Jhon engoliu em seco mais uma vez, levemente atordoado com o ápice dos eventos, e decidiu relativamente se ajoelhar quando há poucos metros do ancião-sacerdote. O velho na mesma hora levantou um de seus braços frágeis de palma aberta, gesticulando para que o garoto parasse.
- Sentem-se. - O velho falou, sua voz era surpreendentemente firme e grave, e quando disse, correntes de fumaça branca saíram da boca.
Seguindo o seu pedido, ambos se entreolharam e se confirmaram, sentando-se lentamente em frente ao idoso. Um silêncio impertinente se seguiu, como se o velho estivesse esperando algo. Antes que a coisa ficasse desconfortável, Fyrr tomou a dianteira.
- Meu nome é Fyrr, e eu sou um agente de investigação em nome do reino de Krista. - Ele se apresentou, mostrando cuidadosamente o distintivo que retirou de dentro do quimono. - Apesar de ser um ser semi-espiritual, espero que possamos nos entender bem.
-Hmmm… - o velho gemeu levemente, retirando outra vez a ponta do cachimbo da boca, e soprando mais uma coluna de fumaça antes de falar - achei que justamente por ser um, veio achando ter alguma chance de ser ouvido…
- Bem, não posso dizer que não. - A raposa comenta, sorrindo cordialmente.
-Deixe-me tentar ouvir o motivo da sua vinda, então. É a primeira vez que escuto sobre o povo com quem trabalha executando planos diplomáticos, admito que mesmo que estivesse planejando te escalpelar e comer hoje à noite, eu estou bastante curioso em ouvir que motivo histórico é esse. - O velho comentou, sarcasticamente.
Deixando seu cachimbo de lado, no cinzeiro abaixo e a sua esquerda, ele largou seus braços estendidos na frente das pernas, relaxado.
Enquanto uma gota de suor frio descia pelo pescoço de Jhon, Fyrr manteve sua postura, apostando suas esperanças nos seus instintos outra vez.
-Muito obrigado pela oportunidade então. Sendo o mais breve que posso, o batalhão mais próximo dessa região tem relatado uma frequente onda de ataques advinda do povo. Homens os observando em árvores altas, ataques a transportes de armas e suprimentos para a base, homens montados em lobos gigantes. Isso tem preocupado bastante os superiores, já que, como deve saber, há poucos quilômetros daqui está uma importante entrada para uma das estradas que cruzam Mahatma, e como já deve saber, o medo de um ataque repentino é sempre ruim demais para os dois lados, mesmo que um acordo pré-estabelecido esteja no meio. O senhor pode me entender?
Silêncio.
O senhor de idade, com os olhos semicerrados, parecia quase estar em transe enquanto apenas escutava, se é que estava escutando, e por muitos segundos se manteve falado após a fala da raposa, até que, meticulosamente, ergueu seu braço esquerdo e pegou outra vez seu cachimbo do cinzeiro.
-Ora… - ele dizia, admirando os detalhes da antiga peça de fumo entre seus dedos longos e nodosos - e eu achando que me surpreenderia com alguma coisa por hoje…
Mais longos segundos de nada se sucederam, enquanto Fyrr tentava processar a fala e o tom do idoso, se arriscou mais um pouco. Ele não conseguia ler as expressões dos músculos do velho, nem conseguia ver claramente seus olhos, era a primeira vez que a raposa conversava com alguém quem seus conhecimentos de linguagem não verbal e psicologia humana não ajudavam logicamente. Ele estava há poucos passos da apreensão.
- Não estou entendendo, senhor sacerdote. Isso não é motivo o bastante para deixar muitas autoridades preocupadas?
-Sim, com certeza, - o idoso retrucava, indiferente com o garoto, largando o cachimbo outra vez no cinzeiro, e ajeitando sua postura, encarou os dois convidados outra vez - pra vocês, deve ser uma situação um tanto irritante. Mas não vejo por que deveria me preocupar com isso.
Mais silêncio seguiu essas falas, e agora, gotas de suor frio escorriam pelo pescoço de Fyrr. O velho a sua frente o fez se sentir novamente como quando estava encurralado numa caverna com o dragão. Não que o idoso à sua frente fosse mortalmente perigoso, mas, por ser um humano, a raposa o subestimou como subestimava todos eles. Todo humano possuía seus desejos, manias e posturas que ele sabia detectar, ler, e usar contra eles, e por isso, acabou esquecendo que existem exceções. Diferente dos muitos velhos maduros da cidade grande que achavam muito mais que sabiam e procuravam impor seu ego distorcido pra cima de toda discussão existente, o velho humano a sua frente era genuinamente sábio, esperto, precavido e tão habilidoso quanto o garoto.
A sua pronúncia na língua kristana era tão boa quanto a dos seus companheiros, que viveram toda a sua vida fora da floresta, e isso deixou claro para Fyrr que o velho à sua frente era um inimigo além do que poderia lidar normalmente. Após esperar mais alguma fala redundante da raposa, o ancião-sacerdote voltou a falar, mais indiferente ainda.
- Escute, ser semi-espiritual. Quando os kristanos te mandaram aqui, eles disseram a você que nenhuma folha desta floresta é exatamente igual? Que homens montados em lobos são muito diferentes de homens no topo de árvores apontando flechas para seus soldados? Eles disseram a você que existe uma pá cheia de pequenas comunidades e povoados, como esse, que deveriam ter algum conhecimento sobre e precaver? Ou você apenas veio andando até aqui achando que qualquer animal estupido que encontrassem seria o bastante, já que todos eles devem ser primos que se cumprimentam pela manhã e à noite estão caçando os seus soldados como ratos?
-..., não, eles não me disseram.
- Eu imagino - O idoso continuou, resoluto, e subindo seu Tom levemente - pelo menos pra você, por não ser um mortal, vou te dar a via da dúvida, talvez se o garoto estivesse liderando zombasse mais das suas caras, mas tudo bem. Eu sou o ancião-sacerdote Kiuin'chi, e vocês estão na tribo Toppo do Leste…
-Tribo Toppo? Do clã Toppo? - Jhon deixou escapar um suspiro, quase imediatamente se perguntando se aquela teria sido uma boa coisa.
-Não, já que não devem ensinar algo tão básico às suas crianças, deixe-me deixar mais claro. Um clã é formado por diversas famílias diferentes, e nós somos apenas a família que escolheu não se unir ao resto do clã na união druida. Mas se isso é algo favorável ou não para vocês, vão ter de descobrir sozinhos…
-Senhor sacerdote Kiuin'chi, me desculpe pela minha ignorância até agora, mas, apesar de parecer trivial para o seu povo, eu tenho medo de que isso possa escalonar para algo maior. Pra além das autoridades de Krista, existem muitos mercadores e gente ruim insatisfeita com os eventos de agora… existe um risco da presença militar se fortalecer e aumentar por essas áreas, o que pode fazer os ataques mais frequentes, e basta a pessoa errada ser prejudicada que…
-E eu continuo não dando a mínima… - o idoso o cortou, diminuindo seu tom - acho que não entendeu o que eu quis dizer antes, mesmo que vocês mandem todo o seu exército até aqui pra nós queimar vivos, vocês vão fracassar e voltar com o rabo entre as pernas, assim como foi até agora. Isso é um fato, não arrogância. E de qualquer jeito, não é minha tribo quem está montando em lobos e flertando com seus soldados. Então, o que você acha que vai conseguir de mim, senhor Espírito?
Fyrr o fita, acuado, levemente fechando seus cercos.
-Pelo menos, que pudesse me ajudar a encontrar e investigar os responsáveis por isso, não? Cooperando conosco, pode nos ajudar a evitar uma batalha desnecessária com outras tribos e que a floresta seja desgastada com um cerco. Sem falar que também podemos sempre negociar uma troca de produtos equivalentes, certo?
-Hmmm…, é, nunca é demais ganhar algo por pouco esforço, não é? - o velho respondeu, inexpressivamente.
Podia-se ouvir as engrenagens no cérebro do garoto martelando para encontrar uma resposta para chegar ao seu objetivo. Ganhar a confiança dos ciranos era fundamental, mas um caminho precisava ser feito, e o meio mais seguro era apostar nas deficiências, mas isso era algo difícil de se encontrar.
E para sua surpresa, de repente, Jhon ergueu sua mão, levantando sua voz pela primeira vez.
-Hãããããnnn… senhor sacerdote, tem algo que o senhor quer de boa, certo?
Os olhares dos presentes na sala se voltaram na hora a ele. Passando a conduzir a conversa, o sacerdote mal se moveu, sem deixar claro ao certo se prestava atenção no garoto, mas se silenciou, esperando por uma continuação.
-O senhor Pkiya ali atrás, - ele continuou, nervoso - mencionou que vocês já esperavam a chegada de alguém, e que não se importariam em nos atacar, ignorar ou ajudar. Então… devo imaginar que tem ago que possamos fazer para ter sua colaboração?
Mais silêncio. Fyrr se perguntava intrigado em como não havia lembrado desse detalhe enquanto imaginava as possibilidades daquela afirmação. O ancião-sacerdote continuou quieto por longos segundos, apoiando seus pulsos nas pontas dos joelhos pela primeira vez.
-Hum, então você notou isso, einh? É bom saber que realmente existem kristanos que sabem escutar - ele comentou, com escárnio. Mas continuou num tom brando - eu tenho tudo sob controle aqui, sim, mas não posso dizer que esses velhos ossos fazem um trabalho tão bom quanto já fizeram.
- Então… - a raposa indagava.
- Vai depender muito da sua competência, eu diria. Vocês acham que os nossos negócios são interessantes o suficiente para agirem por nossa boa fé?
- Sim. - Fyrr responde sem hesitar - Estamos aqui pra receber e dar, ganhar junto, não apenas fazer o que quisermos. Essa foi a política que eu decidi adotar quando decidi entrar nessa floresta e alcançar o seu povo, ancião Kiuin’chi. Eu juro pelo meu nome.
O ancião-sacerdote encarou os olhos abertos do garoto, analisando as verdades e mentiras que ele misturava junto com omissões, e parecendo satisfeito, pegou seu cachimbo outra vez.
-Bem, então, talvez seja possível ganhar alguma coisa mesmo.
Ele olhou para os dois que guardavam a porta, que assentiram em resposta e se aproximaram.
-Kaiera, filho de Nô, futuro Pkiya dos Toppo.
-Sim! Ancião-sacerdote! - o garoto exclama de imediato, rígido em sua pose de proteção, ao lado de Jhon, enquanto em pé.
-Como você e a garota foram aqueles que trouxeram os quatro forasteiros aqui, vocês serão os responsáveis por eles. Levem-os até o quichá, cuidem do que comem e bebem, e de com quem falam. Não quero ver qualquer confusão relacionada a eles por aí, ou você e a pirralha vão ter os crânios enterrados no peito de tantos cascudos, entenderam?
-Sim, ancião-sacerdote! - Kaiera responde com firmeza, batendo o punho no peito.
Seu pai, ao seu lado, suspira com certo alívio, enquanto o fita de esguelha.
Fyrr e Jhon também, que agora, qualquer perspectiva em sua jornada que fosse além de uma luta até a morte contra os nativos, mas agora, um horizonte desconhecido e perturbador se estendia para eles.
E isso ainda era muito ruim.
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