O quichá era mais caprichado do que o garoto tinha imaginado. À primeira vista, quando estavam chegando, guiados por Minaa e Kaiera, ele imaginava que se tratava de algum calabouço para tratar os cativos de interesse, mas quando chegaram, se surpreendeu.
O lugar era uma grande casa, do lado de fora. Uma grande caixa que mais lembrava um galpão, com um segundo andar no meio dele, formando um triângulo de quatro cubos, os vértices do lugar eram formados por quatro grandes colunas, onde estavam esculpidas diversas carrancas desumanas de presas curvadas pra fora, animais geometricamente deformados e outros objetos que a raposa não conseguia identificar. Os pilares da construção eram grandes totens, em frente ao quichá, havia um totem também, esculpido provavelmente de um tronco imenso de árvore, alcançando treze metros de altura e o diâmetro de dois metros, e de baixo para cima, estavam dezesseis facetas esculpidas representando animais e criaturas que ele não conseguia identificar, a não ser uma delas, na base, a cara ainda fresca em sua memória de um costa-verde. E em volta do totem, havia um círculo de diversas flores brancas e rosas, formando um pequeno jardim aos pés do objeto.
As paredes do quichá eram formadas pelos mesmos padrões de palha trançada que na casa do ancião-sacerdote, coloridos com azul, vermelho, branco e preto, em espirais e faixas elípticas. O lugar tinha apenas três janelas em intervalos de metro e meio que pareciam ser a fonte de iluminação local, e o topo da construção era um cone de palha.
Dentro, o lugar não era diferente de um salão comunal que se encontrava em sua própria tribo, nos prédios onde vivia com as outras crianças raposas.
Eles ficaram no salão oeste, onde a luz válida da manhã iluminava o salão, em volta, cerâmica guardando alimentos como grãos ficavam num canto leste da sala, próximos do portal de saída, enquanto no lado oeste da sala, estavam os fogões primitivos comunitários, onde provavelmente os alimentos eram feitos.
-Vamos lá, gente! Hora do rango! - Minaa exclamou, ao fazê-los entrar.
-Não grite! E não haja como criança perto deles, somos os responsáveis aqui. - Criticou seriamente o amigo da nativa.
-Bora cumeeeeeeeee! - Fyrr exclamou de volta, mais potente ainda.
Em poucos minutos, um casal de mulheres, acompanhadas de suas três crianças, entraram com bandejas de cerâmica marcadas por pinturas espinhosas em mãos. Elas seguiram até os fornos comunitários depois de trocar rápidas palavras com Kaiera, enquanto Minaa se encolhia pra perto dos quatro, lhes guiando pelos eventos que aconteceriam.
Enquanto isso, as mulheres retiraram o que precisavam de matéria das cerâmicas de grande porte e deixaram na bandeja, para levá-las até os fornos, com uma rapidez de anos de eficiência, elas acenderam a lenha embaixo do forno e começaram a cozinhar algo, uma das mulheres ficou preparando a massa numa superfície de madeira sobre dois pilares de terra, enquanto a outra esquentava água numa panela de barro.
Em pouco tempo, a comida ficou pronta. Algumas das crianças carregaram pequenos banquinhos e um rolo enorme de pele, que cobriram o chão no centro da cozinha e puseram os bancos em cima. Enquanto, as mulheres cuidadosamente deixavam cuia por cuia com os grãos recém preparados, carnes em calda, massas feitas com farinha de raízes e mais alguns molhos de frutas em pasta para ir junto com.
-Culinária Cirana, uh Lalá! - Fyrr exclama enquanto levava suas mãos à comida.
E de repente Minaa se apressa a lhe dar um tapa, no braço.
-Ai! Ei - ele recua, recolhendo o braço
-Espere elas trazerem a água pra lavar as mãos, seu porco! - ela repreende.
Em instantes, a raposa e Jhon comiam com curiosidade e ansiedade aquela comida nunca experimentada pelos seus paladares antes, Minaa e Kaiera os observavam sentados no lado oposto enquanto os observavam tão curiosos quanto sobre suas opiniões enquanto mastigavam a massa. Hory, comia indiferente, não muito longe deles, tentando ignorar as crianças em seu encalço, lhe cutucando e puxando suas roupas enquanto murmuravam algo entre si, o irritando profundamente.
E Nattan… estava sentado de costas para uma das três pilastras principais que sustentavam a cozinha, bebendo sua cerveja direto da garrafa enquanto comia um prato com ensopado e massa.
-Ei ei! Não puxa! - Fyrr reclama para uma das crianças, que se agarrava em sua manga direita quase o fazendo deixar cair a cuia com bolinhos de farinha de raiz.
Uma das mulheres o repreendeu rapidamente, fazendo a criança parar, mas deixando uma área de desgosto como protesto por isso.
-Que criançada animada, né? - ele comenta.
-Eu que o diga. - Comentava Hory, ignorando com todas as suas forças uma das crianças que o cutucava com uma vareta na bochecha.
-Ei, seu bebum! Tem criança aqui! Se comporte! - Fyrr reclama para Nattan.
O espadachim apenas o fita indiferente, apreciando a consciência se nublando pelo efeito do álcool.
- Relaxa, nunca é hora errada pra isso… Hic!
-Você é uma vergonha, homem, se controle!
-Hahaha, desculpe, é que é a primeira vez de muita gente aqui vendo gente de fora da floresta… e um semi-espirito também. Inclusive a nossa! - a garota apontou, animada.
- Heh. - A raposa repara sutilmente nas mulheres em volta, ajeitando as cerâmicas que carregavam, lançando olhares curiosos e cochichando entre si.
-Não que isso seja grande coisa. Ainda não dá pra acreditar que uma saída pra coletar mangas resultou em virarmos babás de quatro estranhos aqui. - Kaiera resmunga, de braço apoiado no joelho erguido.
-Não liga pra ele, ele sempre foi meio rabugento mesmo. - Minaa se desculpa.
-Percebi isso desde o primeiro segundo em que nos encontramos minha cara. - Fyrr aponta, malicioso. Conseguindo arrancar fácil um olhar de desagrado do rapaz.
-Ei! Vocês têm alguma cerveja aqui? - Nattan pergunta repentinamente - Tipo… qualquer coi-hic! Qualquer coisa alcoólica serve… a minha tá acabando…
-Ignora esse pinguço. - Rapidamente a raposa o cortou.
- É sério, porra! Eu não funciono direito sóbrio!
-Minha nossa, o exército de Krista deve estar meio desesperado pra mandar vocês aqui. - Kaiera comenta - vocês vieram mesmo tentar resolver esse assunto diplomaticamente? Não estão nem tentando conseguir uma boa primeira impressão.
-A primeira impressão que tive de você, foi a de um estranho apontando uma flecha na minha cara. Então podemos dizer que estamos quites. - Fyrr cortou rapidamente, bebendo mais um gole do ensopado na cuia.
-Primeiramente, salvamos suas bundas de virarem comida de costas-verdes, segundamente, invasores que entram no nosso quintal sem permissão ou aviso não merecem nada menos que umas flechadas de aviso. - O garoto retrucou, perdendo a paciência.
-Kaiera! Isso já está sendo um desperdício de tempo. Fomos ordenados pelo ancião-sacerdote a protegê-los, um bate-boca não vai levar a nada!
- Sua namorada é sensata, garoto, devia respeitar mais a vontade dela. - Provocou a raposa mais uma vez, de olhos nos pratos abaixo dele.
-Ela não é minha namorada, e vai se fuder!
-Sério? Caramba, que desperdício. Se eu fosse você deixava se ser lerdo logo.
- Fyrr! Agora você é quem está sendo insensato! - Jhon exclamou, entrando na conversa.
- Foi mal, foi mal. Já parei.
O rapaz estala a língua, desviando o olhar da raposa.
- Melhor falarmos sobre algo mais importante a se tratar agora. - Jhon seguiu dizendo, se voltando para Minaa - vocês por acaso têm alguma ideia do que o ancião-sacerdote Kiuin'chi poderia querer que nós ajudássemos? Quanto mais soubermos, melhor para todos os lados.
-Eu não consigo pensar em nada. - Minaa dizia, pensativa - o ancião Kiuin'chi é um velho muito estranho e imprevisível.
- Minaa! Isso foi desrespeitoso! - Kaiera reclama.
- Opa! Bem, não acho que… ah! Aquele velho nem deve ligar! - ela exclamou, se segurando nos próprios pés, balançando pra frente e pra trás feito cadeira de balanço, enquanto franzia o cenho de ranço - desde sempre ele me fazia de empregada dele, usando como desculpa o trabalho de xamã! Aquele velho é só um aproveitador!
- Oh! Não esperava que fosse tão próxima dele. Achei que esse seria o seu amigo. - Fyrr aponta.
- Hã? Ah! Não, ele é sim o tio avô de Kaiera. Eu… não sou parente dele, ele só cuidou de mim.
- Entendi, que curioso, não sabia que crianças de outros pais podiam herdar o trabalho do sacerdote.
-Bem… na verdade…
- Ele não tem parentes, não é? - de repente, Natan abria a boca, quando olharam em sua direção, o viram virar a garrafa no rosto, de boca aberta, esperando que pelo menos uma gota sequer caísse dentro dela, mas estava vazia - Aptidão geralmente é muito importante pra tarefas clericais, de onde eu vim, é assim que funciona. Se seus parentes não são bons o bastante, você arruma outras crianças e segue a vida. - Ele larga a garrafa, indiferente, ao seu lado, e vira a cuia com restos de calda de carne de uma vez só.
- Bem… é verdade. Ele cuidou muito bem de mim desde sempre, no final das contas. - Minaa contava, abaixando seu tom, e acanhadamente coçava seus joelhos, cabisbaixa, com a face pensativa.
- Bem, então você deve ter algum talento. Será que estamos conversando agora com a futura sacerdotisa da tribo? - brinca Fyrr, bajulando.
Kaiera se contraia num silêncio desconfortável, saltando seus olhos de sua amiga para o garoto, levemente apreensivo.
- Sinceramente, nem eu tenho certeza mais… - ela comentou timidamente.
- Opinião do ancião ou pressão externa? - voltou a falar Nattan, largando a cuia do seu lado e se esparramando atrás da pilastra, igual um verdadeiro vagabundo. - Eu imagino que deve ser difícil.
- Você tá falante hoje, einh? - Fyrr comenta, áspero, fitando seu colega com certa cautela.
- O assunto é interessante.
- Eu acho que você está falando demais. - Kaiera protestou de repente.
- Por que pressão externa especificamente? - Jhon perguntou, em toda a sua inocência.
Fyrr acompanhava a mudança na atmosfera, humor e reações dos dois ciranos, vendo que as palavras pressão e externa tiveram algum efeito sobre eles. E não demorou a perceber que a pergunta de Jhon seria o estopim para seu guarda-costas desenvolver um fim desagradável àquele desjejum.
- Cabelos azuis são características dos murdos, você não sabe? - o espadachim apontou grosseiramente - ela é mestiça, e isso deve deixar muita gente daqui com o pé atrás sobre ela herdar uma função muito importante.
- Você é melhor não se meter na vida dos outros! - Kaiera exclamou, finalmente tendo seus pontos de nervos, a sua amiga, bem espetados.
- Tudo bem, Kaiera. - Minaa correu para acalmá-lo. Ele voltou a seu lugar tenso e preocupado ao mesmo tempo pra ela, que se encolhia nos joelhos, levemente incomodada, mas não apresentava nenhuma animosidade clara contra os quatro, o que Fyrr anotou mentalmente - não é como se esse assunto importasse pra eles. Acho que de todo mundo aqui, eles são os que menos se importam.
- Eu… sinto muito mesmo pela grosseria do meu colega. Se você quiser, te deixo chutar as bolas dele de graça. - Fyrr comentou, ácido outra vez.
- Vai se fuder! - exclamou Nattan.
- Hahaha, tudo bem, vocês não me ofendem nem nada. E seu amigo está certo de qualquer jeito, não é uma história complicada. Meu pai aparentemente foi um murdo que levou minha mãe com ele, e meses depois ela voltou sem ele, mas comigo. Então, as pessoas daqui tem sim um pé atrás comigo desde sempre, mas não foi nada muito problemático, o ancião e a família de Kaiera foram sempre muito bons comigo. Eles me ensinaram a caçar, lutar, e até a língua dos kristanos.
- Que por sinal, vocês falam muito fluentemente, chega a ser surpreendente. - Jhon se apressa em comentar, para suavizar a atmosfera - e onde será que o ancião aprendeu a falar tão bem assim?
- Ninguém aqui sabe direito do passado do ancião-sacerdote Kiuin'chi. - Kaiera o cortou - só que ele foi alguém importante no passado.
- Também estou curioso com uma coisa. - Hory comentou de repente - É sobre a forma como vocês espantaram os costas-verdes. Como fizeram aquilo? Vocês não são magos de círculos avançados, já percebemos isso.
Huh! - Kaiera os fitou com desdém, recuperando seu tom confiante de sempre - como se fossemos entregar o maior segredo do poder druida de bandeja!
Comments (0)
See all