Dez metros acima deles, firmemente sobre os troncos mais fortes das árvores centenárias, os dois estranhos observadores fitaram o grupo com olhares afiados. Nattan se preparava para sacar sua espada, atento a cada micromovimento que os ciranos poderiam fazer, enquanto eles observavam também.
O ar continuou tão tenso quanto antes, quando primatas gigantes os cercavam ameaçadoramente.
Fyrr se atentou aos dois estranhos. Eram jovens e esguios, mas com corpos aparentemente bem treinados. Um garoto da idade de Jhon estava à frente, apontando seu arco e flecha longo na direção deles, tinha olhos escuros e afiados, feições rígidas e juvenis contrastando numa face saudável, o nervosismo cobria-lhe o rosto como uma máscara. Tinha cabelos longos de franja separada ao meio presos em uma trança que descia pelos seus ombros. Vestia um saiote longo com padrões semelhantes aos da tatuagem que atravessava o seu peito na diagonal, uma faixa de quadrados unidos numa hélice com círculos dentro de cada unidade.
Atrás dele estava uma garota da mesma faixa de idade num tronco o lado, olhando para os quatro mais curiosa que nervosa, de olhos verdes e vibrantes, o mais interessante para além das suas vestimentas de pele e tatuagens iguais ao do aliado, tinha cabelos longos e azuis, desgrenhados, seu físico era visivelmente superior, mas um tanto inocente nos seus trejeitos mais sutis.
- E agora? Alguma ideia de quem sejam, Kristano? - Nattan perguntou, de olhar fixo nos dois nativos a frente.
- Precisa mesmo que eu diga? Não precisa ser nenhum gênio para adivinhar.
Os nativos de Mahatma trocaram um rápido e sutil olhar significativo ao verem os estranhos conversarem entre si, mas sua posição se manteve, e a intenção deles ficava mais clara no ar, o suficiente para tanto Fyrr quanto Hory sentirem que não havia uma clara intenção ofensiva. Os olhos da raposa se dilataram quando percebeu que os personagens que estava ansioso para encontrar estavam tão confusos e assustados quanto eles, o que não era pra menos. Eles eram os invasores que entraram sem permissão na sua casa.
A flecha continuou ameaçadoramente acenando para eles, mas a cada segundo perdia sua força. Antes que as coisas se complicassem mais, Fyrr deu um passo tímido a frente, cauteloso, e logo deixando a preocupação de lado, se embriagou com a confiança que sabia inflar naturalmente e atravessou o núcleo onde estava protegido dos seus companheiros, atraindo olhares preocupados de cada um enquanto se afastava,
- Vamos lá! Parem com essa frescura! São eles quem estamos procurando este tempo todo, não é mesmo? - ele exclamou, tanto para os companheiros quanto para os nativos, que certamente reagiram àquelas falas com uma expressão mais confusa, o que levantou suspeitas. - Abaixem a guarda! Agora!
Após a ordem imperiosa, lentamente, Jhon e Nattan engoliram em seco, mas relutantemente acataram o pedido, enquanto Hory pulava suas pupilas dos nativos para Fyrr, com a aura em guarda.
O garoto parou a frente do grupo mantendo sua aura confiante e postura ereta, negociativa, mas sentindo a força ofensiva que o mago exalava, ele virou seu rosto na direção do mago e elevou a voz mais imperiosamente do que antes.
- Anda, relaxa aí, seu zé ruela. Ninguém está aqui pra brigar!
Engolindo a força a petulância do garoto, ele cede com irritação, parando de se importar com a situação de repente.
A raposa então seguiu seu caminho até parar logo abaixo da faixa de visão dos nativos, atentos aos movimentos da criatura em seus mais ínfimos detalhes, prontos para qualquer coisa, menos para o que estava por vir.
- Vocês entendem a minha língua, certo? Por favor, não precisam se sentir ameaçados, não viemos aqui pra atacar!
O garoto gritou com intensidade suas emoções para evitar um conflito, para em seguida, cair de joelhos na frente dos nativos, abaixando totalmente sua guarda.
Os nativos se entreolharam mais confusos ainda e franziram o cenho para o garoto, então notando que não se tratava de um simples kristano. Além dos cabelos loiro-pálidos, possuía uma causa de mesma cor, com a ponta branca, e orelhas caninas acima da cabeça. Sentindo sua aura nobre, porém selvática, não demoraram a perceber que se tratava de algo além do humano.
A garota, para a surpresa de todos, assim como do seu aliado, abriu um longo e infantil sorriso, antes de saltar agilmente da árvore e cair pesadamente sob as raízes grossas da árvore.
- Minaa! - o jovem nativo exclamou, encarando a garota com pesar.
Mas a sua companheira irresponsável apenas o ignorou, se aproximando sem um mínimo de cautela da raposa, o que atiçou o sensor de perigo dos quatro, mas seja por não ligar ou simplesmente não notar, ela seguiu seu caminho até pouco mais de um metro e meio de Fyrr, que a fitava anda de joelhos, surpreso, e satisfeito ao mesmo tempo.
- Você é um espírito, não é? - ela perguntou alegremente.
Logo atrás, o corpo pesado do jovem caía no solo irregular, praticamente desistindo em frustração pelo descuido de sua amiga e também, ao perceber que a atmosfera séria de antes estava rapidamente desfalecendo.
- Semi-espiritual, na verdade. - O garoto a corrige.
- Eu nunca tinha visto um antes! Você sabe transformar sal em açúcar?
- Eu fico feliz que você fala a minha língua, assim posso deixar as coisas mais claras, e não, não posso.
- Sério? Então a tia mentiu pra mim?
- Bem, eu não tenho certeza se ainda é uma coisa boa nos entendermos ou não, - O jovem nativo repentinamente diz, se aproximando da raposa, com o seu arco pendurado na mão esquerda, mas ainda pronto para reagir se necessário, mas sua feição emburrada parecia mais voltado para sua companheira que na situação em si. - O que acham que estão fazendo aqui?
- Acredite em mim, eu não estou aqui pra trazer problemas, estou aqui pra resolvê-los. - Fyrr afirma.
- Não está tentando arrumar confusão, é? - o nativo comentou, varrendo seu olhar sobre a raposa para terminar nos magos em guarda poucos metros atrás deles, e para Jhon, que esperava o mais calmamente possível esperando o desdobramento do evento, para depois sentir a certa desconfiança hostil do nativo focada nele - então porque diabos você trouxe “ele” pra cá? Tem ideia de onde você está?
- Você pode desconfiar e odiar tanto ele quanto a mim igualmente, porque ele é meu subordinado, de qualquer jeito.
Com calma, retirando o olhar de cima do nativo para demonstrar uma abertura, provocando no jovem certa confiança, ele calmamente colocou a mão dentro do quimono num gesto simples, os dedos do nativo se apertaram no arco mas ele esperou até o garoto retirar de dentro da roupa um pequeno objeto metálico que depois mostrou claramente para ambos, retirando deles um franzir de cenho, tanto deles quanto de seus aliados também, que quase não podiam acreditar que viam a raposa segurar uma carteira de couro com o brasão de armas dourado do exército de Krista incrustado no centro, e uma pequena escrita demonstrando a patente dele.
- Meu nome é Fyrr, e eu sou um agente de investigação do exército de Krista. Eu vim aqui apenas para descobrir algo, e tenho certeza de que vocês dois podem me ajudar também.
- ... - ambos os nativos travaram, novamente perdidos em suas próprias ações.
- Sei que pode ser difícil de acreditar, mas eu preciso da sua cooperação. Não se trata apenas de um problema meu, é de vocês também.
- E que pressuposto você tem pra dizer isso?
- Ataques constantes a bases militares dentro da floresta e homens montados em lobos gigantes são o bastante para te dizer algo?
o silêncio dos dois após aquelas palavras foi expressivo.
- Qualé! Por que tanta preocupação nessa altura do campeonato, Kaiera? - a garota comentou de repente para seu companheiro.
- Que merda que você tá falando? Porque não seria cuidadoso agora, sua imbecil? E porque você foi a primeira a pular na frente de quatro estranhos perigosos igual uma retardada? - o rapaz exclamou para ela, com um tom estressado único de quem já estava acostumado a lidar com gente inconsequente.
Fitando os dois com certa incerteza, a raposa absorveu com cautela as informações que eles disponham enquanto esperava por uma chance de falar outra vez.
-Nah, não tem por que um espírito estar mentindo pra nós, né? E ele ser um oficial kristano já não coloca tudo num rumo mais ou menos lógico? - a garota comenta, observando o grupo que invadiu a floresta com curiosidade.
-Escuta aqui, sua tapada. Mesmo que um duende estivesse aqui na nossa frente, ele está com um kristano, e veio de fora. Você não anda descuidadamente como se quisesse entrar na boca do leão!
-Então, você é Fyrr, certo? - a garota perguntou casualmente ao garoto.
-Sim.
-Você ouviu alguma coisa do que eu disse, Mulher?!
-Foi mal pelo meu amigo histérico…
-Histérico!
-Acho que vocês já devem saber quando entraram aqui que não podem simplesmente avançar no nosso território como animais estúpidos fazem, ainda mais sendo oficiais kristanos, então, pelo que você disse, acho que consigo entender por que estão aqui, e acho até que demoraram demais pra agir, mas cá entre nós… - ela continuou dizendo, se agachando para estar à altura de Fyrr, que cravou sua atenção em gravar a imagem curiosa da cirana. - Essa história de um oficial sendo mandado pra investigar de forma diplomática na nossa área soa bem como papo furado…
Ela disse aquilo com olhos brilhando cheios de astúcia, olhos verdes vibrantes, mas não tão profundos quanto os de Nattan, seus cabelos azuis eram compridos e desgrenhados, caindo por suas costas como uma cascata espinhosa, e tinha uma face jovial atraente. Na mesma hora, a kitsune sabia bem que apesar de imprudente e tapada, a garota poderia ser tanto uma ajuda fundamental para seus planos quanto o motivo de seu fracasso.
Pelo menos, foi o que concluiu, enquanto ainda sentia o olhar ácido do seu companheiro jovem muito próximo a eles, apontando uma flecha na sua direção.
- Muito obrigado pela compreensão. - O garoto diz, se levantando outra vez e fitando a garota com firmeza - Bem, desde que não adianta nada tentar entrar aqui com um batalhão, é meio lógico que uma mudança de postura seja necessária, não é sensato?
-Hoho! Ei, Kaiera, esse garoto aqui é bom com palavras complicadas! - ela comenta toda animada, virando o resto na direção do companheiro, segurando um sorriso.
-Não desgrude os olhos dele, droga! Eles são o bastante pra acabar com a gente se nos pegarem de surpresa! - o companheiro exclama, quase como uma súplica quanto a imprudência da garota.
Mas ela continuava tão calma e confiante em suas ações como nunca, algo que apenas Fyrr achava que poderia fazer. Uma confiança de alguém que sabe que tem ou pode ter tudo sob controle mesmo sendo fraco ou estando aparentemente encurralado. E essa confiança o atraiu sorrateiramente. Mas no mínimo, era esperto o bastante para jogar o jogo também.
-Enfim, eu peço apenas que vocês possam nos levar aos líderes da sua tribo. Por favor. Esse assunto precisa ser tratado com urgência.
-Heh, esse é um pedido e tanto, einh? - ela debochou, pegando o garoto levemente de surpresa com a mudança de ares - você ainda não fez nada pra nos convencer além de mostrar seu distintivo, e seus amigos ainda estão ali atrás, em guarda, apenas procurando uma deixa de atacar ou defender, não é? - ela aponta com o olhar
Seus olhos agora brilhando com uma ameaçadora confiança de que não importa quem eles seriam, ela saberia lidar com isso.
-O que será que vai acontecer se você chegasse a nossa tribo? Por acaso, não teriam batalhões de homens de branco aparecendo pela mata por todo canto assim que abríssemos os portões da nossa casa?
A kitsune abriu um sorriso sincero, notável, e atraiu a curiosidade da garota mais uma vez, o ar em volta pulava de emoção a emoção, sempre se mantendo tenso como uma corda de puxar, medindo cada palavra lançada.
-Minha senhorita, me desculpe pela audácia, mas, vocês são os últimos que merecem algum aval de confiança aqui, estou certo?
-Hã? - Kaiera franze o cenho.
-Há semanas, meses, a nossa base próxima da fronteira tem sido atacada por vocês, mesmo não tendo nenhum motivo pra ameaças infundadas e represálias, e estamos perigosamente próximos de uma das entradas para a estrada que cruza Mahatma daqui. Homens de branco? Os únicos que deveriam ser uma ameaça real estão bem na sua frente, e todos os outros estão há algumas horas de distância daqui lutando pra manter suas defesas ativas contra lobos gigantes que insistem em atacar sempre que tem uma oportunidade.
-Como se fosse um problema de verdade! - o jovem exclama de repente, revelando ser o elo emotivo da dupla, avança alguns passos descuidados na direção da raposa, tencionado levemente a corda de seu arco, assim como Nattan posiciona seus pés enquanto tensiona os dedos num aperto em volta do cabo da espada oculta, pronto para atacar. - Se querem evitar problemas, comece retirando sua base daqui!
-Por favor, nós dois sabemos que isso não vai acontecer, a entrada da estrada principal está há poucos quilômetros de distância, os outros não vão arriscar deixar uma rota comercial tão importante se manter desprotegida assim.
-Então retirem ela também e deixem a floresta em paz, droga! - o rapaz exclama de volta, com os punhos cerrados segurando o arco.
-Agora quem está sendo o insensato? - Fyrr sorri, o que provoca mais ainda o jovem cirano.
-Seu…
-Senhor Espírito! - a garota exclamou repentinamente, quebrando a tensão no ar em pedaços.
Fitando a face concentrada dela, ele admirou seus nervos de aço enquanto esperava qual seria o próximo passo da garota. Ele teve sorte. Se ela estivesse sozinha, a negociação poderia ser imprevisível, mas o garoto era menos cauteloso, passional, e parecia ser alguém a quem ela carecia muito, assim como ele gostava bastante dela. Mordendo e assoprando, poderia provocar a conversa para algo mais seguro de se lidar. Ou talvez…
-Só vou te fazer uma pergunta. Você tem alguma intenção de atacar o nosso povo?
Aquela foi uma pergunta inesperadamente séria, direta, e sabendo que sinceridade seria vital aqui, a resposta era clara o como o dia.
-Eu juro em nome do impé… não, eu juro pela minha vida e a dos meus aliados, mesmo nos colocando em posição de cativos, que não pretendemos fazer nada além beneficiar os dois lados, e descobrir o que está acontecendo nesta floresta, para resolver qualquer conflito da forma mais pacífica possível.
Quando aquelas palavras foram ditas, Nattan e Hory imediatamente desmancharam suas posturas defensivas, e suspiraram com leveza, enquanto pensavam na mesma coisa:
"Isso vai ser uma porra"...
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