Demorou pouco até Mo Tian perceber onde Ta Yeh estava o levando: a plataforma onde deveria ter acontecido a cerimônia das lanternas e que ocasionou na libertação de Ta Yeh. Mo Tian entendeu porque a maioria dos lugares por onde passaram estavam vazios: todos os servos e membros de Lanhua se concentravam no espaço central do clã, onde o palanque para o festival ainda estava montado. Só que daquela vez o clima entre os presentes era bem diferente, seus sussurros ansiosos se espalhavam pela multidão, criando um zumbido constante de murmúrios. Homens e mulheres designados para a defesa cercavam a plataforma, prontos para agir se assim o líder ordenasse.
Uma única figura estava no centro, a boca amordaçada, pés e mãos presos em uma corrente. Ele procurava algum apoio entre a multidão, não havia vergonha em seus olhos, somente o temor por seu futuro. Muitos ali o odiavam e esperavam pela oportunidade de vê-lo morto há muito tempo, mas Xiang Dao também possuía apoiadores que apelariam por sua absolvição.
Mo Tian arregalou os olhos ao ver o antigo líder ali, fraco e indefeso, com carrascos segurando suas correntes, prontos para atacá-lo caso houvesse resistência.
Ta Yeh andou calmamente até o topo da plataforma. Mo Tian seguiu seus passos, protegendo-o da chuva. A multidão cessou a conversa, prendendo a respiração quando o Celestial alcançou seu destino.
Quando se posicionou de frente para o antigo líder, Ta Yeh sorriu.
— Acredito dispensar apresentações, vocês sabem que eu sou.
Com essa frase, apenas essas poucas palavras, o Celestial Coelho fez com que uma multidão se ajoelhasse em reconhecimento e respeito. Alguns tinham expressões de deslumbramento; outros, de medo. Aqueles que se apresentaram distintos dessas duas emoções foram marcados pelo olhar de ferro rubro, que varreu a massa de pessoas e encontrou algumas em pé, indispostas a se curvar.
Mo Tian conseguia ver as silhuetas através da cortina chuvosa, observando por cima do ombro do Celestial Coelho. Poderia adivinhar quem eram: os discípulos de Lan Zhao, cultivadores que treinaram em Jinxiuhua, além da muralha que contornava Lanhua. Eram os mais provenientes na arte da cultivação, com certeza os únicos que teriam coragem de desafiar um imortal de Taisui como Ta Yeh.
Entre eles, estava Song Ning.
Ao vê-lo, Mo Tian vacilou no aperto do guarda-chuva, e as gotas caíram como fios de gelo em sua nuca. Seu cabelo preto era inconfundível. Além do próprio Mo Tian, o rapaz era o único que mantinha cabelos curtos. Isso porque o comprimento do cabelo era considerado sagrado, fazia parte da tradição. Ele manteve o corte na altura do pescoço durante todo aquele tempo, desde que se encontraram pela última vez. Na beira do pico, ele passou a navalha nos fios como um incentivo para que Mo Tian não se sentisse tão deslocado no vilarejo durante sua ausência.
Era um garoto bondoso e com um senso de justiça muito forte, por isso havia se compadecido com a situação de Mo Tian quando ele chegou ali. Um garotinho de um clã rival que perdeu tudo na guerra, velejou sozinho por noites num barco à deriva no mar de corais venenosos e, ao encontrar terra firme, se viu cercado por juramentados de morte pelo clã Aki. Jamais seria aceito, mesmo que não tivesse nada a ver com a inimizade entre seitas. Como poderiam confiar nele? Em épocas de guerra, até uma criança poderia ser suspeita e um potencial espião.
Song Ning foi o primeiro a confiar.
Apesar dos pesares…
O que infernos ele tem para falar em uma situação dessas? Veio aqui só para morrer?!
Ta Yeh se desfez em uma risada controlada, que se findou em uma linha repuxada.
— Eu vim aqui para dialogar — Ta Yeh explicou, cortês. — Mas parece que tem algo afligindo o coração de vocês, jovens cultivadores. Digam antes que seja tarde.
— Só porque o senhor é um Celestial pensa que pode chegar aqui, usurpar o posto de líder do clã e ainda prendê-lo? — Song Ning foi o primeiro a gritar, seus punhos em riste prontos para lutar se fosse preciso.
— Como ousa prender o nosso líder?
— Jamais iremos nos curvar a você!
Ta Yeh acompanhava com os olhos cada uma das vozes que emergiam da multidão. Colocou as mãos para trás, seu sorriso tranquilo era firme como uma montanha.
— Eu aprecio a franqueza. É muito mais simples trabalhar com um homem que está disposto a colocar suas cartas na mesa. Então vou ser tão claro quanto. — Ta Yeh se aproximou mais de Xiang Dao, tirando as mãos das costas para passá-las entre os fios do antigo líder, que bufava como um javali contra ele. — Eu sou o verdadeiro líder. Não há usurpador, senão Xiang Dao e seus seguidores imundos. Eu fui preso por duzentos anos por essa corja que achava que jamais seria punida pelos seus atos. Graças ao servo que agora segura o meu guarda-chuva, eu posso agora estar aqui para fazer justiça ao meu nome.
Mo Tian quis sumir quando foi subitamente mencionado e todos os olhos raivosos da oposição se voltaram contra ele. Muito diferente da noite do festival; agora recebia expressões de desconfiança que fizeram seu coração saltar uma batida. Engoliu em seco quando se focou em um dos homens e ele fez um sinal de corte contra a garganta.
— O seu tempo já passou, deveria saber lidar com isso e seguir em frente. — Liu Jin disse com sua voz forte. — Nós não queremos um líder de duzentos anos atrás que não faz ideia da nossa política atual.
— É isso mesmo! — vociferou seu irmão juramentado, Song Ning. — Xiang Dao sempre cuidou de nós, quem nos garante que você não está aqui só para benefício próprio?
— Xiang Dao foi o responsável por parar a guerra com o clã Aki!
— Se você foi preso, algum motivo teve!
As coisas estavam saindo do controle. Algumas pessoas comuns que tinham se ajoelhado já se mostravam pensativas ao ouvir o discurso dos cultivadores. Não tinham começado a falar, mas algumas já vacilavam em sua reverência.
— Esse garoto! Eu sabia que iria dar problema algum dia. Viu por que não deveríamos tê-lo aceitado, Song Ning? Sua imprudência nos trouxe até aqui. Ouviu quando disseram que ele libertou o Celestial? Ele é um espião do clã da colina!
Song Ning se calou, abaixando a cabeça.
As mãos de Mo Tian apertaram a haste do guarda-chuva, seus dentes morderam o interior da bochecha. A chuva vinha como agulhas finas, penetrando sua pele e espalhando gelo por suas entranhas. Não. Ele já havia sofrido demais na vida por ser o forasteiro que veio de um clã inimigo, custou a conquistar aquelas pessoas, não poderia deixar que um erro colocasse tudo a perder. Não poderia ficar parado, aguentando o peso do céu desmoronando, enquanto todos interpretavam sua ação erroneamente.
Talvez Mo Tian morresse por isso, mas sua morte social significava a mesma coisa para ele. Saiu detrás do Celestial Coelho, sem deixar de protegê-lo da chuva, mas parando ao lado dele.
— Eu não sabia que Ta Yeh Tianjun estava preso ali, mas eu o salvei! Eu o salvei e eu irei ajudá-lo em tudo o que precisar para voltar a conhecer essas terras e nos liderar de forma muito melhor que Xiang Dao — ele declarou para a multidão, batendo no peito com a mão livre. A palma bateu nas vestes molhadas, abafando o som. — Tenho muito orgulho de todo o trabalho que tenho feito aqui e não sou um espião! Em que mundo vocês vivem, em que seria prudente prender um imortal de Taisui e interromper sua Provação nesse mundo? Isso é errado! Não importa por qual ângulo você veja, isso é-...
As palavras se embolaram na ponta da língua de Mo Tian quando os olhos relaxados e vermelhos de Ta Yeh pousaram nos dele, com uma leve inclinação da cabeça. O que o fez parar de falar foi o sinal feito pelo imortal, que pousou o indicador na frente dos lábios.
— Mo Tian, o que está dizendo? — Song Ning o encarou de forma muito diferente da de Ta Yeh, embora o pedido explícito em seus olhos suplicantes fosse o mesmo, para que se calasse. — Você não tem ideia do que esse maldito ao seu lado fez no passado… esse homem não é quem você pensa que é!
— Na minha experiência imortal — Ta Yeh finalmente se fez ouvir, mordaz —, o mundo da cultivação consegue ser um mar de podridão e lixo quando não é devidamente… recompensado da maneira que deseja. Se é isso que esperam de mim em troca de seu apoio, podem esquecer.
— O que você… — O rosto de Song Ning avermelhou, seus olhos se tornando raivosos com a compreensão. — Está nos chamando de corruptos? Está… está mesmo alegando que fomos comprados para protegê-lo?! Você! Justo você, que fez pilhas de pessoas e chegou ao ponto de ter se deitado com a-...
Ta Yeh deu uma gargalhada gostosa, acuando todos os presentes pela ação inesperada.
— Não foi isso que eu quis dizer, você sabe do que eu estou falando.
Ta Yeh andou pela plataforma na direção de Song Ning. Mo Tian tentou segui-lo, mas o Celestial fez um sinal para que ele ficasse onde estava. O servo ficou parado, pela primeira vez usando o guarda-chuva em si mesmo enquanto observava Ta Yeh pegar uma lança de um guarda. As pessoas abriam um espaço exagerado para ele passar, todas mantendo o máximo de distância possível para não serem seu alvo.
Song Ning estava parado no mesmo lugar, a postura altiva e o queixo levantado, sem intenção de se curvar. Ta Yeh estacou bem à sua frente. Sorrindo.
— Song Ning… Um dos melhores cultivadores da sua geração, sua fama pode ser ouvida mesmo por mim que estou nesse mundo há tão pouco tempo… — Quanto mais o Celestial falava, mais Song Ning endurecia o corpo e olhar. — Mas o que será que eles falariam se soubessem a verdade por detrás de toda essa fama? Que você… — Ta Yeh se aproximou lentamente, causando um arrepio em Song Ning enquanto ele sussurrava: — oferece ajuda para depois abusar dos mais fracos?
Os olhos de Song Ning se abriram paranóicos, o sangue congelou em suas veias. Ta Yeh sorriu de lado. Aquele segundo de hesitação era tudo o que precisava para confirmar o que já sabia.
— Quem você pensa que é… — Suas palavras foram substituídas por sangue.
Gritos e exclamações surpresas ecoaram na multidão. Jin Liu tentou intervir, mas uma barreira o prendeu no lugar. Ele gritou. A lança enfiada no meio do estômago de Song Ning transformou a boca dele em uma cachoeira de baba vermelha.
As íris escarlate se tornaram vivas como aquele sangue, fortes como se uma lâmpada tivesse se acendido em seu interior.
— A partir de agora sua alma está amaldiçoada. Toda a sua família e futuras linhagens estarão amaldiçoadas. Sua alma vai vagar por milênios e nunca encontrará a paz. — O Celestial Coelho girou a lança dentro da carne de Song Ning, arrancando um urro de dor que arrepiou todos os cabelos de Mo Tian. — Que sua eternidade seja cheia de medo e arrependimentos.
E arrancou de uma vez a arma presa entre os órgãos, os intestinos enrolados ao redor de sua extensão. O sangue esguichou, pintando a roupa de Ta Yeh com várias pintas vermelhas que foram lavadas pela chuva, criando uma poça no chão.
Song Ning desabou, seu corpo morto se desfazendo pelo chão.
— Alguém quer emitir mais alguma opinião e assumir um lugar ao lado do invencível Song Ning? — Ta Yeh se recompôs, cravando a lança em sua mão no chão. — Liu Jin-Daozhang, talvez?
Liu Jin gritava, mas era segurado por outros dois cultivadores. Todo o resto estava sem fala. Tinham acabado de testemunhar não só uma morte brutal, como o poder do Celestial Coelho. Assim como promovia a sorte, ele também lançava maldições de revés. Em um lugar onde a honra e o título eram tudo, sua habilidade era como uma sentença de morte. O que ele tinha feito havia sido pior do que simplesmente matar, ele tinha usado sua capacidade celestial para abranger o azar através de gerações, tempo e espaço.
Aquele era Ta Yeh Tianjun, o Celestial Coelho.
Mo Tian estava com a mandíbula escancarada, sentindo os lábios e a língua umedecidos pelo ar vaporizado, mas sua garganta estava seca como se um sol desértico rachasse seu crânio. Seus olhos miravam o corpo sem sinais vitais de Song Ning, pensando que nunca mais iria ver seus olhos outra vez. Nunca mais teria que se preocupar em ser desmascarado por quem primeiro lhe ajudou quando chegou naquele clã, às custas de um pouco de sua dignidade e dor.
Ele se culpou quando o pensamento de alívio cruzou sua mente.
Os demais cultivadores desembainharam as espadas, que flutuaram a centímetros de seus corpos com um sinal de mão de seus donos. Suas expressões determinadas não faziam jus a como tremiam, eram como uma gota de água contra a muralha de gelo que era as feições de Ta Yeh, talvez amigáveis demais para quem não tivesse testemunhado os acontecimentos passados. Seus olhos eram finos e, com a leve inclinação de um sorriso, eles se fechavam quase que completamente.
— São só quatro de vocês, precisam de mais do que isso.
As palavras do Celestial Coelho eram escutadas ao longe, como se estivesse num plano distante. Tudo chegava aos ouvidos de forma tão abafada, tal como se a chuva estivesse devorando e mastigando cada som, deixando só o silêncio. O prenúncio de uma derrota. Os cultivadores abaixaram suas armas, dados como vencidos. Liu Jin não tinha como lutar ali, por isso engoliu a raiva e deixou a angústia domá-lo enquanto encarava o corpo de Song Ning, distribuindo sangue pela calçada de pedras, criando rios entre as pessoas.
Mo Tian não sentiu também. Não sentiu quando seus joelhos tremeram e perderam as forças, derrubando seu corpo no palanque. O guarda-chuva também foi deixado de lado, incapaz de conter a tempestade do lado de fora, e o mar revolto dentro do coração do jovem que havia libertado um Celestial e causou a morte de um dos cultivadores mais proeminentes da geração.
Seria aquele o início de uma era de decadência?
Ele estava de joelhos, curvado até a testa encostar no chão.
Todas as pessoas fizeram o mesmo, incluindo os cultivadores rebeldes.
Mas Ta Yeh não estava olhando para eles. Seus olhos como brasas evaporaram a água no ar, criando um caminho direto até os olhos castanhos de Mo Tian. Ambos se encararam até o servo desviar o olhar primeiro.
— Celestial Coelho, Ta Yeh Tianjun, juramos a você lealdade até o último respiro de nosso corpo terreno e espiritual. Que as estrelas nos guiem até nossos sonhos — Mo Tian entoou o juramento. — E que você nos guie até o nosso Destino.
E foi seguido por toda a população de Lanhua.
Continua...
No próximo capítulo...
"Ta Yeh tinha uma rotina simples, mas regrada, e Mo Tian fazia de tudo para servi-lo do melhor jeito que podia. De manhã até a noite, o jovem servo estava sempre ao lado do seu mestre, seja aquecendo a água do seu banho ou se abaixando para ajudá-lo a tirar as botas pesadas."
No próximo capítulo: "Plano de Sedução"
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Até o próximo capítulo!
Beijos felinos,
Mork
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