Please note that Tapas no longer supports Internet Explorer.
We recommend upgrading to the latest Microsoft Edge, Google Chrome, or Firefox.
Home
Comics
Novels
Community
Mature
More
Help Discord Forums Newsfeed Contact Merch Shop
Publish
Home
Comics
Novels
Community
Mature
More
Help Discord Forums Newsfeed Contact Merch Shop
__anonymous__
__anonymous__
0
  • Publish
  • Ink shop
  • Redeem code
  • Settings
  • Log out

Entre Dunas

Ar de Cincino

Ar de Cincino

Dec 14, 2023

This content is intended for mature audiences for the following reasons.

  • •  Physical violence
Cancel Continue

PARTE 1
CADEADO

            — O reflexo, a imagem e a sombra unidos em um só. Degradando um ao outro até demolir tudo ao redor.
                  — O que isso quer dizer?

***
                — Cacete ... — resmunguei enquanto tentava adequar meus olhos à claridade do sol.
              Não lembro de parecer tão indolor da última vez... se bem que estava tão bêbada que levei bem dois dias inteiros para recobrar os sentidos totalmente. Ainda desconfio que os malditos guardas haviam batizado minha taça, infelizmente para eles minha resistência ao álcool é tão intensa quanto a ressaca depois dela.
              Pontadas de dor latente na lateral da minha cabeça ficaram me lembrando disso.
             — Merda! — dessa vez praguejei. Em alto e bom som. Para mim mesma, para as ratazanas da cela e para os homens roncando em cima de mim.
               Da cela?!
           Me levantei em um pulo e cobri parte da visão, com o pulso, contra os raios de sol que invadiam o cubículo escuro e úmido de pedra em que eu estava detida.
Isso não era nada bom, nada bom mesmo.
          Chutei as barras em frustração e, em seguida, um dos bêbados que me serviu de cobertor durante a noite. É dia. Estou perdida no tempo, mas a julgar pela cor do céu, o sol tortura quem estiver lhe enfrentando no início da tarde.
          Bufei, passando as mãos pelo rosto e me forçando a acordar.
          As minas. Precisava estar nas minas.
      — Se tivesse dormido um pouco mais eu teria recuperado o dinheiro que me tomou semana passada —cantarolou Sinamon, um guarda local que marchava em frente à minha cela com as mãos atrás das costas e um sorriso de satisfação quase não totalmente escondido pelo bigode curvo.
       — Se eu tivesse dormido um pouco mais acordaria com a forca no pescoço. — Cocei um dos olhos para me livrar das lágrimas indesejadas causadas pela irritação da luz e me aproximei das barras, forçando meu sorriso mais angelical — A não ser que um grande amigo me desse uma mãozinha...
       O magricela guarda molhou o pão no chá quente e mordeu, parecendo ponderar. Aquele gesto ainda me revirava as entranhas em repulsa. Entranhas essas que fizeram questão de me lembrar, de forma não muito delicada (com uma violenta pontada), que precisavam de alimento de verdade.
        Mal lembro a última vez que ingeri algo sólido. Há dois dias? Mais?
       — Posso dar bem mais que a mão. E quase fiz isso, se não fossem por esses imbecis aí com você. — Sinamon indicou com o queixo os dois homens dormindo no último canto escuro da cela.
Mas não acompanhei a direção. Minha expressão podia denunciar abominação pelas últimas palavras do guarda.  Magicamente a fome sumiu.
    Engoli em seco e respirei fundo, ficando de costas para o traste de bigodes, tentando decidir se era a desidratação ou a marcha constante dele que estava começando a me deixar tonta.
      — Como vim parar aqui?
     Independente da resposta, posso tentar enrolar ele por tempo suficiente para apagá-lo e roubar as chaves que balançavam no quadril armado de Sinamon. Poderia tentar pegar punhal dele se chegasse perto o suficiente.
    — Bem ...— ele terminou de lamber a gordura dos dedos e deixou a caneca de metal em um ganchinho na parede do outro lado do corredor, distante das celas infelizmente, e prosseguiu — sabe a taverna do filho do açougueiro? Aquele que vendeu os dentes?
        Assenti. Porco-Banguela, o nome da taverna.
       — Então, você começou uma briga lá e ninguém soube dizer o motivo.
       Desdenhei com um gemido. Mas estava começando a lembrar vagamente de uma mesa redonda e fedendo a bebida velha e barata, risadas, palavrões, cartas, dinheiro... Minha mente dissolvia as imagens como fumaça quanto mais eu forçava a lembrar, então parei de tentar.
        — Fui presa por uma briga de bar? Minha vida chegou ao fundo do poço mesmo.
      — Não. — Ele imitou a minha posição, mas apoiado ao lado da caneca somente para me observar, acredito. Magricela nojento — foi presa porque tentou fugir roubando o cavalo do capitão, mas estava tão bêbada que não se aguentou e caiu. O cavalo está sumido até agora.
      Revirei os olhos, só pode ser algum tipo de sacanagem! Eu não monto um cavalo há anos, por que a bebida me humilhou, e pior, me entregou, dessa maneira?! Infernos...soltei a língua seca do céu da boca e o som foi a representação do meu puro desgosto.
     — Se não consegue proteger o próprio cavalo de uma garota de rua, imagina só, manter a segurança da cidade inteira.
     — Dora...Dora, você vai perder a língua. — Sinamon me advertiu e achei ter percebido uma movimentação da dupla roncando do outro lado da cela.
    — Vou morrer logo, então dane-se. — Fiz um gesto qualquer com as mãos que garantiu nojentas risadas do guarda.
      — Adoro isso em você, pivete! — ele gargalhou, exibindo seus dentes ensebados.
       Revirei os olhos novamente dessa vez por impaciência.
      — Vamos logo resolver isso, Bigode! Quanto você quer dessa vez? O que quer? Pode falar seu preço, sabe que consigo.
      Sinamon negou com o dedo indicador.
      — Não vou mais acreditar nessas suas promessas vagabundas. Da última vez me jurou entregar carne.
     — E eu entreguei, sim! — protestei. Ainda tenho cicatrizes pelo esforço que foi invadir o cercado e roubar as carnes de sal do açougue.
      — Só para roubar de volta nas cartas!
      Inclinei um sorriso travesso
       — Não tenho culpa alguma. — disse com meu melhor tom diplomático.
     — E é por toda essa sua coragem que vai ser mandada daqui pivetinha de rua. — Ele tinha repulsa na voz. Nada como um velho bêbado de ego ferido. — Vai ser vendida junto às galinhas nas cidades escravistas e espero que abatida como elas, também.
    Sinamon cuspiu em minha direção e se aproximou da cela. Eu me afastei quase da mesma quantidade de passos, mas não por me sentir ofendida ,e sim, pelo choque que as palavras dele me causaram; ser vendida. Escrava.
      — Então você vai deixar de ser problema meu — não tinha reparado que ele ainda falava, até sentir o hálito do guarda próximo de mim, a mão dele permanecia sobre o cabo do punhal —, vai ser marcada como gado e mandada para os piores bordéis do Distrito Escravista — a voz dele, o olhar dele, tudo nele fedia a luxúria.
       E eu já não tinha mais espaço para escapar.
      Agarrei o último pedaço livre da única parede de pedra da cela, os dois outros ainda dormiam e ocupavam o espaço que me manteria numa distância segura de Sinamon. Só a grade da cela me separava dele mas se o guarda esticasse o braço entre elas conseguiria me tocar onde quisesse.
     — Vou saber onde você fica — ele esticou o braço como imaginei e eu tentei me afastar o máximo entre as pernas dos dois bêbados, com cuidado para não acordar nenhum deles.
        A última coisa que preciso agora é de três homens me cercando num cubículo.
      — E garantir que nunca se esqueça dos nossos velhos tempos — a mão dele tocava meu rosto e ameaçava descer para os seios, mas antes que tentasse dei o bote de uma serpente e cravei os dentes em sua carne podre, forçando o pulso dele na posição oposta até os gritos do magrela de bigodes receber harmoniosamente um estalo peculiar de dentro da pele.
    — Vadia! — ele praguejou, entre outras coisas, agarrando meu cabelo com a mão boa e puxando meu rosto contra as grades.
      O gosto de sangue escorreu pelos dentes e minha língua agradeceu pela umidade amarga.
       — Prefiro a forca. — Minha voz saiu abafada pelo sangue que cuspi e pelo nariz quebrado que agora tinha.
      A pancada deixou meu nariz tão dolorido que mal senti a dor no cox de quando ele me empurrou contra o chão para sair dali segurando o braço torto. Quis me deitar contra a pedra suja, mas me mantive sentada e com a boca aberta para conseguir respirar, já que o nariz estava inútil.
      O sangue não parava de escorrer e estava começando a encharcar minha roupa. Era o último par de vestes masculinas que eu tinha e iria me doer demais perder as peças na imundice de uma cela de prisão, porém, por outro lado, se eu não controlar esse sangue corro risco de desmaiar com aqueles dois ainda atracados do meu lado.
      Tossi algumas lufadas de sangue e tirei a blusa surrada cor de argila para estancar a hemorragia, ou pelo menos tentar. A boca aberta aspirava ar e o minério em pó do qual aquelas pedras eram feitas, o fedor de urina velha me mantinha ciente e conforme os minutos passavam o jato quente deixou de jorrar pelas narinas e o sangue cristalizado ameaçava pinicar, mas contive o impulso de limpar para tatear com as pontas dos dedos o nariz dolorido.
       Não parecia quebrado, mas a cartilagem estava num ângulo estranho, meio fundo e meio desviado para a esquerda, uma bagunça! Contudo, uma bagunça bem mais fácil de resolver que o braço do maldito Sinamon.
De qualquer forma, depois de três puxadas de ar seguidas para criar coragem, encaixei a cartilagem de volta no lugar e dois estalos (e algumas gotinhas de sangue) depois as narinas estavam a pleno funcionamento.
     Aproveitei do alívio por alguns poucos minutos até retornar a minha triste realidade: presa sentenciada, desidratada e agora com frio. Praguejei baixinho, andando de joelhos até o outro lado da cela para garantir um pouco de segurança. Bati a cabeça na grade levemente e apertei os olhos, levantando o queixo para cima enquanto limpava as mãos do pó de cincino.
        Estou na merda. Muito na merda.
        Já tinha sido presa antes, obviamente, crescer na Fossa, sendo mulher e órfã não nos dava muitas opções de sobrevivência: ou se prostituía ou roubava. Por sorte, cresci com o dom, ou com a coragem não sei, suficiente para conseguir pegar para mim o necessário para subsistir e com o tempo fui aperfeiçoando minhas técnicas até ser natural.
     Certamente a quase desnutrição foi uma aliada durante a adolescência, já que eu parecia qualquer outro garoto das ruas se minha altura não tivesse começado a denunciar a idade até passar a chamar atenção dos mercadores que furtava, e durante uma manhã movimentada, fui pega a primeira vez roubando algumas fitas de pele de peixe. Recebi açoites e fui mandada para o templo, já que não tinha casa. Fugi de lá dias depois.
    Na segunda vez os guardas que me pegaram viram utilidade nos meus serviços, se é que se pode dizer isso...eles ofereceram minha liberdade em troca de pequenos furtos. A galinha de um agricultor, as peles de um caçador, algumas ervas alucinógenas do boticário, pequenas coisas que poderiam muito bem tomar a força e não encontrariam resistência, mas teriam que entregar ao capitão. E nenhum deles queria isso, ainda mais carne que era tão caro.
       Assim fui seguindo até manter minha lista de clientes e minha cabeça fora da forca, já que depois do terceiro roubo você não tem mãos para serem decepadas. Engraçado, seguindo essa lógica, eu deveria estar morta há uns seis ou sete anos.
       Dizem que nem sempre foi assim. A justiça, quero dizer.
      Os extremistas governam a oeste do deserto inteiro desde que me dou por gente e nunca conheci um mundo diferente do qual habito atualmente, principalmente um que certa vez foi centrado numa única pessoa como dizem que já foi o Continente. De uma forma ou de outra, os extremistas não nos dão tempo para pensar no passado quando o dia seguinte nunca é garantia de sobrevivência. Precisamos obedecer e acatar as leis deles, as vontades deles, os impostos deles, a religião deles e todo o contrário é sinônimo de enforcamento ou fuzilamento e agora, pelo visto, escravidão.
     As cidades escravistas são, na verdade, três grandes mercados, com distritos populacionais ao redor, que fazem fronteira com o deserto, com as rotas marítimas para outros continentes e com a Península que é outro reino mais ao sul. Nesses mercados se encontra de um tudo. Absolutamente tudo. Inclusive os sacerdotes restantes desse lado do deserto. Tem gente que ainda acredita na magia deles, mas eu não. Acho que a magia não habita corpos corrompidos como o dos humanos e se dissipou na natureza, tanto que criaturas mágicas existem no deserto até os dias de hoje e são proibidos de serem caçados por civis.
       A caça, na verdade, é proibida.
       Entretenimento exclusivo dos extremistas.
       O regime opressor é tanto que a mobilidade social é nula. Os únicos ricos pertencem a Guerrilha deles, quem não é bom no campo, vai para as minas de cincino, que é uma porcaria de minério tão instável que se extraída incorretamente vira uma poeira fina tão irritante quanto a própria areia quando em contato com qualquer superfície, inclusive com a comida. Quem não se encaixa nesses perfis é dividido entre pobres e miserável.
       A situação é pior para as mulheres, em especial. Nossos corpos não nos pertencem e somos obrigadas a cobrir com a maior quantidade de tecido possível para evitar ser atacada — não é tão eficaz já que as mulheres casadas, geralmente usam lenços coloridos ao redor do cabelo, são forçadas direta ou indiretamente. Ou seja, não temos valor nenhum. Somos menos importantes que o esterco das ruas e só conseguimos um tipo não muito eficaz de segurança quando casadas. A maioria casa logo depois do primeiro sangramento e os homens conseguiam manter quantas esposas conseguissem alimentar sem contar os filhos, obviamente, que quando eram demais acabavam nas portas dos templos ou trocados por algumas moedas em casas de prazer onde as condições eram relativamente melhores do que nas ruas.
        Guardas como Sinamon são considerados bons amigos se comparados aos novatos ou aos de patente mais alta. O do bigode é nojento sim, mas nunca atacou mulher alguma, pelo contrário, já vi ele oferecer pagamento "personalizado" às garotas de todos os tipos de idade que se aproximavam com fome, frio ou dor e assediava qualquer uma aparentando ser casada ou não. Mas não forçava ninguém. Num verão em particular, com seca extrema há semanas, eu estava quase morrendo por inanição numa ruela qualquer e ele me ofereceu água em troca de "alguns minutos". Fiquei tentada, admito, mas estava morrendo, e a água só me faria existir por mais alguns poucos dias. Eu não queria agonizar até a morte com o cheiro dele em mim, então neguei e ele não tocou mais no assunto. Em outros lugares, infelizmente, outras mulheres não têm a mesma sorte. Por isso algumas famílias, tentando escapar da repressão, fogem para o deserto e encontram a morte lá.
        Acho que morreria por lá também.
      Entre as criaturas mágicas e as dunas. Dizem que não existe noite mais bonita do que aquela observada no deserto. Acho que morreria tranquilamente com essa visão.
    

custom banner
mirandamilla66
miranda_vance

Creator

Comments (0)

See all
Add a comment

Recommendation for you

  • Blood Moon

    Recommendation

    Blood Moon

    BL 46.9k likes

  • Invisible Boy

    Recommendation

    Invisible Boy

    LGBTQ+ 11.1k likes

  • What Makes a Monster

    Recommendation

    What Makes a Monster

    BL 73.5k likes

  • Silence | book 1

    Recommendation

    Silence | book 1

    LGBTQ+ 26.5k likes

  • Touch

    Recommendation

    Touch

    BL 15.3k likes

  • Secunda

    Recommendation

    Secunda

    Romance Fantasy 41.9k likes

  • feeling lucky

    Feeling lucky

    Random series you may like

Entre Dunas
Entre Dunas

666 views1 subscriber

Eudora Fazad cresceu em Fossa, uma cidade ressecada pelo deserto Vhail, que a circunda. A opressão que seu povo sofre não a impede de aprontar de vez em quando ,principalmente, se a barriga exigir o alimento que ela só consegue por meio do roubo e de apostas.
Eudora brinca com o destino, joga contra a sorte.
E foi numa dessas que acabou presa e condenada com dois estrangeiros perigosos, sendo perseguida por Extremistas, ameaçada por agiotas e empurrada para a magia esquecida entre dunas.
Sua necessidade por liberdade vai além dos instintos de autopreservação que aprendeu a ouvir durante toda a vida e agora, aos poucos, dá espaço para novas experiências que estão lhe mostrando a diferença entre viver e existir.
O incentivo às novas descobertas desperta quando um belo par de olhos verdes instigantes a incita a explorar e conhecer mais e mais do mundo - e sobre si própria.
Eudora só não estava preparada para encontrar o peso das consequências de suas novas escolhas, esculpidas em forças antes adormecidas.
Subscribe

29 episodes

Ar de Cincino

Ar de Cincino

2 views 0 likes 0 comments


Style
More
Like
List
Comment

Prev
Next

Full
Exit
0
0
Prev
Next