A porta se abriu devagar, Kale entrava furtivamente não querendo atrapalhar a discussão.
A luz do local era forte, fogo espalhado pelas lareiras e lampiões acesos em todos os cantos, a sala estava cheia, cinco Mestres se encontravam sentados espalhados pelo local com feições preocupadas, Mestre Superior Dihara estava em pé discutindo, seu rosto vermelho pelos gritos. Outro bando de homens e mulheres vestidos de pretos se amontoavam na extremidade da sala todos em pé e quietos, uma visão um pouco perturbadora. E por fim, o que estava de pé em frente ao Mestre Superior Dihara. O Sacerdote, um homem velho, porém, imponente, com rosto indiferente e com mão as atrás nas costas, como se não se importasse com a discussão que estava acontecendo ali.
No momento em que Kale entrou, ele começou a ouvir os gritos.
-O que você está dizendo quebra séculos de tradições e regras! – Dihara gritou. – Você não tem o direito...
-O que estou falando é uma verdade e algo que irá acontecer. – O Sacerdote retrucou calmamente. – Suas reações exageradas não mudarão minhas ideias.
Dihara ofegava, seus olhos fumegavam de raiva com seu rosto vermelho, ele estava irado.
Kale queria muito saber o porquê, mas, obviamente não podia interromper, ele andou discretamente em volta da sala para chegar até seu Mestre, sua presença quase não foi identificada pois todos os olhos estavam grudados nos dois homens no centro.
-Você acha que eles permitirão você fazer uma coisa dessas? – Dihara gritou.
-E como é que eles me impediriam? – O Sacerdote respondeu. – Eles não têm assunto ou autoridade nessa área, o ritual de coroação do rei sempre foi organizado pelo Sacerdote. Isso não vai mudar.
-E o ritual foi sempre realizado pelo Mestre Superior, isso você não pretende fazer igual, não é?
O Sacerdote suspirou fundo.
-Dihara você não deve e nem pode realizar a cerimônia.
Kale se aproximou de Mori que estava sentado com a respiração ofegante, os pulmões do Mestre sempre foram os piores.
Ele se abaixou atrás dele.
-Mestre, estou aqui. – Ele sussurrou colocando a mão sobre o ombro direito de Mori, ele virou para Kale e seus olhos se aliviaram, sua respiração ficou melhor, mais completa.
-Que bom que veio rápido. – Ele falou baixo. – Sente-se. Anote tudo o que eles falarem.
Kale sentou do lado de Mori em uma cadeira em frente à mesa com papéis e penas prontas para as anotações. Kale sempre teve uma escrita rápida, ele ser chamado para isso não era uma surpresa.
-Os seus motivos vêm de uma crença ridícula e uma fé baseado nos seus desejos!
Todos paralisaram, o rosto de Dihara que antes estava vermelho ficou branco.
As palavras deles eram uma ofensa clara. Uma afronta contra um dos Poderes de Astoria e contra o Sacerdote diretamente, era algo contra a cultura e tudo o que eles valorizavam, o Mestre Superior praticamente acusou o Sacerdote de corromper a Religião, de impor seus desejos como se fossem dos Deuses, manipulando a todos, desacreditando o líder espiritual da nação.
Pensamentos como esse seriam a causa da destruição do poder da Religião em Astoria, era grave, podia ter repercussões perigosas, que alterariam a unidade dos Três Poderes que em vez de andarem em conjuntos como sempre fizeram, começariam esmagar um ao outro.
-O que você disse? – O Sacerdote perguntou baixo, parecendo mais ameaçador que jamais pareceu, mais ofendido, seus discípulos atrás deles acompanhavam tudo com olhos arregalados e cheios de raiva.
Dihara engoliu seco.
-Não foi isso que quis dizer. – Ele se explicou. – As palavras saíram sem pensar e não de uma opinião verdadeira ou sábia. Peço perdão.
Mestre Mori se pôs a levantar, a intervir pelo seu Mestre Superior, mas Kale o puxou antes, se Mori interferisse e o Sacerdote tomasse como uma ofensa pessoal, ele poderia ser punido. Kale não podia deixar isso acontecer.
Mori o olhou feio, mas Kale só negou com a cabeça.
- Pelos bem de todos... – Sacerdote falou devagar, medindo suas palavras. – Não tomarei as ofensas a sério.
Era como se todos soltasse o ar que estavam segurando, como se a tensão fosse quebrada, e o perigo tivesse passado.
Então, eles voltaram para a discussão de novo.
- Os deuses falaram comigo, Dihara. – O Sacerdote falou. – Você não pode realizar a cerimônia. Não é isso que as entidades querem ou aprovam. E você não será o homem a ir contra a vontade de um deus.
A raiva voltou ao corpo de Dihara. Kale arregalou os olhos com a informação.
O Sacerdote queria tirar o papel de Dihara em um dos rituais mais importantes de reino. Isso, obviamente causaria escândalo, alguns ficariam indignados, um dos Poderes estaria limitando o outro, uma ocorrência que nunca aconteceu antes.
O Ritual da Coroação era claro, um ritual para testar a capacidade do rei ou rainha e provar que os deuses o aprovam, o Sacerdote, porém, não era o que realizava, mas sim o Mestre Supremo, essa tradição foi criada para impedir a corrupção nos testes.
Mas parecia que o Sacerdote não autorizaria o Mestre Supremo a realizar a cerimônia. O motivo tinha acabado de ser dito. O Sacerdote que viviam em comunicação com as entidades recebeu uma orientação.
Esse era um momento crítico, Mestre Dihara achava certamente que o líder religioso estava só tentando minar sua autoridade.
Mas por que? Kale pensava. Por que os deuses impediriam de o Mestre Supremo realizar tal ritual? Independente de qualquer resposta, Kale tinha um péssimo pressentimento.
Kale conseguia ver de longe, a veia do Mestre saltando por causa do ritmo cardíaco alterado. Ele se virou para Mori, que parecia cada vez pior, seu rosto estava pálido, sua respiração superficial, o estresse piorava sua saúde em níveis alarmantes.
Kale se aproximou de seu Mestre.
-Vou pegar um chá para o senhor. – Ele sussurrou. Mori acenou com a cabeça. O chá era calmante, aliviava as dores e o estresse, fazendo o ritmo cardíaco de Mori voltar ao normal.
-E suponho que você que fará o ritual, então? – Dihara o confrontou. – Devo dizer que essa história fica cada vez mais suspeita.
O Sacerdote suspirou.
-Não, Dihara. Não será eu. – Ele respondeu. – Você não está apto para realizar a cerimônia, mas existem outros Mestres aqui que estão.
Dihara abriu a boca chocado, Kale se movimentava nas extremidades da sala para não chamar atenção, queria chegar até uma mesa no fundo aonde estava todos os ingredientes necessários para o chá de lirabel do Mestre.
Kale sempre fazia seus chás, por mais que outros Mestres e discípulos tentassem, Kale era o único que conseguia fazer com a melhor eficácia.
-Não pode estar falando sério. Pretende me substituir por alguém inferior?
-Achei que estaria feliz pelo Ritual ainda ser feito por um dos seus. Anima-se, Dihara, não vai ser hoje que a Religião subirá à Ciência.
Kale podia não estar anotando, podia estar fazendo outra coisa, mas seus ouvidos prestavam atenção em cada palavra dita por eles.
Em frente a pequena mesa, Kale começou a preparar o chá, as folhas de lirabel, a planta medicinal, e mais alguns componentes essenciais.
Dihara riu.
-Isso é uma afronta a toda a nossa comunidade! – Ele gritou.
-Dihara! Você é tio do príncipe herdeiro! Só por esse motivo você já devia ter sido afastado. E se ninguém da realeza fará isso, pode deixar que eu faço.
Dihara respirava superficialmente.
-É por essa razão, então? Que você me exclui tão facilmente?
O Sacerdote passou a mão pelo rosto.
-Você é considerada a pessoa mais sábia do reino? Como não consegue entender algo tão simples? Os deuses me disseram, Dihara, falaram comigo, a própria Celene em pessoa, e ela não quer você lá.
Dihara ficou quieto, não retrucou em nada. O Sacerdote parecia tão certeiro, decidido, talvez o Mestre tenha percebido que seria inútil tentar fazê-lo mudar de ideia. A decisão já estava tomada, e era o Sacerdote que tinha a última palavra naquele caso.
Mas aquilo era perfeito, o Sacerdote era o canal de comunicação dos deuses, mas também, ele era o único, poderia manipular a população dizendo que aquilo era os desejos dos deuses, e ninguém poderia impedir pois seria uma afronta à Religião.
Dihara não podia questionar o Sacerdote, aquela era uma força inimaginável e frágil, as palavras do Mestre Superior poderiam criar uma força de fiéis furiosos por ele duvidar do Sacerdote e dos deuses.
Ele não tinha escolha senão obedecer. Se tornando uma das únicas vezes que um dos Três Poderes supera o outro.
Minutos se passaram, ambos estavam parados, os olhos de Dihara meio foscos, ele não olhava para o Sacerdote enquanto falava.
-Como você escolherá o Mestre que fará o ritual? – Ele perguntou derrotado.
-Da mesma forma que você foi retirado, os deuses terão total escolha nesse assunto.
Dihara suspirou e tudo ficou em silêncio de novo, Kale estava terminando o chá de Mestre Mori, mas, ao arrumar a xícara uma pequena colher de prata escorregou.
- A última coisa que eu quero, Dihara... – O Sacerdote começou, porém, o barulho da colher batendo no prato foi tão alto que interrompeu a frase do As
cerdote.
O som ecoou pelo silêncio da sala, e Kale xingou ele mesmo de todos as ofensas que conseguia lembrar. Ele estava de costas das pessoas e seus olhos na xícara de chá, mas ele sentia, sentia todos os olhos voltados para ele naquele momento.
Ele terminou de arrumar o prato com as mãos tremendo, o coração acelerado e o rosto vermelho de vergonha. Engoliu seco e se virou, surpreendentemente, quase ninguém ainda olhava para ele.
Mas a primeira coisa que Kale viu, foi o olhar pesado do Sacerdote sobre si. Olhava apenas para Kale. Totalmente, completamente.
O Sacerdote virou um pouco a cabeça para o lado, curiosidade enchendo seus olhos, franziu até a testa.
Kale engoliu seco sob o escrutínio, ele não sabia se havia outras pessoas o observando também, o Sacerdote era tão intenso que não tinha como desviar para outro lado.
- Desculpe, mas quem é você? – O Sacerdote perguntou. Kale engoliu seco e ficou perdido. Por que o Mestre estaria focado nele, quando tinha questões muito mais importantes e urgentes para resolver?
Ele olhou para seu Mestre em busca de orientação. Agora sim todas as atenções se voltavam para Kale. O Sacerdote tinha falado com ele diretamente, em meio de uma grande bagunça. Mestre Mori acenou com a cabeça, como se desse permissão a ele, seu aval.
Kale se voltou para o sacerdote que ainda o olhava.
-Meu nome é Kale Mori. – Ele respondeu fazendo uma reverência. – Sou apenas um discípulo.
Os olhos do Sacerdote brilharam surpresa.
-Em uma idade tão jovem? – Ele perguntou. – Você não estava aqui antes.
-Sou avançado pela minha idade. E Mestre Mori me convocou para ajudá-lo.
Kale só deu de ombros e o Sacerdote voltou os olhos para o Mestre.
-Mestre Mori? – Ele falou. – É seu filho?
Mestre Mori pigarreou.
-Por consideração. – Respondeu.
O Sacerdote pareceu confuso. E se virou para Kale de novo.
-Você tem algo de tão familiar. Seus olhos. Nunca nos encontramos antes?
O rosto de Kale ficou branco.
-Não, senhor. Essa é a primeira vez.
-Sacerdote. – Dihara o repreendeu. – Estávamos discutindo sobre algo mais importante que isso.
O Sacerdote acompanhou Kale enquanto ele dava a volta para chegar até seu Mestre com o chá.
-Você estava discutindo, Dihara. Eu estava apenas comunicando.
Dihara abriu a boca para falar algo, mas foi interrompido.
-O assunto já foi encerrado. O Ritual da Coroação vai ser em poucos dias. Essa semana mesmo voltarei para escolher o Mestre que a realizará. Esteja preparado.
Dihara ficou chocado, a cor fugindo do seu rosto e começou a gaguejar.
O Sacerdote se virou em direção a porta e começou a sair, seu grande grupo de bispo o seguindo logo atrás.
Dihara gritava tentando chamar a atenção do Sacerdote, mas tudo foi em vão. Ele, então seguiu o Sacerdote que se dirigia a saída.
Alguns minutos se passaram e cada Mestre que estava ali se retirou um por um.
Só ficou Kale e seu Mestre.
Kale se sentou e entregou a xícara de chá para seu Mestre que tomou tudo como um homem sedento.
-Parece que os próximos dias serão bastante caóticos. – Kale falou para o Mestre. – Vamos esperar que o Mestre Supremo consiga se acalmar até o dia da escolha.
Mestre Mori deu de ombros.
-Não importa seu temperamento. Acho que é a primeira vez, desde que virei Mestre, que Dihara não tem poder ou chance de interferir. Ele com certeza está desprezando tudo isso.
Kale engoliu seco.
-Isso não terminará fácil.
-Não, não vai.
Então, Mestre Mori começou a tossir de novo, acendendo mais uma vez a preocupação de Kale.
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