Expliquei para eles sobre a divisão de Fossa e ambos ouviram atentamente, principalmente quando eu parava para apontar os lugares citados morro abaixo. A conversa constante exigiu um pouco mais de nós três e em pouco tempo gotículas de suor começavam a pingar em nossas roupas, mas não me incomodou nem um pouco porque nessa mesma quantidade de tempo cheguei com eles por uma pequena vila de casinhas minúsculas e tortas, onde atrás de uma delas na parede, tinham degraus retangulares subindo verticalmente até o telhado plano. Grillo não parou nem para puxar uma lufada de ar, apenas subiu, forçando seus músculos ao máximo em cada degrau. Eu fui atrás assim que o ferido assobiou avisando que estava tudo limpo.
Em casa, finalmente, em casa.
Relaxei os ombros com um suspiro longo e lento, como se meu corpo estivesse sendo atraído para dentro, para o descanso merecido. Meus convidados não faziam questão de tanto luxo já que ambos se encontravam deitados no chão de poeira bem frente ao batente da minha porta, que fazia parte de um anexo de madeira retorcida que os antigos donos montaram para se proteger da época de fortes chuvas.
Grillo apertava os olhos e limpava o suor do rosto com uma das mãos, ainda ofegante como um animal, o coitado. Já o companheiro tentava recompor a compostura ao ficar de pé - muito desequilibradamente - com o apoio de uma parede. Ele observava ao redor, a quantidade quase incontável de casebres, abaixo e acima de nós, formando um mosaico quase monocromático, se não fosse pelo tom avermelhado do pó de cincino. E, bem lá embaixo, na escuridão da Base, um brilho contínuo de fogo.
Sorri de novo.
— Entendi o ditado agora. A lua brilha tão forte que mal parece noite. É bonito.
Acompanhei o olhar dele pela paisagem e pus a mão na maçaneta da porta, oferecendo o ombro para ajudar ele a entrar:
— É a coisa menos ofensiva que me disse até agora.
Ele aceitou meu gesto com uma carranca na cara, provavelmente era do tipo que odiava dividir sequer espaço com uma mulher ou ainda mais depender dela, o que me irritou obviamente. Tanto que uma vozinha bem feminina ronronou no meu ouvido para largá-lo ali mesmo.
Fiquei tentada.
E só não fiz porque Grillo apareceu para assumir minha tarefa. Ele só passou um dos braços sobre os ombros e serviu de muleta para o ferido que trocou olhares severos com o amigo, mas seja lá o que tenham dito naquela conversa silenciosa, pouco me importa, abri a porta com a ponta do pé, recebendo com felicidade o perfume discreto de mirra e azeite no rosto.
Meu pequeno barraco estava mais escuro do lado de dentro do que do lado de fora e ainda tinha um ar relativamente úmido graças aos pequenos barris de água que armazenava no cantinho da pedra. Como era formado por um único cômodo, organizei minha vida ali dentro em pequenos setores. Ao lado dos barris de água prendi na parede algumas ervas e mantinha uma cestinha de palha que tinham somente algumas sementes, tiras de pele de coiote ressecada e pedacinhos de pão. Em outra parede, ainda de pedra, tinha feno já bem fininho coberto por um tapete grosso e de má qualidade, quase do mesmo tecido dos panos que uso para prender os seios, e bem ao lado outros cestos maiores onde deixo minhas roupas e algumas outras coisinhas pessoais... A parede de pedra restante tinha um buraco natural que ocupava a maior parte dela, do centro até as extremidades, é minha única janela e minha preferida em toda Fossa inclusive, mas agora estava escondida atrás de um véu translúcido que balançava conforme o vento passava. Não é um lugar espaçoso e luxuoso, na verdade pouco é habitável para ser sincera, mas é uma segura estrutura de rocha alaranjada esculpida pelo próprio vale com um anexo em madeira largo o suficiente para estender mais dois tapetes no chão.
— Põe ele lá — apontei minha cama de palha para Grillo deixar o ferido, que desabou no estofado de palha com uma careta — e você senta aí. — Indiquei o chão mesmo para Grillo, que me obedeceu por puro cansaço.
Peguei duas tigelas de argila fundas, enchi com água e levei para dois que os secaram em um piscar de olhos. Foi quando me dei conta da minha própria sede. Somente três tigelas de água, para cada, depois, satisfez um pouco de nossa necessidade e só não continuamos porque nos lembrei que ainda precisamos de água para tentar cuidar dos nossos ferimentos.
— Toma, usem isso pra se limpar. — Joguei alguns trapos no meio deles e deixei um balde com água lá próximo. Suspirei. — Amanhã vou procurar alguma coisa para vocês vestirem. — Estava falando mais para mim mesma do que para qualquer outro.
—E até lá vamos vestir o quê ? — o ferido perguntou com a voz abafada por esfregar o pano úmido pelo rosto.
— Hm? — entendi metade da pergunta e franzi o cenho — podem se cobrir com isso — indiquei os trapos — até eu voltar. Não quero nada sujando meu chão.
Grillo pareceu ficar sem jeito pois passou até a se limpar mais rápido, mas não tirou as roupas restantes. Nem o ferido.
— É esse o preço da sua ajuda? Nossa dignidade? — o homem machucado com certo humor na voz.
Cruzei os braços encarando os dois, como as supervisoras faziam comigo nos Templos durante a infância quanto eu desobedecia a suas ordens. Eles não notaram a repreenda porque continuaram a limpeza superficial.
Atearia fogo em tudo aquilo depois.
— Qual seu nome? — perguntei ao ferido, pondo as mãos na cintura.
— Povan — ele agora esfregava a perna boa - minha anfitriã se chama?
Cruzei os braços, com receio em dar aquela informação, mas era até justo já que sabia os nomes de ambos.
— Eudora.
Grillo e Povan trocaram olhares, mas os interrompi, dizendo:
— Minha casa, minhas regras. E não vai adiantar de nada se limpar e continuar com esses trapos imundos no corpo, principalmente você, Povan. —Indiquei o ferimento aberto com o olhar.
— Não vou ficar nu na sua frente — Grillo concordou com a cabeça, se incluindo no discurso — e isso aqui está bem melhor — Povan mentiu.
—Você não esconde nada de que eu já não tenha visto — não ficaram escandalizados, para minha total surpresa — e nem você acredita em suas próprias palavras.
— Eudora, não pense que s..
Grillo ficou de pé entre nós e com um gesto aborrecido dos braços interrompeu a discussão. Ele encarou ambos e continuou a gesticular, expressando um pouco do estresse enquanto se tentava fazer entendido.
Não entendi nada naquela velocidade que, para Povan, parecia natural, levando em consideração o discreto rubor da irritação no rosto.
Quando Grillo terminou, ele me indicou impacientemente com os dois braços e eu apertei ainda mais os braços cruzados no peito quando explicou o que o amigo tinha dito sobre estar puto, com fome e exausto. E que se deitaria lado a lado com um aligátor de areia se isso significasse que ele poderia dormir em paz nem que fosse por 10 minutos sem que nossa voz lhe arranhe a porcaria da mente. Grillo também disse que faria o que eu queria, mas não comigo presente e prometeu amarrar o parceiro à força se ele se negasse a fazer o mesmo.
Concordei com aqueles termos, no fim das contas, o que pareceu satisfazer os dois. Grillo inclusive propôs a levar o amigo para o lado de fora para que se limpassem e trocassem de roupa, mas seria um trabalho desnecessário, cansativo e doloroso para os dois então eu mesma fui. Ele me ajudou a levar água num balde para fora e eu carreguei comigo um vestido vermelho desbotado que me cobria até os joelhos.
Demorei um pouco no banho, molhando o cabelo e raspando a pele com uma bucha orgânica e áspera que havia roubado algumas semanas atrás. Meus pés eram a parte mais suja então lhes dediquei um cuidado especial até conseguir ver de volta minhas unhas. Quando satisfeita, recolhi as roupas sujas e as larguei do outro lado do teto que sustentava meu casebre, quando voltei ao anexo abri a porta com o quadril, como de costume, e me deparei com Grillo deitando o amigo de volta na cama. Eles não me olharam. Os dois estavam relativamente mais limpos agora, somente com os tecidos lhes cobrindo do umbigo para baixo, e nos pés ainda calçados os sapatos velhos. Era ridículo, coitadinhos.
Eles tinham o mesmo tipo de corpo, percebi, me juntando a eles já com o kit de costura em mãos. Enquanto analisava a ferida que Grillo ganhou durante nossa fuga, notei que eles eram mais altos do que fortes, tinham um corpo nutrido, mas era do tipo comum que as pessoas mal alimentadas na infância têm se chegam na fase adulta. Não justifica, mas pode fazer parte da origem das cicatrizes pelos braços.
— É superficial — falei durante um bocejo — amanhã trago algumas ervas para cicatrizar mais rápido.
Ele assentiu, levantando perguntando com o olhar se podia se deitar no tapete comprido que coloquei no chão do anexo. Afirmei com a cabeça, me voltando para Povan, que nos observava em silêncio.
— Olha só...quase não reconheci você — não tinha emoção alguma na voz e mesmo assim, a contra gosto, um sorrisinho tentou surgir entre a barba espessa de Povan.
— A paz acabou? — Povan perguntou puxando o pano grosso que cobria a fenda sangrenta na coxa.
— Foi um elogio. — Menti e minha voz acusou isso.
— Não confio muito.
— Não deveria dizer isso para quem está prestes a furar você. — Estava focada em passar a linha pela agulha então se ele reclamou, não dei atenção.
— Hm... — Ele negou com a cabeça — você venceu essa.
Sorri abertamente, e um ronco altíssimo vindo da direção de Grillo nos chamou atenção. Aproveitei que Povan ficou distraído com o sono pesado do amigo e lhe perfurei com a agulha. Ele se retorceu na cama, prendendo os lábios entre os dentes para reprimir o grito de dor.
— Shh! Quieto. — Puxei a linha com cuidado para não romper a pele sensível e logo furei a outra extremidade para dar o primeiro ponto. Ele reclamou, mas com menos alarde. — Se mexer vai ser pior.
— Não tem como nã...AI!
— Eu nem toquei em você! — e realmente não tinha, a agulha ainda estava entre meus dedos. Como são dramáticos os homens.
— Isso não vai dar certo, não mesmo. — Acho que estava falando para si mesmo porque Povan negava e olhava para cima. Quero tanto rir.
— Calado.
E continuei.
Algumas vezes indo devagar entre um ponto e outro para ele se acostumar com a dor até ficar suportável para começar com o ponto seguinte e assim por diante até a fenda se fechar completamente. Tentei ser cuidadosa, mas confesso que aplicava um pouco de maldade nas manobras toda vez que ele falava uma palavra estrangeira que, pelo tom de voz, tenho certeza, eram xingamentos exclusivos para mim.
— Bons sonhos! — Foram as últimas e mais doces palavras que ele ouviu de mim.
Mais tarde quando já tinha me acomodado ao lado da gigante janela, que era o buraco na parede com vista para além das luzes fracas de velas na cidade, prestes a cair no merecido sono, ouvi um murmúrio tímido:
— Obrigado.
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