As vozes estavam distantes o suficiente para ser seguro continuar, mas, tanto meus companheiros quanto eu, decidimos manter a cautela e permanecer imóveis. Fui a primeira que se moveu. Os passos hesitantes da dupla atrás de mim só foram audíveis um pouco depois e mesmo assim foram abafados conforme a claridade ia aumentando e exibindo que estamos, na verdade, cercados por enormes celas vazias de portas escancaradas.
Masmorras.
O odor de urina e o som inconfundível de escaravelhos e escorpiões só não assustavam tanto quanto os instrumentos de tortura no centro daquela câmara. Não consegui evitar olhar uma poça de sangue ainda se formando no chão, ao lado de uma mesa de pedra rodeada por moscas. Não tinham lâminas ou armas de fogo entre os instrumentos, apenas um rústico pedaço de madeira coberto por uma massa esverdeada e, que os céus me cegassem se estivesse mentindo, algo muito parecido com um olho humano preso entre as farpas desse porrete.
Grillo e o acompanhante não expressaram o mesmo choque que eu, pelo contrário procuraram entre os instrumentos de tortura algo que fosse útil para autoproteção e cada um testou o peso de martelos gêmeos entre as mãos. Meu instinto de preservação acendeu imediatamente. Não conheço aqueles homens, não sei sobre suas índoles que provavelmente não são nada boas considerando o lugar onde os conheci e as cicatrizes que ostentavam pelo corpo.
Seguindo essa lógica, acho que nossa aliança fica cada vez mais tênue conforme nos aproximamos da saída e eu espero não estar tão perto deles quando decidirem que não sou mais útil. E se as circunstâncias não permitirem, preciso de pelo menos um plano B... estão nas armas então não posso pegar de lá também, pode parecer uma declaração de desconfiança que não estou disposta a dar tão facilmente então me aproximei da primeira tocha que encontrei e a tirei com cuidado do suporte na parede.
Não os observei para verificar se me encaravam, ao contrário, segui o caminho pelas masmorras até uma rampa de madeira surgir e me guiar diretamente para cima de onde as risadas e outras vozes pareciam mais concentradas. Passos acima da minha cabeça não paravam e entre as frestas das tábuas a sombra de todos que perambulavam acima do cadafalso servia como cobertura para a chama fraca da minha tocha.
Se continuasse pela rampa acabaria numa portinha que levava diretamente para a forca, e mais a frente, o palco de fuzilamento. Era quase um festival de horrores com esses malditos extremistas comemorando cada pescoço quebrado, cada corpo decapitado, cada vida roubada.
Comemorando.
Era isso o que estavam fazendo ali em cima.
Comemorando os enforcamentos em série.
Entretenimento doentio.
Senti o ódio me consumir como uma onda de calor, que ao invés de incomodar, me acomodou, concentrando um tipo de tensão pelo corpo que seduzia minha mente cantando para ser liberto. Era hipnotizante. Tentador. Tangível. Flertava com a barreira desgastada da minha sanidade, alimentada pela opressão de todos os anos que sofri, então seria libertador observar o brilho de vida se esvair de cada um deles. Quase uma justiça poética.
Grillo apertou meu ombro e rápido me desviei dele, a chama da minha tocha estava intensa agora e a claridade bruxuleante permitiu que eu notasse o homem, seminu e sujo de pó de minério, indicar seu parceiro moribundo dar marteladas em duas tábuas de madeira na base de uma das paredes que sustentava o lado leste do cadafalso. Ele aproveitava o barulho incessante dos passos acima para quebrar a tábua velha com o martelo, essa determinação toda camuflava muito bem a perna ferida. Mas, no fim das contas, entendi o que ele estava querendo fazer, e até me juntei para ajudar com o pé, mas Grillo me impediu avisando com alguns sinais estranhos que eu ainda estava descalça e poderia machucar – pelo menos foi isso o que entendi, não tenho certeza. De um jeito ou de outro, ele mesmo assumiu minha tarefa, e alguns pisoes depois a madeira se soltou.
O homem ferido se afastou e encostou ao lado da nossa fenda para descansar. Eu usei a tocha para iluminar o espaço enquanto Grillo usava as mãos para soltar a outra tábua e ampliar nossa via de escape. Não foi muito eficaz, percebi, quando os dedos dele se encheram de farpas e a tábua podre, ao invés de se soltar, se partiu em dois pedaços.
Não estava tudo perdido enquanto os extremistas não nos encontrassem então aquele espaço teria que ser suficiente para nós três atravessarmos. Mesmo que aquelas pontas irregulares fossem machucar bastante.
— Vai na frente — apontei para Grillo.
Ele usou as duas mãos para indicar o amigo, a si mesmo e negar com a cabeça. Provavelmente dizendo que não iria sem ele, ou que não iria se separar dele, ou (tenho desconfianças) que não iria deixar o parceiro sozinho comigo.
— Você fica do outro lado para receber ele e eu fico desse lado para ajudar ele a passar. — Eu estava quase convencendo Grillo quando o outro resmungou:
— Eu consigo sozinho, não sou aleijado.
Ainda. Pensei sozinha, dessa vez indicando a passagem estreita com uma quase elegante reverência parecida com a qual Grillo fez para mim na cela momentos atrás. Acredito que nesse pequeno desentendimento Grillo ficou do meu lado, pois, empurrou o ombro do parceiro antes de atravessar para o outro lado com a dificuldade que achei que teria mesmo. Se seria ruim para eu passar, que sou relativamente mais baixa e tenho a estrutura corporal menor, imagina para aqueles dois que além de altos eram largos e o pobre Grillo, que além de tudo isso, ainda estava sem camisa.
O outro homem deve ter se sentido provocado porque, sozinho, se arrastou para cima apoiando as costas na madeira e, forçando o corpo febril, tentou primeiro levantar a perna boa e passá-la pela fenda, mas a outra lhe traiu não aguentando sustentar todo o peso do corpo. Ele teria tido uma queda feia se não fosse pelo reflexo rápido de Grillo, que sofreu um arranhão feio no antebraço por uma das pontas irregulares do pedaço de baixo.
— Sua teimosia vai matar a gente. — Sussurrei, olhando para cima — Vamos logo com isso!
Grillo franziu todo o rosto, com irritação, para o parceiro, e lhe deu um tapa na nuca como se o xingasse. Se nossa situação não fosse tão ruim, eu teria feito o mesmo, mas me contive com uma risadinha.
Eu ainda precisava me defender deles, principalmente agora que ficou nítido que o ferido não apreciava muito minha companhia, mas andar por aí, à noite, com uma tocha, vai chamar atenção desnecessária para mim o que seria uma grande burrice. Ainda posso enfrentar os dois quando estiver livre, talvez não corpo a corpo, mas dificilmente conseguiriam me encontrar naquelas ruelas que eu conhecia como a palma da mão. Eu só preciso de uma distração...
Uma grande o suficiente para me livrar de todos eles num golpe só.
Olhei para meus pés descalços, imundos, feridos pelas farpas de madeira no chão. Depois olhei as hastes de sustentação que me cercavam, também de madeira. Era como se estivesse dentro de um caixão gigante, mas estou decidida a não deixar a claustrofobia tomar conta dessa vez, não quando posso iluminar a cidade inteira. Então, sem hesitar nem um pouco, atirei a tocha contra a haste de sustentação mais próxima de mim. O fogo ganhou vida rapidamente, consumindo desordenadamente cada centímetro daquele maldito lugar de dentro para fora.
O ferido, talvez assustado ou talvez revoltado, aceitou apressadamente minha ajuda quando o estalo das chamas e a fuligem ocuparam o ambiente. Ele me encarou como se eu fosse uma espécie de criatura maligna, não do tipo que assusta, mas do tipo desconhecido que se teme acreditar que possa ser real. Deixei que me olhasse, que me temesse, mas o apressei quando os passos acima começaram a ficar agitados e a fumaça queimar meus olhos. Ele passou primeiro a cabeça para fora, envolvendo Grillo com os braços; esse fez o mesmo com o ferido, mas o segurou pelo tronco e carregou alguns centímetros acima das pontas para que não se ferisse tanto quando atravessasse. Ambos sabíamos que ele não passaria ileso, de qualquer forma, então, depois que a primeira metade do corpo dele passou, restava a parte mais difícil: as pernas.
Segurei os tornozelos dele com as mãos e empurrei para fora com pressa e mesmo assim era difícil com o fogo me roubando o fôlego cada vez mais rápido, e ainda assim, não estava com medo de ser pega pelas chamas, e sim pelos homens acima que começavam a gritar e derramar qualquer coisa líquida que estivesse ao alcance. Era inútil, para minha contemplação.
Nada controlaria aquele incêndio.
Tossi mais algumas vezes e ergui a cabeça em busca de ar antes de atravessar pela passagem que era cada vez mais coberta pela fumaça e pelas labaredas incandescentes que destruía toda a estrutura em que eu ainda me encontrava.
Essa era minha distração perfeita.
Me espremi entre as tábuas, farpas e o que mais estivesse no caminho estreito até o outro lado e o choque térmico foi um alívio bem-vindo para minha pele que assava aos poucos cada segundo que passava lá dentro. Mal tive tempo para avaliar os estragos quando cheguei a liberdade e um lado do cadafalso desabou trazendo consigo enxurradas de gritos e reclamações. E disparos de flechas. Provavelmente achavam que estavam sob ataque.
Não me importei em deixar de admirar minha obra quando corri noite adentro para longe daquele prédio, porém não tive tempo de me livrar totalmente dos estilhaços de uma pequena explosão vindo de lá.
Ótimo.
Agora os vigias externos também se ocupariam.
Corri um pouco mais a fundo nas ruelas da cidade, tossindo, com os olhos lacrimejando, sangrando por uma das narinas e ostentando um sorriso de satisfação que nada no mundo apagaria.
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