criança de pelo menos onze ou doze anos de cabelos loiro-pálidos e olhos violetas, mas que carregava um par de estranhas orelhas caninas na cabeça e algo como um véu de mesma cor atrás da cintura, apesar da incrível semelhança, ele não possuía o ar que os kristanos tinham, então fitou os dois homens jovens, um carregando uma espada longa e fina numa mão, e sua banha preta circular na outra, mais o jovem de cabelos escuros mais curtos de franja dupla, devolvendo o olhar do soldado com peso. Por último, o mais problemático deles, um kristano, jovem, acabando de beirar a vida adulta, este com certeza era um pelo seu semblante, o soldado já havia passado tempo o suficiente entre eles para saber disso.
- Capitão, - o soldado baixinho e parrudo ao seu lado exclamou, dividindo sua atenção entre os jovens e o líder – como proceder?
- Siga o grupo delta e mande-os voltar, é inútil tentar uma perseguição no território deles. – O capitão ordenou, ainda fitando o grupo estranho.
- Certo, metade de vocês, sigam-me!
Com essa ordem, boa parte do grupo se dividiu, ainda muito incertos com o que fazer quanto a visão inesperada que atrapalhou sua missão de emergência, e com uma última olhadela, o soldado de liderança menor guiou o grupo divisório, fitando os estranhos pela última vez e adentrando a selva, rapidamente sendo cobertos pela vegetação.
- Ora, ora, - o capitão comenta, quebrando o silencio mórbido e incerto na atmosfera. Gentilmente ajeitou o chapéu militar na cabeça, colocando um sorriso cínico na cara e encarando os estranhos de novo – o que temos aqui? É algum tipo de desafio de festa de debutante que os jovens estão experimentando hoje em dia?
O silencio se adensou enquanto os soldados e o grupo trocavam olhares tensos. O olhar do capitão seguiu abaixando para chegar na criança, e acabou mergulhando no brilho da lâmina de Nattan, que continuava a segurando despreocupadamente, e enviava ao soldado um olhar indiferente, o que se destacou bastante na mente do capitão, interpretando como algo que deveria deixar uma mensagem, mas então, o silencio é quebrado inesperadamente.
- Minha nossa! Que medo. – Fyrr exclamou, atraindo a atenção de todos para si – esse lugar é bem mais estranho do que os comentários que ouvi, se não é a falta de comida que nos mata, são insetos venenosos, o calor, ou lobos gigantes com ciranos montados neles. – Ele comentava com humor na voz.
Audaciosamente deu alguns passos na direção do capitão. Passos calmos e calculados, mas que ainda despertaram o instinto dos soldados de apontarem as baionetas na direção do garoto, que não se intimidou sequer um momento. O capitão, talvez encantado com aquela perspicácia, não se moveu do lugar também, suportando o olhar frio diante daquela situação que o garoto demonstrava. Ele não era normal, essa foi uma nuance extremamente importante que o soldado notou de imediato.
- O que acha que está fazendo, garoto? – o capitão perguntou, com calma, mas ciente das armas apontadas atrás dele, e não pareceu se importar em abaixá-las.
- Oh, é mesmo, para vocês eu vou sempre parecer um garoto, certo? – Fyrr comenta, de mãos unidas na frente do corpo ocultas em suas mangas longas do quimono, como um velho sábio, mas expressando todo o seu desdém diante da situação, e também divertimento, o que intrigou mais ainda o soldado – na verdade, como pode ver, eu não sou humano, pelas orelhas e cauda animalescas, - comentou, se virando e balançando os membros de raposa – pode dizer que sou um ser semi-espiritual, o que quer dizer que apontar esses canos de metal pra mim não necessariamente significa alguma coisa.
A confiança que o garoto passava, a tomada de dianteira naquela situação e suas palavras escolhidas confirmavam o sinal de que ele não era normal, agora restava apenas sua decisão final de confirmar ou não nele, mas o capitão tinha suas dúvidas. Nada que aparecia de repente naquela floresta infernal significava algo bom.
- Por favor, não quero que pense que somos contrabandistas ou fugitivos tentando pegar um “atalho” pela floresta, eu posso lhe garantir que tenho assuntos muito mais urgentes que isso.
- Abaixem as armas! – o capitão ordenou, e em uníssono, seus soldados obedeceram, ainda que incertos daquela situação – certo, então, senhor Espírito, é algo até crível vê-lo vagar por aqui com certa despreocupação, mas me desculpe dizer que você está num grupo um tanto quanto... suspeito. – O capitão comenta, passando seus olhos diante do resto.
- Eu entendo, mas por favor, não se assuste, eles são todos magos de quarto círculo que eu contratei apenas como proteção e mão de obra para meus fins, posso confirmar isso com uma cópia do contrato se quiser. Não vim até esta floresta ficar atoa e atrapalhar o seu trabalho...
- Ho ho, não se preocupe, estávamos agora numa situação complicada, mas isso acontece sempre. Quanto a essa documentação, eu gostaria de dar uma olhada, mas por agora, acho que fomos longe em quebrar formalidades. – O capitão diz, sorrindo ao entrar na linha do estranho garoto.
- Oh, me desculpe a descortesia. Meu nome é Ligh, - ele se apresenta, curvando-se levemente – eu sou um ser semi-espiritual como comentei antes. Os magos atrás de mim tinham o trabalho de me escoltar e terminar um serviço que estou fazendo a uma transportadora de materiais. Mas como você pode ver, não demos muita sorte no serviço. Estávamos no acampamento do pedágio para entrar algumas horas atrás em busca de informações sobre os produtos de uma caravana que foram roubados e arrastados por saqueadores até algum ponto da floresta. Basicamente estávamos explorando os arredores quando acabamos nos esbarrado com uma pista deles, eu insisti que deveríamos ter voltado e pedido ajuda externa, mas meu socio... é um tanto quanto impaciente, e acabamos no aprofundando mais do que deveríamos, e quando menos percebemos, a matilha dos lobos acabou nos encontrando e tivemos que correr o máximo que conseguimos, e agora, estamos aqui no meio do nada.
- E por que tanta pressa em se aprofundar nesse lugar perigoso?
- Ah, acho que o senhor não entendeu, é que, o carregamento que estamos procurando é de certa forma... um tanto quanto problemático, você me entende? – o garoto acentuou, com um toque cuidadoso na sua fala.
- Hoo....
Fitando-o de cima, Fyrr aproveitou o olhar curioso, e fisgando mais um pouco sua isca, deu uma olhadela pra trás, apontando seu olhar de esguelha na direção, de Jhon, quem sentiu que foi o único que atraiu a atenção total do soldado, deduzindo isso, não foi difícil buscar um elemento para fazê-lo juntar as peças mais convenientes para sua história.
- Eu acho que consigo entender a sua pressa, senhor Espírito... – o capitão murmurou com leveza, fitando o kristano com cuidado. Independente de se o que eles estavam dizendo era verdade, o garoto era um genuíno kristano, e se todos fossem realmente magos de quarto círculo, seria mais problemático ainda. Amaldiçoando sua sorte, o capitão desceu seu olhar lentamente para a lâmina prata da espada de Nattan, que a segurava largada na mão.
- Nattan, guarde isso, não acha que está sendo mal-educado com os nossos soldados honrados? – Fyrr exclamou.
Trocando olhares, ambos afiaram sua intuição, e sem pestanejar, o espadachim embainhou sua arma e a guardou na cinta, aliviando um pouco o fardo iminente do capitão, que se voltou outra vez para a criança, que o observava com uma calma assustadora. Sorrindo cordialmente, ele apoiou a sua baioneta no chão e pôs a mão no peito numa curta apresentação.
- Me desculpe ter demorado a me apresentar. Meu nome é Denovo, capitão da base fronteiriça da 47° equipe de controle de monitoramento. Me desculpe a descortesia, mas creio que se encontram num péssimo momento para terem adentrado esta selva. Acho que não preciso dizer que qualquer hora é uma péssima hora de entrar aqui, e que se fossem pessoas normais já estariam presos e multados, porém, imagino que sua situação é bem mais complicada, não é?
- Acredite em mim, capitão Denovo, eu sou uma das últimas criaturas espirituais que gostaria de ter entrado neste lugar amaldiçoado, mas o garoto kristano atrás de nós, bem, como pode ver, o pai dele é meu sócio de negócios, e pode muitas vezes ser uma pessoa problemática e impaciente, sabe como são esses kristanos, quando sentam numa cadeira alta, agem como se tudo o que fazem fosse sempre a escolha certa a se fazer e que tudo vai sair como desejado, como se largar o seu próprio filho no meio de um ponto de negociações importantes sob o risco de ter a garganta cortada por rivais fosse fazer dele um homem de verdade, ou que mandar todos os melhores mercenários que deveriam estar protegendo o nosso ponto seguro neste momento vulnerável pra nos jogar no meio desse pedaço do inferno fosse de alguma forma nos ajudar a recuperar o prejuízo.
- Hahaha, - riu o capitão, com um genuíno tom de identificação – Então você também tem um porco branco como chefe, não é? – soltou ele, sem nenhum receio dos que estavam ao seu redor ouvirem, mais focado no garoto que nunca.
- Infelizmente, e pelo visto, também estamos tendo um péssimo dia pra se trabalhar.
- Nem me fale, uma hora estou assinando uma pilha de papéis, na outra, tenho que separar um batalhão e perseguir esses macacos fudidos em cima dos seus cachorros pra na outra, acabar me esbarrando com quatro meliantes extremamente suspeitos. Pelo visto até criaturas espirituais tem problemas mundanos pra se resolverem, não é?
- Se ao menos sua carne e seus ossos não fossem tão lerdos e frágeis, eu já estaria bem longe daqui, farejando de perto o rastro dos desgraçados que ousaram roubar minha carga. Bem, acho que esse é o destino dos espíritos que escolheram jogar esse jogo de marginais com suas regras, não é, senhor capitão?
- Sim... – o capitão murmura, se afundando nos olhos grandes e violetas da criança mais perspicaz que já encontrou na vida. – é complicado sim. – Ele suspira, desviando o olhar – bem... acho que já está tarde demais pra tentarmos escoltá-los de volta, e não temos ainda muita organização para propormos um bom negócio para ajudá-los... então, eu proponho um acordo, que tal?
- Bem, tanto eu quanto você só queremos resolver logo nossos problemas e voltar pra casa inteiros, então, não vejo por que não. – Com ousadia, comenta Fyrr, sorrindo de volta para o riso falso que o capitão o lançou, ainda incerto do que fazer quanto aos estranhos, mas tendo uma boa ideia de como resolver estes dois problemas com uma cajadada só.
- Sim, concordo com você, senhor Fyrr.
Estendendo sua mão, o capitão coloca um sorriso verdadeiro no rosto, e com leveza, Fyrr a aperta com suas pequenas mãos.
Comments (0)
See all