Me empertiguei sobre o tapete, pigarreando até que voltassem a me olhar. Parecia que nenhum deles sabia como continuar depois daquilo, então tomei iniciativa.
— Sei que não são daqui. Os extremistas deixaram claro que vocês vêm do deserto. — Ambos concordaram com a cabeça quase de forma síncrona — Como foram parar na prisão? — tentei soar natural, como se o clima da conversa anterior não tivesse acontecido.
— A cidade não é muito receptiva com estrangeiros. — Havia um humor mórbido das palavras de Povan.
— Que resposta rasa... — Choraminguei, apertando os olhos na direção dele — As teorias de que vocês são espíritos vingativos são bem mais empolgantes.
Povan gargalhou, gargalhou de verdade.
— Você não pode estar falando sério.
— Sim, sim, estou. Ouvi uma em que vocês cuspiram o próprio fogo!
Ele riu um pouco mais, Grillo também.
— Seu povo é tão criativo.
— Está achando engraçado, é? Pois eu acho muito injusto. Deveriam estar com medo de mim. — apontei primeiro para eles e depois para eu mesma — Mas podem ficar com a fama e o que mais vier com ela, não me importo, nesse caso. — Dei bastante ênfase nas duas últimas palavras.
— Ele disse que isso é injusto. — Povan traduziu os sinais de Grillo. Em resposta, fiz um gesto qualquer com a mão.
— Do lugar de onde vieram não precisam se preocupar com isso, não é? — retornei ao assunto, inclinando um discreto sorriso. — Por isso não se importam com as sentenças, com a perseguição.
— Não funciona exatamente assim. A verdade é que já vimos todo tipo de maldade que o mundo pode causar — ele pressionou os lábios — e não temos mais medo. Somos livres.
Grillo assentiu, coçando sua barba com orgulho.
— O que atraiu duas pessoas "livres" para os cantos mais imundos da Fossa?
Povan deu de ombros, dizendo:
— Destino?
Bufei.
Ele estava mesmo escondendo algo importante já que me enchia de respostas vazias.
— O destino é manipulável ao mesmo tempo em que é fixo. Isso significa que existe um objetivo e que a trajetória é moldada de forma a alcançá-lo. O destino é uma estratégia.
Grillo franziu o cenho.
— Aprendeu isso com seus sacerdotes? — Povan debochou depois de alguns segundos em silêncio. Grillo não gostou dessa provocação em especial pois encarou o parceiro com certa repreensão.
— Aprendi com as cartas, na verdade. — expliquei com certo orgulho — Passei a conseguir manipular jogadas e joguetes. No começo ajudei os donos das bancas e depois até deles eu peguei. Me apelidaram de "Sina."
— Sabe o que significa essa palavra? — Ele ergueu as sobrancelhas.
— "Consequência de um destino ruim". — Respondi automaticamente, sorridente — Eu era a sina de todos eles porque queria isso e fiz tudo o que estava ao meu alcance até conseguir. É por isso que não acredito nas suas respostas.
— Uma vigarista ardilosa. — Ele concluiu.
— Existem formas piores de sobreviver aqui sendo mulher. — Justifiquei — No momento em que seu corpo ganha curvas não lhe pertence mais. Tive que me proteger das ruas de um jeito ou de outro.
— Se misturando entre os agressores...inteligente — Povan concluiu, pensativo — Então por isso as roupas masculinas...entendi. Uma verdadeira gatuna.
— Nunca ouviu o ditado "todo dia sai um malandro e um trouxa de casa, você escolhe qual vai ser."? E o mentiroso aqui é você.
— Não foi uma ofensa! E não é nada mal..., mas não estava no topo das nossas suspeitas sobre como você ganhava a vida.
— Acharam que eu fosse uma prostituta?
— Viúva, vendendo tapeçarias.
Como eles descobriram que são minhas...
— São bonitas. Isso explica a habilidade com agulha.
Ergui o queixo, decidida a não deixar que notassem meu incômodo com a recente descoberta.
Meus entalhes no tecido eram um segredo tão bem guardado que nem mesmo Norrah conhecia, então estava me sentindo bastante exposta ali. Quase imediatamente meu olhar encontrou os tapetes que Grillo usou para dormir, com o centro enfeitado de arabescos curvos e delicados, como pequenos ramos, que eu fazia ponto a ponto, se retorcendo entre si na harmonia das cores de cada uma das pequenas vinhas. De perto só a beleza colorida era perceptível, mas se admirada de longe, da maneira correta, o desenho de dentro para fora formava um padrão florido que (modéstia à parte) era digno de um brasão de poder. Gosto tanto dessa forma que ela está em quase todas minhas costuras.
Cada peça daquela era um pedaço do meu mundo colorido particular.
Não tem preço.
— Estavam bisbilhotando minhas coisas? — resolvi parecer ofendida somente para testá-los.
— Sim. Eu tive uma ideia genial.
—Você o quê?!
— Grillo, pode buscar, por favor.
Meu coração passou a bater um pouco mais acelerado no peito como se fosse um alerta de perigo iminente, mas apenas apertei as mãos em volta da tigela.
Vai que é preciso me defender com alguma coisa mesmo que correr seja a rota de fuga mais segura.
— O que achou? — Povan perguntou animado mesmo sem ter me dado qualquer dica.
— Acho que...que aquilo era a caixa de talheres?
— Sim. — Ele falou confuso — Não. Não é isso. Vou desmontar e deixar duas de cada lado e prender com uma faixa no centro, assim vou sustentar e evitar bater essa merda aqui. — Povan indicou a própria perna e, pela forma convicta com que falava, parecia que ele vinha pensando nisso há algum tempo.
Grillo não demonstrava muita confiança naquilo pela expressão relutante que exibia, mas não fez sinal algum. Acredito que não queria impor ordens ou limites ao companheiro, afinal de contas, o ferimento e a perna eram de Povan.
A decisão de se furar com aquilo também.
Respirei fundo, deixando a mão sobre a testa e negando.
— O quê? Eu já vi isso ser feito antes.
— Para ossos quebrados.
Por um momento realmente me questionei se aqueles dois, de fato, eram tão perigosos quanto eu achava.
No momento pareciam apenas... Homens.
— Hm... Acho que... — dava para ver como estava sendo doloroso para ele dizer ao mesmo tempo que era quase uma dádiva para mim. Para Grillo também, percebi. — ...pode ser que você esteja certa.
— É claro que estou! — a irritação e a convicção na minha voz eram mais direcionadas a mim mesma do que aos dois, de fato.
Apoios.
Eles iriam usar como apoios as estacas velhas de madeira que eu achei que seriam para me matar.
Por todos os céus acima de mim, será que estou me tornando uma paranoica como Norrah? Qual perigo eles me apresentaram até agora?! Lhes salvei a vida mais de uma vez, por que simplesmente não aceito que está tudo bem?
A resposta veio como um lampejo na minha cabeça.
Não é da sua natureza.
— Você...você sente muita dor quando se mexe? — perguntei depois, pigarreando um pouco. Se antes tinha dúvidas, agora deve ter certeza que sou uma histérica por conta da mudança repentina de humor.
— Só quando preciso esticar a perna... é como se estivesse segurando algo pesado demais, se tentar andar. — Povan tentou virar o joelho para os lados, mas só recebeu um espasmo de dor em resposta.
Me aproximei para olhar os pontos um pouco melhor. A pele ainda estava irritada e haviam finos filetes de sangue aqui ou ali, mas no geral estava bem melhor do que quando a vi pela primeira vez.
— Pretende sair mancando por onde? — me levantei, apoiando as mãos nos joelhos para ficar à altura de o encarar — não pode sair daqui. Vai ser morto. — Repeti.
— Não acha que vamos ficar aqui para sempre, acha?
— Espero que não, você não é uma visita muito carismática.
Povan abriu a boca para falar algo, de muito baixo calão pela expressão no rosto, porém não o fez. Ele apenas fixou seu olhar no meu e, por bons segundos, tentamos estrangular um ao outro apenas nos encarando.
— Conheço uma forma de ajudar com o desconforto — estiquei as costas, pousando as mãos no quadril, pensativa.
— Nada de agulhas. — Se estivesse um pouco menos consciente, teria implorado.
Me senti ofendida. Sou ótima com agulhas!
— Ignorante. — Resmunguei.
Fui até minha parede com as ervinhas e cheirei cada um dos ramos, inclusive dos novos, até encontrar o que queria.
Ervagelo.
Uma plantinha rasteira com gosto refrescante e textura picante, seus frutos são pequenas sementinhas que parecem muito como pimentas no sabor, e em aparência farinha. Ela é muito versátil, completamente comestível, então é a base da alimentação em Fossa.
— Os boticários daqui usam como base para pasta de limpeza e tranquilizantes, apesar de o efeito ser bem inferior ao de um opiáceo, no que diz respeito a sedação. — expliquei, de costas para os dois. — Mesmo assim, vai ser eficaz.
— Vai me bater com isso? — Povan perguntou me vendo aproximar com os raminhos de ervagelo.
— Estou tentada. — Exibi um sorriso enquanto me sentava sobre os tornozelos em frente a cama que ele estava. — Mas não, infelizmente. Ainda vou encontrar um motivo bom para maltratar você, fica tranquilo.
Grillo ora nos observava e ora observava a Crista pela janela de pedra. Não critico por ficar por lá com os próprios pensamentos. É meu lugar favorito da casa também...o mais próximo da liberdade que eu tenho.
— Conseguiu seus conhecimentos medicinais nas casas de apostas também? — Povan ergueu as sobrancelhas, me encarando, com certa relutância.
A pergunta dele me roubou a atenção de Grillo. Para não me pegar totalmente distraída fingi cheirar os raminhos e separar os mais secos dos saudáveis.
— Talvez de maneira parecida com a que Grillo aprendeu a abrir celas.
Poucos segundos de silêncio, então um discreto sorriso inclinado provavelmente causado por uma lembrança distante e talvez dolorosa, levando em consideração o tom de voz baixo e sereno, que me surpreendeu.
— Quando se passa tanto tempo preso, não existe grilhão capaz de nos conter.
— Mais uma resposta vaga... — Apesar de profunda.
— Você é curiosa demais. — Foi a forma que ele encontrou de me despistar do rumo pessoal que aquela conversa quase levou.
Dei de ombros.
— Talvez seja útil no futuro.
Povan fez uma careta de escárnio.
— Mal se livrou da cadeia e já está pensando na próxima?!
— Fossa não é para amadores, sou apenas prevenida. — Convencida de que ele não falaria mais nada sobre Grillo e suas magias, voltei minha atenção aos pontos. — Confia em mim, essa pastinha faz milagres. — Comecei a arrancar as folhas murchas e, com cuidado, acumular no centro da mão.
O perfume refrescante querendo contaminar o ar foi bem-vindo entre mim e Povan.
— "Pastinha"?
Minha resposta foi pôr as folhinhas na boca. Grillo, sentado da janela, tentou abafar as risadas sem sucesso. Pelo menos alguém estava se divertindo.
Quanto mais mastigava, mais frescor e mais picante sentia dominando meu paladar, gladiando a cada nervura quebrada pelos dentes. É relaxante até os olhos começarem a lagrimar e o nariz congelar.
—Tem certeza que isso vai dar certo? — Povan perguntou com uma careta.
Eu apenas estendi a mão para que ele se calasse e continuei mastigando as ervas até sentir o leve ardor na língua. Esse era o ponto perfeito para cuspir a pastinha sob os pontos irritados de Povan.
Não vi, mas pelos ruídos que ele soltou dava para ter noção das caretas que ele provavelmente estava fazendo.
— Hm...acho que vou vomitar.
— Você é muito frouxo. — Umedeci os lábios com a língua para limpar o líquido esverdeado que me coloriu meus dentes e agora os pontos de Povan.
— Não sei porque ainda escuto você, você é louca...e verde. Você está verde. Igual um lagarto.
— Para de reclamar. — Cobri a pasta e os pontos com o outro pedaço de tecido, e me levantei, satisfeita com o trabalho. Mais uma vez.
— Se eu fosse você não mexeria nisso. — Ameacei assim que uma das mãos dele se direcionou para o curativo.
— Está coçando.
— Que bom, significa que está funcionando. — Cruzei os braços — Levanta. — Ordenei.
Ele franziu o cenho. Grillo assumiu uma posição semi defensiva de onde estava, preparado para defender o amigo caso necessário. Não dei a mínima.
— Levanta.
Povan me encarou com certa descrença mas foi somente depois de obter um tipo de confirmação de Grillo que apertou o nó de tecido na cintura, carregou a perna machucada até o pé tocar o chão e com três tentativas de esforço depois se equilibrou nas próprias pernas pela primeira vez.
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