Botas de couro esmagavam terra, galhos caídos e folhas secas.
Seus passos eram tão barulhentos na quietude da selva que gerava um pouco de preocupação, mas nada além de pequenos animais e criaturas rastejantes foram ouvidos, já que eles tinham um bom guia consigo para levá-los por um caminho seguro.
Pelo menos foi o que Fyrr ouviu, ainda era incerto se o que o capitão dos soldados kristanos estava sendo fiel a sua palavra, a raposa pode perceber certa perspicácia e experiencia neste tipo de coisa.
- Ainda vai demorar? - o garoto perguntou, com certa impaciência.
- Só mais um pouco, virando aquele tronco. – disse o vice capitão, apontando na direção do objeto, caído entre uma pequena ravina de rochas tomadas pelo musgo, pequenas vinhas cresciam por cima do tronco numa luta brutal pela sobrevivência, ao lado de uma boa quantidade de cogumelos, que aliás, estavam por toda parte, a floresta Mahatma havia surpreendido um tanto a Fyrr, quem não esperava encontrar uma quantidade tão grande de espécies diferentes num único ambiente, mesmo já estando numa floresta imensa antes, quando em seu exílio.
Cercado de seus guarda-costas (e um jovem que por motivos do destino decidiu segui-los), eles estavam sendo acompanhados pelo batalhão completo de anteriormente, cruzando a selva, e abrindo caminho entre as plantas rasteiras e arbustos, a equipe na fronte juntos ao vice capitão, que carregavam um facão nas mãos, terminaram de partir os últimos arbustos até se virarem para o restante do grupo, após uma breve olhada no caminho a frente.
- Chegamos.
Quando a mata saiu do caminho e a luz do entardecer foi desvanecendo conforme seus olhos se acostumavam com a iluminação, a visão do fim da estrada se revelou numa grande parede de madeira.
Cercados pelos soldados, o grupo se deparou com uma clareira mais aberta em volta de uma muralha de madeira imensa, com mais de quinze metros de altura, com espinhos esculpidos no centro como barreira para escaladas, Fyrr tomou a frente do seu grupo, fitando o limite daquela construção com admiração.
- Uoooooou! Não é meio grande demais pra um forte no meio da floresta? – ele comenta.
- Hum, - o capitão ao lado sorri, sem fitá-lo – se fosse um pouco menor, teríamos inúmeros problemas com as criaturas de grande porte que podem saltar e escalar árvores, sem falar que os Ciranos são mais que capazes de tentar invadir através das árvores próximas, como macacos mesmo, esses fudidos na verdade são piores que qualquer animal ou criatura mágica, são mais imprevisíveis.
- Que dificuldades.
O grupo seguiu até se aproximar da muralha, o capitão e o vice tomaram a frente do caminho e pressionaram seus distintivos, mandando uma mensagem rápida para aqueles que estavam no topo dela, quem rapidamente operaram o elevador de madeira, que veio descendo lentamente, e por onde metade do grupo subiu primeiro, com Jhon, Fyrr e o capitão sob ela, para depois o resto subir, devido ao seu tamanho modesto.
A raposa se recostou na beirada do parapeito da muralha e se encantou com a vista de Mahatma tão de cima, aquele mar assustador de copas de árvores de ponta a outra do horizonte, a incrível silhueta distante das montanhas ao Norte, na cordilheira Muhali, e agraciados pela brisa do ar, eles seguiram pela muralha até as escadas para finalmente descer.
(...)
- Hmmmmm... é, parece que está tudo certo. – O capitão finalmente concluiu em voz alta.
Numa das mãos, segurava a cópia do contrato de Nattan e Hory, com a marca do banco reagindo a sua mana com um brilho multicolorido.
Ele lançou mais um olhar rápido na direção dos dois magos, que esperavam o desenrolar da situação encostados na parede da entrada da sala, junto aos dois soldados que faziam guarda, de baionetas nas mãos. O capitão se encontrava largando os papeis em sua escrivaninha lotada de documentos, carimbos e papeis variados que exigiam sua atenção no dia, com o seu vice de pé ao lado da mesa, enquanto Fyrr esperava terminar o julgamento do homem, com Jhon ao seu lado, em pé, torcendo para que a intuição do garoto não estivesse falhando.
- Como pode ver, eu não sou do tipo que mente. Infelizmente, saímos às pressas do pedágio, então não trouxe comigo alguma evidência de minhas ligações, mas isso é algo que podemos garantir em pouco tempo. – O garoto contou, fitando o capitão com confiança.
O homem recolhia toda a informação que podia no olhar ardiloso do garoto espírito que ainda o intrigava e suspirou, mantendo seu sangue o mais frio que poderia.
- Realmente, é uma pena, mas pelo menos, isso vai ser o suficiente, eu não quero acabar envolvendo os kristanos ou qualquer que sejam suas ligações nisso no meio de meus negócios, e como nada disso foi intenção de alguém, não vejo por que os culpar.
- Que bom que demos sorte de encontrar um homem sensato, senhor capitão. – A raposa bajulou falsamente.
- Não precisa ser grato, senhor Espírito. – O capitão comentou, se inclinando na mesa, cruzou os dedos de forma grudenta e pôs no rosto seu sorriso frio, almejando pelo menos perscrutar um pouco do que se passava na mente daquele garoto estranho. Por mais que parte da história que ouviu tenha se provado verdadeira e o garoto não ter demonstrado nenhum sinal de desconfiança, a situação continuava estranha e potencialmente problemática. Seus instintos de anos de treino lhe diziam veementemente que alguma coisa estava muito errada, e guiado por eles, seu olhar pesou.
O problema mais potencialmente problemático a curto prazo provavelmente seria o kristano de pé em frente a sua mesa, suando frio, vagando seu olhar entre os rostos naquela sala, como se não estivesse acostumado a este tipo de negociação.
- Estou fazendo apenas meu dever de proteger. – Ele os aliviou.
- Mesmo assim, isto poderia ter acabado de um jeito bem pior. – Fyrr enrola.
Pelas palavras ditas a ele, o moleque era só o filho mimado de um “comerciante” bastante duvidoso e problemático que sempre foi mimado e privado de conhecer o mundo, o transformando em um idiota, assim como todos esses porcos brancos, e agora que o moleque está virando adulto e mal honra as calças que tem, deve ter se arrependido e feito ele trabalhar na parte suja do negócio de última hora só pra não ver o futuro do seu negócio sendo herdado por um bunda mole, que história inútil e repetitiva pra gente que se achavam deuses na terra.
- Mesmo assim, como pode ver, existe um limite em que meu batalhão poderia te ajudar, seja na busca de recuperar a mercadoria que os fez se arriscar dentro desta selva ou levá-los de volta, minha jurisdição tem um limite de quanto posso fazer por civis, independente de quem ou o que são eles. – O capitão enrolou. Seja ele um comerciante significativamente poderoso ou só um merda qualquer, ainda era um membro sanguíneo do povo kristano, e como tal, lidar com ele da forma errada poderia destruir toda a carreira militar que o capitão construiu até agora, essa era a parte mais problemática da coisa. O jovem retardado e mimado teria de ser cuidado de uma forma bastante delicada, para não ser devolvido aos seus pais com nenhum arranhão no rosto ou mancha na reputação, senão, quem se foderia no fila seria o próprio soldado.
- Oh, claro que eu não poderia exigir algo assim de vocês, a mercadoria... seria melhor se ela fosse encontrada e recuperada pelo meu pessoal, mas, se o senhor pudesse disponibilizar parte de sua inteligência para nos ajudar a seguir mais a fundo os rastros de onde ela foi parar, agilizaria e muito o nosso serviço, claro, isso terminaria como um bom negócio para o senhor também... – a raposa comentou, gesticulando agilmente com suas mãos, sustentando o olhar do capitão com exímio.
O capitão sorriu com desdém, deixando seu tom o mais coloquial possível, sem esquecer que o garoto semi-espírito era o segundo maior problema.
- Mas é claro, eu adoraria ajudá-los a terminar seu serviço com segurança e retorná-los a sua casa, este é meu pensamento principal, mas realmente, teríamos problemas se separássemos nossas forças assim de repente no meio do expediente, e se acontecesse algo no meio do caminho, teríamos perdas consideráveis a arriscar...
- Perdas que provavelmente tem o seu número de valor no banco, posso dizer assim?
- Hohoho, mas é claro, senhor Espírito, não há nada neste mundo que não tenha um valor.
Ele tinha dinheiro, ou tinha capacidades de movê-lo a seu favor, foi isso que seu olhar deixou claro quando comentou o suborno. Criaturas semi-espirituais... porra, ele nunca tinha pensado que em sua vida encontraria um, ouviu sobre sua existência apenas em contos de fadas cantados por sua avó na infância e em boatos dentro de bares aleatórios, estavam quase no espectro de criaturas que poderiam existir ou não em sua mente, mas de qualquer jeito, eles eram sempre vistos como criaturas que não se envolviam com humanos e quase divinas, de uma forma mais real que os porcos brancos. O que diabos significava um negócio envolvendo roubo de cargas com um espírito no meio? Eles pareciam tão inalcançáveis para aparecer num projeto tão... mundano.
- Ainda bem, entendo que o senhor capitão vem dando duro segurando as pontas neste lugar com tantos problemas, então por respeito ao seu esforço, não quero causar nenhum tipo de estorvo que vá atrapalhá-lo.
- Se o senhor entende, eu fico grato, dinheiro é sempre bem-vindo para que o exército de Krista permaneça firme e forte no seu dever de lutar contra esses macacos que vivem ameaçando esta floresta. Obrigado pela compreensão, senhor Espírito.
- Que não fique apenas por isso, senhor capitão. – O garoto continuou, com um sorriso cínico no rosto – por favor, quando for possível, me permita enviar também uma mensagem ao meu sócio que fui muito bem acolhido e ajudado pelo capitão do 47° forte de segurança na fronteira da floresta Mahatma, e que um homem como ele não deveria ser tão subestimado como é.
- Que é isso, que é isso? Não é pra tanto, senhor Espírito, - De novo retrucava timidamente – Meu dever é proteger e servir, não vejo por que não cooperar com uma causa tão justa como a de um comerciante esforçado tentando recuperar sua forma de viver injustamente roubada.
- Está se rebaixando demais, meu bom homem.
- Você é quem está me superestimando. Por favor, sinta-se em segurança. Agora, infelizmente, faltam poucas horas para o sol se pôr, e como sabe, essa selva não é um lugar muito agradável a noite para se rondar aleatoriamente. Vou permitir que os senhores permaneçam aqui por tempo indefinido como convidados, e ao nascer do sol, disponibilizarei alguns dos meus homens para cooperar com sua busca, mas sinto dizer que o máximo até onde poderei ajudar será guiando-os em seu caminho.
- Só isso é mais do que eu poderia pedir, meu bom homem. Farei questão de mandar meus guarda-costas também para ajudar, sei que magos de quarto círculo tem sua utilidade, então não irei medir esforços para diminuir esta carga desnecessária que botei nas suas costas.
- Que é isso, creio eu que com isso, podemos terminar este serviço rapidamente, e com sua generosa doação para cobrir nossos riscos aposto que nós é quem estaremos gratos em ajudar.
- Como é bom saber que o exército de Krista está sempre ao lado de seu povo, acho que subestimei um pouco vocês mortais de vidas curtas, muito obrigado por isso, capitão.
- Hoho, por favor, faça o favor de guiar nossos hóspedes para um quarto que esteja desocupado, se não houver, desocupe alguém de um e deixe-o com eles.
- Sim, senhor capitão. – O soldado a esquerda da porta assentiu em resposta, monotonamente.
- Creio que podemos... estabelecer o nosso acordo desta forma, certo?
- Mas é claro, não tenho reclamações enquanto tudo seja feito o mais rápido possível.
- Ótimo, eu vou garantir ao senhor cartas para que possa enviar ao seu chefe esta noite, sinto muito que não possa ser mais ágil, mas tem outras pessoas que... bem, algumas eu acredito que o senhor não gostaria que soubessem que está aqui...
- Oh, sim, por favor, se possível, comunique-se apenas com que não possa.... entrar no caminho de nossos problemas.
- Claro, claro. Vou me lembrar deste detalhe. – Ele comentou, pegando um dos papeis na mesa e o carimbando.
- Por favor, sigam-me! – o soldado exclama, se aproximando do garoto, que levantou calmamente da cadeira e enviou um último olhar de confiança para o capitão – obrigado pela compreensão, capitão Denovo.
- Eu quem agradeço, senhor Espírito.
Hory e Nattan se uniram a dupla guiada pelo soldado quando atravessaram a porta de entrada e então, fechou sobre si com barulho, deixando a sala apenas com o capitão e seu vice na presença do último guarda.
- Huff, que complicação... – Denovo suspira, se inclinando na cadeira.
- Vai mesmo ajudá-los a recuperar a carga perdida? – o vice comenta, ainda encarando a porta, como se pudesse ver os resquícios da presença dos indesejados nela.
- Espero que não. Vou verificar a veracidade das informações ainda hoje, se o sócio kristano do espírito estiver perto demais daqui, não vou ter muita escolha a não ser cooperar por enquanto, pelo menos, preciso ficar de olho especialmente no garoto e no espírito... que droga! Se não são esses comedores de grama, nos atormentando, rondando por aí nos últimos tempos, me aparece isso?
- Eles disseram que os ladrões tinham trazido a carga pra dentro da floresta, mas ela não seria um bom esconderijo a longo prazo pra guardar mercadorias, tem algo estranho aí.
- Eu sei, cacete, e ele também sabe. Aquele garoto... eu não consigo dizer o quanto de verdade e mentira ele colocou naquela história, talvez esteja omitindo várias coisas de propósito também. Acho que ele é um mentiroso melhor do que eu. Por enquanto, vamos só nos focar em descobrir o quanto de verdade ele está dizendo, mas também, é bom separá-los por agora, vai ser difícil lidar com magos de quarto círculo quando for necessário me livrar de alguém.
- O senhor conseguiu sentir os círculos deles?
- Não, estão acima do meu, o que é bastante preocupante. De repente, o destino jogou uma bomba relógio dentro do nosso forte, que desagradável.
- Então por que os deixou entrar aqui? – o vice pergunta, genuinamente curioso.
O capitão sorri para ele, desdenhoso.
- Bem, há males que vêm para o bem, também. A melhor forma de parar um incêndio, muitas vezes, é causando outro, assim os dois se sufocam e se destroem, sem causar muitos problemas além disso. O que acha? Quanto tempo será que os magos aguentam do lado de fora desse inferno na terra?
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