Apesar da introdução caótica de Ta Yeh ao clã, o primeiro mês passou sem maiores comoções. Aquele homem que massacrou uma possível rebelião em sua gênese parecia ter adormecido, deixando a casca de alguém solícito, gentil e metódico. Ta Yeh tinha uma rotina simples, mas regrada, e Mo Tian fazia de tudo para servi-lo do melhor jeito que podia. De manhã até a noite, o jovem servo estava sempre ao lado do seu mestre, seja aquecendo a água do seu banho ou se abaixando para ajudá-lo a tirar as botas pesadas. A vida dos membros do clã Lanhua voltou ao normal em poucos dias. Não havia mais novidades para alimentar fofocas, e disso Mo Tian sabia bem, pois estava por dentro de todas. O que por um lado era péssimo, pois era a pessoa mais próxima de Ta Yeh e mesmo assim não tinha nada de interessante para falar sobre ele além de que o Celestial tinha a agenda ocupada, fazendo com que passasse poucos momentos juntos. E o que dizer sobre seus diálogos emocionantes?
“Senhor, coloque um sorriso no rosto! Limpei todo o seu aposento, ele está arrumado e sem um rastro sequer do lí-... do usurpador Xiang Dao. Ah, também preparei o seu banho. Vá antes que esfrie”.
“ Você é muito atencioso, Mo Tian. Obrigado.”
“Senhor, barganhei os linhos da cidade alta e consegui pela metade do valor. Coloquei as peças sobre a cama”.
“Ótimo, eu ainda tenho algumas coisas a tratar. Mas você deveria descansar. Boa noite, Mo Tian.”
“Boa noite, senhor”.
“Senhor, acorde! Bom dia! Os vegetais são mais frescos de manhã, irei buscar uma cenoura”...
E foi nesse dia fatídico que Mo Tian viu a sombra da ira do Celestial Coelho.
Quem iria dizer que o Celestial que representa o coelho iria odiar cenouras?! A vida era uma mentira! Ali, revisitou o desgosto na expressão de porcelana de Ta Yeh, por mais que ele tenha se esforçado para agradecer, e educadamente recusado… claramente não havia gostado e Mo Tian se esforçou em dobro para agradá-lo e recompensar a falha. Bem, aquela havia sido a coisa mais interessante do mês. Isso e quando o comércio de verduras e frutas havia subitamente falido, como se uma maldição tivesse sugado todo o dinheiro de seus bolsos, e quando Ta Yeh assinou uma licença que concedia a posse da loja novamente à família do antigo dono, aquele das xícaras e porcelanas de Dragões, enquanto o Celestial segurava um sorriso.
Por contrapartida, Mo Tian cada dia mais descobria singularidades sobre ele. Tudo bem, Ta Yeh odiava cenouras, mas amava bananas. E ele não se importava com os métodos, contanto que os resultados fossem aceitáveis. Não gostava de gatos, mas sim de cães porque: “Eles são mais obedientes e farão qualquer coisa que você mandar… Acho que vejo lealdade como uma habilidade atrativa.”
E talvez Mo Tian tivesse sentido as bochechas ruborizarem quando esse comentário foi feito.
No início, todos pensaram que a vida na seita viraria um caos, com muitas orgias e festas, dado o histórico de promiscuidade de Ta Yeh, mas se decepcionaram. A vida do Celestial Coelho era entediante e, apesar de ser uma figura carismática, não era alguém que virava a “alegria da festa”.
Mo Tian não tinha do que reclamar; Song Ning estava morto e Ta Yeh o tratava muito bem, fazia questão que eles comessem da mesma comida e puxava assunto quando não estava sugado pela alta dose de responsabilidade que precisava lidar todos os dias. Quando saíam do escritório para respirar ar puro, Ta Yeh contava situações da sua época sem se dar conta do quão hilárias eram, arrancando risadas de Mo Tian. Tudo era muito leve e fluía sem obstáculos, ao contrário da vida caótica que levou com o antigo líder Xiang Dao.
A pior parte com certeza era lidar com a inquietação do público e com um bando de cultivadores degenerados e egoístas. Ainda assim, Mo Tian não se importava, contanto que pudesse ser útil e, assim, continuar fazendo parte daquela sociedade sem que lembrassem que ele não passava de uma farsa, fruto do clã Aki. Foi como aprendeu a sobreviver num ambiente onde sua presença era hostilizada: limpar a sujeira e cortar arestas para agradar e fazer outras pessoas sorrirem.
E o sorriso de Ta Yeh era uma das curvas mais bonitas que havia encontrado desde que chegou ao clã Lanhua.
Só precisava conquistar a confiança de Ta Yeh e não teria problemas na vida. Não seria amaldiçoado com azar, não perderia seu cargo. Só precisava se equilibrar na corda bamba e não cair no mar de leões que gostariam de vê-lo morto por ser um “espião que um dia irá trai-los”. Tudo seria ainda mais perfeito do que antes, com um tapete novo para esconder as sujeiras pesadas das quais não podia se livrar.
— Ele vai acabar com o nosso clã — Yawen Chen disse pela décima vez, pousando o livro sobre os Doze Celestiais na mesa da biblioteca com a mão livre.
Mo Tian, que despreocupadamente terminava de passar a tinta rosa no polegar de Yawen Chen, paralisou. Faltava só aquele dedo para que sua mão estivesse feita. Suas costas se tornaram eretas e instintivamente olhou para todos os lados, conferindo se alguém tinha ouvido. Para seu alívio, estavam somente os dois ali.
— Yawen Cheng… quer tanto assim se juntar a Song Ning? — Mo Tian disse entredentes, quase encostando o peito na mesa, o pincel suspenso entre os dedos. — Eu ouvi histórias sobre a situação da família dele. Sabia que a mãe está tendo que vender as jóias preciosas da família para se sustentar, e ainda descobriu que metade delas era falsa? E Ta Yeh pode te dispensar do cargo a qualquer momento… se descobrir o que anda falando. Bisbilhotando esses livros.
Yawen Chen recostou-se na cadeira, cruzando os braços.
— Não tenho medo. Não me importo com esse cargo como você. Não tenho pais para honrar, irmãos para me preocupar e nem quero casar ou ter filhos. Se ele quer lançar uma maldição, contanto que não atinja você, que é meu único amigo, estarei bem.
— Então trate de parar de procurar pelo em ovo! O Celestial está fazendo tudo o que pode pelo clã Lanhua.
— Ele está é gastando nossas reservas com linho caro e roupas extravagantes! Aquele exibido — Yawen Chen reclamou, apesar de não ser totalmente verdade. Ta Yeh mal aparecia em público, mas realmente tinha apreço por moda e se vestia de forma elegante… Quem testemunhava isso e fofocava para ela era Mo Tian. — Se ele é tão bom como você fala, não mataria qualquer pessoa que se opõe a ele. Pessoa… não, um cultivador, ainda por cima! E não amaldiçoaria a família inteira, que é inocente!
Mo Tian encolheu os ombros. Sabia que Yawen Chen tinha ficado atingida porque gostava do irmão jurado de Song Ning, Liu Jin-Daozhang. E ele não havia ficado nada feliz com aquela situação…
— Só porque você nunca viu Xiang Dao fazer o mesmo, não significa que ele não agiria assim caso houvesse uma rebelião — Mo Tian argumentou.
— Nunca houve uma única revolta desde que ele assumiu o posto de líder. Ele pode não ter sido o melhor dos líderes, mas ele cuidava do clã. Graças a ele, a guerra com o clã Aki acabou. Estávamos em paz e não nos faltava nada…
— Estamos em paz agora e nada nos falta. Por que você continua insistindo nisso, A-Chen? — Mo Tian apelou, aflito, por ainda estarem falando sobre aquele assunto em voz alta. Ele voltou a mergulhar o pincel no pote de tinta feito de rosas, segurou firme a mão de Yawen Chen e se empenhou em finalizar o trabalho. — Não é uma briga nossa, somos grãos de areia no meio desse vendaval.
Nem cultivador eram, do que valia a opinião deles? Se houvesse uma revolta, não seriam os servos que a iriam comandá-la. A amiga bufou, conferindo Mo Tian pintando sua unha.
— E os livros falando do Celestial Coelho? Ele mandou tirar todos os livros que falavam dele daqui. Só sobrou esse, sobre os Doze Celestiais. Você não acha suspeito? Ele não quer que descubramos algo…
— Ta Yeh é reservado. Ele pode não gostar de gente vasculhando o passado dele… E eu já te contei coisas do passado dele, nós até rimos da situação dos doze caixotes de cenoura que entregaram para ele como dote de casamento, lembra?
Só de lembrar, os lábios de Mo Tian se torceram imediatamente. Yawen Chen não o acompanhou, concentrada nas próprias teorias. Ela só voltou a si quando esticou o braço, conferiu suas unhas pontudas prontas e aprovou com um gesto. Mo Tian ficou feliz.
— Essa decisão de esconder o passado não cabe a ele. Não está certo, Mo Tian. Xiang Dao falou várias vezes que ele traria desgraça para o nosso clã e não consigo parar de pensar no que ele está tramando. Song Ning também parecia conhecer suas histórias e acabou morto. E se Liu Jin for o próximo? Eu preciso descobrir sobre o passado dele para entender… mas ele fez o favor de destruir tu…
Mo Tian tinha se levantado e voltado a espanar livros, reorganizando-os na prateleira, quando sentiu Yawen Chen agarrar seu braço com urgência. Ele ia falar para ela se aquietar e não manchar a pintura que ele tinha acabado de fazer porque ele não ia fazer de novo — ele ia sim —, mas o olhar penetrante dela o silenciou:
— Mo Tian, eu tive uma ideia.
— Veja bem o que você irá dizer…
Mas sua amiga não precisou abrir a boca para falar nada. Naquele momento, as últimas pessoas saíram da biblioteca, suas passadas leves ouvidas frente ao silêncio abafado do lugar. Já era noite, poucas pessoas frequentavam aquele pavilhão naquele horário. Na penumbra criada por poucas luminárias, Mo Tian decifrou o olhar de Yawen Chen como se estivesse acionando engrenagens e não conseguiu falar pelo que pareceu o tempo de um incenso.
— Você quer que eu… tire essa resposta dele? — ele sussurrou alto e estridente. — Quer que eu, o servo mais próximo dele, arranque histórias sobre seu passado. Descubra o que é que ele está escondendo direto da fonte. Porque ele pode queimar todos os pergaminhos e matar quem ousar saber, mas não pode apagar a própria consciência.
Yawen Chen se ergueu, tamanha assertividade.
— Pelos Celestiais — exasperou Mo Tian.
— Quem melhor em Lanhua para fazer isso? Você é sociável e convenceu todo mundo que é parte desse lugar. Todos gostam de você. Não há ninguém que negocie como você. Ta Yeh confia em você!
Ta Yeh confia em você.
Se Mo Tian tivesse que seguir a lealdade que prometeu ao Celestial, deveria partir até o quarto dele e contar todos os detalhes daquela conversa. Porque Yawen Chen estava tramando contra o líder, especulando sobre seu passado, contestando suas ações, pedindo ao seu servo para traí-lo. Se fosse seguir a lealdade devida à amiga, se fosse escutar aquele sigilo ecoando no fundo de sua mente e duvidar das intenções de Ta Yeh… não enxergava o chão para a altura de sua queda. Iria perder tudo o que conquistou, ser amaldiçoado, viver uma vida miserável ou até morrer com uma lança fincada em seu estômago. O coração acelerava só de pensar.
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