— Dora. — O sorriso de covinhas estava lá, quase apagando as manchas do hematoma.
Como ele estava ali?! Norrah fugiu?! Ele conseguiu sobreviver à fuga?! Ele conseguiu se livrar da dívida? Ele pagou Amastor? Como?
Busquei o olhar de Norrah a procura de respostas, mas não era para mim que olhava.
— Então são esses. — Norrah comentou para si mesmo. Ainda havia sombras atravessando a fresta da porta.
Imediatamente meu corpo relaxou e, como se a energia antes acumulada se espalhasse pelas veias, dando a vida ao que o sangue não conseguia, me virei na direção de Grillo e Povan, e disse:
— Corram.
Meio segundo depois, dois brutamontes invadiram a casa bradando espadas do tipo curvas usadas pelos extremistas, ambos na direção de Grillo e Povan, que derrubaram tudo no caminho (talvez para ganhar tempo) antes de se lançarem janela afora como se não tivesse uma queda dolorosa esperando por eles lá fora.
Os brutamontes foram atrás sem hesitar.
Ainda presa na casa, desviei quando Norrah tentou me agarrar, com uma ágil meia volta que fez minha trança chicotear meu rosto. Ele conhecia meus passos, cresceu observando-me aperfeiçoar cada um deles, por isso conseguiu me derrubar com uma rasteira direto ao chão.
— Por que fez isso?! — ele me prendeu com o pé, pisando contra minhas costelas até o ar me pesar — Dora, por que fez essa merda?! — estava enfurecido. Uma veia saltava de sua testa e ele salivava enquanto gritava.
— Você os entregou! você me entregou, Norrah! — gritei de volta, com o mesmo desespero. Não. Raiva. Fui traída.
Não queria dividir com Norrah nem o ar, muito menos uma palavra, mas lá estavam elas, recheadas de acusações dolorosas. A resposta dele foi pressionar mais meu corpo, quando se curvou sobre a perna que me prendia no chão até ficar próximo do meu rosto.
— Eu fiz isso por nós, Dora...eu estaria livre de novo! Você não me queria livre de novo?! Queria que eu continuasse naquele buraco enquanto você se divertia com aqueles merdas?! — O tom acusatório dele me causou ânsia.
— Divertia?! — Eu mesma bati a cabeça contra o chão de madeira, me castigando, com ódio me fervilhando de dentro para fora. Norrah era o combustível. — Estava fazendo isso por sua causa! — Minha garganta estava sendo comprimida pelo peso das lágrimas que se acumulavam, mas a fúria as impedia. — E agora vou ser queimada viva por sua causa! — quis cuspir nele, em tudo o que aquela traição representava.
— Eu teria salvado você, diferente do que fez comigo, eu não teria te abandonado, Dora. Amastor prometeu que você não morreria. — A voz dele me enojou, tão perto...apenas algumas horas atrás estávamos próximos assim, e agora...
Ele deve ter pensado o mesmo pois percebi a compreensão em seus olhos.
— As únicas promessas que esse puxa-saco cumpre são as de morte. — Usei o tom mais frio de voz que consegui encontrar para repetir o que ele mesmo tinha dito mais cedo.
Queria que Norrah entendesse, sentisse em sua própria pele, o que eu estava sentindo agora.
— Você não me deu escolha. — Norrah parecia querer convencer mais a si mesmo do que a mim. Nem por isso as palavras doeram menos.
— Dei, e mesmo assim você preferiu me transformar em moedas para comprar liberdade. Uma liberdade falsa. Eles não vão conseguir tocar num fio de cabelo daqueles homens. Sabe o que vai acontecer com você? — me debatia enquanto falava, atraindo a atenção dele para minhas pernas e tronco — O último rosto que vai ver enquanto queima em praça pública vai ser o meu.
Norrah socou minhas costelas logo que terminei minha provocação improvisada. Me engasguei com meu próprio ar, e me contorci no chão, enquanto Norrah soltava meus pulsos para agarrar meu pescoço.
Eu não planejo morrer por causa dele, por causa de estrangeiros, por estranho nenhum.
— Se tornou a putinha desses ratos, foi? Se apegou, Dora? — o efeito de ervagelo deve ter passado totalmente porque senti o amargor da traição tão pungente quanto sangue preencher a boca. — Vou eu mesmo acender sua fogueira.
A partir daquele momento não senti medo.
Encarei os olhos de Norrah e, ao contrário do que pensei, não vi uma garota assustada ou uma jovem apaixonada sofrendo o pior baque de uma desilusão amorosa.
Não. No fundo dos olhos dele enxerguei a garota que o usou enquanto foi proveitoso para ela, a ladra egoísta que manipulou e foi manipulada num jogo de mentiras e controle.
Na fúria dos olhos dele enxerguei minha própria fúria.
Eu reagirei a esse perigo.
Eu sobreviverei de novo.
— Seu problema, Norrah — tossi —, sempre foi não saber como usar as mãos. — Ele só teve tempo de franzir levemente as sobrancelhas antes de eu lhe perfurar os olhos com os polegares.
Desatento, lhe chutei o joelho de apoio (percebi ser o com tornozelo batido) e rolei para o lado antes que Norrah escorregasse sobre mim. Me levantei e corri para tentar alcançar qualquer coisa perigosa o suficiente para me defender.
As brasas.
Antes que sequer conseguisse chegar até a lareira ele me puxou pelo tornozelo e acabei derrapando, mas me mantive em equilíbrio graças às irregularidades do chão de pedra. O observei rápido por cima dos ombros e percebi, num piscar de olhos, que ainda tentava adequar a visão e me segurar ao mesmo tempo. Eu recuei e o chutei no rosto, me libertando novamente.
— Dora! — ele gritou, socando o chão do anexo enquanto tentava se levantar com a mão nos olhos irritados e sobre o nariz sangrando. — Dora!
Não posso perder tempo com Norrah agora, não consigo sequer olhar para trás. Cada nervo no meu corpo me mandava correr para longe dele, para longe daquela caverna que transformei em casa, para longe daquela vida ilusória que planejei e que no fundo desconfiei não ser possível.
Não me pertencia.
Não é minha natureza.
Na minha pressa, puxei o tecido translúcido da janela de pedra, enrolei entre as mãos e me joguei, pela primeira vez, para a liberdade incerta com que aquela vista sempre me atraiu.
***
Decidida a não cometer o mesmo erro da noite passada, ao invés de seguir pelas ruas da Crista, que Norrah conhecia tão bem quanto eu, usei os telhados como rota de fuga. O pano tinha se tornado um tipo de alça para deslizar como tirolesa pelas cordas de roupas ainda restantes do lado de fora naquela noite.
Não faço a menor ideia de por onde os dois possam ter escapado, mal imagino sequer como encontrá-los. Mesmo se tivessem deixado pistas, só conseguiria seguir quando amanhecesse e acredito que ainda vai demorar muito para acontecer.
Parei para descansar sobre o telhado desbotado de um casebre. Ofegante me joguei no chão com os braços abertos e os olhos apertados. Estava melada de suor e meu corpo todo doía. As costelas maltratadas, as pernas exaustas, as pontas dos dedos em carne viva de tanto escalar, até o nariz que tinha consertado ontem resolveu latejar.
Não sei quanto tempo fiquei naquela posição, retomando as rédeas do meu corpo, da minha vida. Mas eu não queria. Não queria me obrigar a ser forte de novo, forçar meus músculos cansados e mente exausta a levantar e seguir como se fosse mais um dia normal. Acho que nem nela posso confiar, meu consciente não deu muitas provas de que está apto a me coordenar tão cedo. Por um lado, quer me tornar um grande exemplo, a mais poderosa versão de mim mesma, por outro, quase me deixa emocionalmente dependente de um babaca egocêntrico.
A mistura disso tudo é o farrapo largado sobre aquele telhado morno agora. Sem vida, sem futuro, sem passado. Beirando um abismo do qual não me recuperaria se caísse. Por mais tentador que fosse.
Mordi o lábio inferior com força, me abraçando contra o frio e a solidão.
Por um momento, o silêncio e o escuro são confortáveis, um convite e um flerte para o esquecimento. Esquecimento é paz?
No momento seguinte me sinto sufocada.
Não, é covardia.
Ponho a mão sobre o peito e percebo que meu coração trepidava no lugar.
Arregalei os olhos.
Meus lábios estavam entreabertos em busca de ar.
Meu corpo todo estava tenso e inquieto ao mesmo tempo. Minhas articulações se contraiam a ponto de ser doloroso.
Parecia que iria implodir em mim mesma — e destruir o mundo junto. Quero desaparecer.
Minha vista estava sem foco, o céu borrado me deixava tonta.
Preciso me prender a algo. Se continuar solta, se me perder, não saberei voltar. Não saberei, não saberei.
Ofegante, e afogada em meu desespero, encontrei a lua. Uma mancha esbranquiçada que foi ganhando forma e textura aos poucos.
Não ousei piscar com medo de me perder dela. Meus olhos se irritaram com a luz noturna até lágrimas solitárias rolarem bochechas abaixo.
A última coisa que me lembro de ter visto foi o céu, a lua e estrelas, todos, sendo cobertos por uma camada de dourado e esperança.
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