— Geralmente o que eu cozinho fica na linha tênue entre comestível e mortal. — comentei enquanto entregava as tigelas fervilhando para ambos. Somente Povan tinha de colher — então espero que desfrutem bastante.
Grillo levou a tigela próximo ao nariz e pareceu apreciar o aroma que o vapor trazia, mas não bebeu de primeira. Povan mexeu o conteúdo ralo com a colher devagar, de baixo para cima, ele queria muito beber aquilo pela forma que umedeceu os lábios, mas não o faria até eu beber primeiro.
Fiquei soprando a minha, observando os dois. Sabia que sua total atenção estava em mim naquele momento. Medo? Educação? Tinha argumentos sólidos para ambas as teorias.
— Não sejam tímidos, não está tão ruim assim. — comentei, e em seguida beberiquei do meu caldo fervente. Eles me observaram por alguns segundos e depois cada um tomou do seu.
O gosto era fraco, já que não tinha sal (muito caro) mas estava colorida e perfumada graças ao azeite e os temperos que misturei. Os pés de galinha se dissolveram e o colágeno restante disso não foi suficiente para encorpar a sopa, que permaneceu rala, porém com visso suficiente para enganar o paladar.
Grillo se deliciou sem culpa, acho que não se importava nem com o calor. Povan abriu mão da colher e passou a beber direto da tigela também, como eu e seu amigo. Quando pediram a segunda tigela, não havia desespero, nem comentários maldosos, pelo contrário, estavam tratando aquela refeição com um respeito inesperado. Por pior que fosse.
Quase senti uma pontada de culpa pelo que tenho pensado sobre ambos.
Quase.
— Estão condenados. — Não era o momento perfeito, mas a comida com certeza seguraria as tensões que poderiam surgir. — Morreram alguns deles ontem, estão atribuindo a culpa a vocês.
— Forca? —Povan perguntou entre um gole e outro...despreocupado...? Acho que eu franzi levemente o cenho.
— Fogueira.
— Essa é nova. — Ele continuou concentrado na sopa. Grillo sequer nos olhou, mas sei que estava ouvindo.
— Como assim? — dividi o olhar entre ambos, exigindo respostas.
— Você não vai querer saber dessas coisas, Eudora.
— E você não vai decidir isso por mim, Povan. — Meu tom de voz chamou atenção de Grillo. — Têm noção de que qualquer um que eles descobrirem que sequer pensou em vocês está condenado também?! O nosso vigia, que era um deles, teve a garganta aberta em praça pública por isso. E era um deles!
Nenhum deles parecia chocado.
Os invejei por um segundo. Do lugar que vieram não precisavam temer morrer pelas mãos de Extremistas?
—Vigia?
Não precisei responder. Grillo fez os sinais que indicavam o bigode, o restante foi rápido demais para eu entender.
— É... acho que eu já não estava muito bem mesmo. — Ele falou para o companheiro, depois se voltou para mim e disse: — Sorte a sua, não é?
— Sorte? — ele ainda não entendeu?!
— Sim, que ele morreu. Acho que teria abusado de você de novo.
De novo? A pergunta ficou presa na garganta como um engasgo.
— Ele tentou, na cela, quando nos jogaram lá e você estava desacordada.
"...E quase fiz isso, se não fossem por esses imbecis aí com você..." A voz dele na minha mente ameaçou trazer toda a sopa de volta, foi quando percebi pôr a mão sobre a boca. Ainda em silêncio.
— Grillo empurrou ele para longe de você, se fingindo de bêbado. Eu me arrastei para perto e tentei te cobrir com meu corpo, mas minha lucidez estava começando a ficar ameaçada. Ele tentou me tirar de lá com os pés, então Grillo se juntou e se fingiu de desmaiado sobre nós dois recebendo a maioria dos pisoes.
Poderia ser tudo mentira.
E também poderia ser a dívida que jamais conseguirei pagar.
— Nem me conheciam, por que se sacrificaram dessa forma por uma estranha? Você já estava ferido... — no mundo em que cresci para tudo havia um preço, e por isso as pessoas eram tão individualistas, por isso ligações como a de Grillo e Povan eram raras, por isso gestos como os que eles fizeram por mim não existiam.
Grillo quem respondeu minha pergunta, através de seus sinais interpretados por Povan:
— Não poderia continuar me considerando humano se permitisse ele fazer o que queria.
Prendi o ar no peito. Desse momento em diante, juro a mim mesma, que jamais permitirei estar vulnerável numa jaula de novo. Não precisarei ser salva. Me salvarei.
— Obrigada. — Consegui dizer, sem olhar diretamente para nenhum deles em especial.
O silêncio que se seguiu foi constrangedor por alguns poucos segundos que demoram uma eternidade. E sei que, cada um à sua forma, me cumprimentou de volta mesmo que mentalmente.
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