-Não é estranho? - Kaiera comenta, e sua companheira apenas assente de forma incerta.
-Bem… eles não parecem tão assustadores quanto eu ouvi, será que os mais velhos não estão só errados? - ela desconversa.
-Eu duvido. O exército de Krista? Bocó assim? Eles não parecem uma ameaça, e não sei se isso é melhor ou pior…
-Acho que melhor.
- Antes de nos matar com fogo, vai nos matar de estresse.
-Hahaha, bem, eu achei o semi-espírito e o kristano com boas intenções, os outros dois me pareciam mais sérios no quesito de autopreservação, mas não tenho tanta certeza… - Minaa comentava, enquanto ambos caminhavam pelas ruas arborizada da tribo.
-Sei não, eles não me cheiram a competência. Acho que trazer eles foi tudo marmelada.
-Mas o próprio ancião disse que se alguém de Krista aparecesse, não precisaria atacar direto, não foi? Eu acho que ele mudou de ideia, no final das contas…
-Mudou?
-Sim, sobre os lobos…
-...
- Você sabe, não parece que eles vão parar. Eu patrulhei os arredores tanto quanto você, acredite ou não, - ela seguiu dizendo, vagando seu olhar fixo na estrada, com um ar resoluto em volta - o número de batedores não cresce, e eles parecem estar sempre de olho na gente, como se estivessem procurando alguma coisa aqui… é desconfortável.
-Não vai dar em nada. - Kaiera se apressou em afirmar - nem o ancião, nem ninguém vão deixar. E mesmo que eles resolvam nos atacar dessa vez, também não vai dar em nada.
-Haha, você é tão confiante que…
-Kaiera!
Virando o rosto, os olhos do rapaz chegaram na direção da voz, onde um outro guerreiro se aproximava, correndo em sua direção. Conforme se aproximava, carregando uma lança nas mãos, olhou de esguelha na direção da garota, e rapidamente voltou para ele.
-O que foi? - o rapaz exclama, sem expectativa.
-O Pkiya de repente chamou metade de nós pro portão oeste, e tem mais gente se reunindo até lá.
-Ele não me disse nada.
-É melhor você ir também. Eu acho que tem alguma coisa grande chegando, todo mundo que patrulhava do lado de fora começou a entrar agora também, é estranho…
-Certo, me leve até lá. - Virando lentamente até sua amiga, acenou para ela com o olhar obstinado, e após receber a resposta com outro aceno dela, seguiu o aliado pelo caminho.
Minaa o observou se afastar com certa hesitação, lentamente, lhes deu as costas, seguindo seu caminho até o acervo, enquanto segurava a sensação ruim que tinha crescido no peito.
Com apenas alguns minutos de corrida, os dois guerreiros alcançaram a estrada principal que cortava a tribo em quadrantes, e correram até o Oeste, onde desde o início, se percebia claramente a pouca circulação, olhos preocupados saindo de janelas das casas e também, uma atmosfera pesada sob o céu aberto. Trincando os dentes, a sensação desagradável do rapaz aumentava, e seu amigo o acompanhava cada vez mais tenso enquanto o grupo grande de outros guardas estavam à vista. Mais de vinte e cinco guerreiros num lugar só era algo inédito, todos amontoados num dos portões da grande muralha de madeira encantada, olhando a distância, Kaiera reconhecia os rostos de cada um dos responsáveis por vasculhar a área ao redor da tribo e também as muralhas, e no centro dele, estava seu pai, olhando fixamente para o portão oeste, ele correu na direção dele sem pensar duas vezes.
Seu pai ao ouvir os passos se aproximando virou o rosto até o filho, esperando calmamente que ele chegasse perto o bastante, com seus aliados fazendo o mesmo depois.
-O que tá acontecendo? - Kaiera perguntou, chegando mais perto do Pkiya aos pulos.
-Visitantes… esperados, indesejados, mas esperados. - Nô o conta, com bastante agouro na voz. Encarando o portão como uma bomba relógio.
-Eles vão invadir? - o garoto o pergunta, com certa cautela.
-Não, - o Pkiya responde, direto - Nós vamos abrir pra eles.
-Por quê?!
-..., porque é o certo a se fazer…
Após as palavras serem ditas, o som dos estalos de madeira apareceu, aumentando conforme os suspiros e murmúrios preocupados dos ciranos reunidos num batalhão diminuíram o tom. O portão imponente se contorceu como se vivo e se abriu numa fenda, de onde a luz ambiente se perdia na escuridão interior.
E lentamente, do interior da entrada, após alguns segundos de tensão, eles chegaram.
Saindo em fila indiana de dentro da escuridão, os guerreiros de fora pisaram na terra dos toppos com confiança, mesmo longe de ser um lugar que os aceitava. Suas solas grossas faziam barulho alto, devido a seu peso, fomentado pelos seus músculos bem trabalhados ao longo de suas vidas, o balançar dos seus saiotes de pelos lupinos e caprinos farfalhavam, ao mesmo que as penas e penachos presos em seus acessórios em braços e cabeças. A fila indiana parou a menos de dez metros de distância do batalhão dos toppos, se organizando em fileiras, e havia treze deles, com lanças em posição de descanso apoiando suas posturas imponentes.
Do meio deles, após mais alguns segundos de silêncio onde os toppos engoliam em seco, as fileiras se abriram, dando espaço para seu líder passar. Um homem que beirava os dois metros, com um torso robusto e musculoso, coberto por tatuagens iguais a dos seus semelhantes, linhas formadas por quadrados empilhados em preto, com quadrados cinzas no interior de cada um, atravessando seus bíceps e peitoral na horizontal. De nariz inchado, bochechas torneadas e olhos pesados, sua face lembrava a de uma estátua rústica, dura e cruel. O líder dos guerreiros de fora então parou em frente dos seus, erguendo sua lança, bateu a ponta sul dela no chão, duas vezes, a segurando na vertical assim como seus aliados, antes de se apresentar pela primeira vez na sua língua. E não demonstrando qualquer sinal de intimidação.
-Eu sou Gigi! Guerreiro reconhecido da família Hichia! Da tribo Biaa'chuia!
Kaiera observava bastante tenso a apresentação ousada do guerreiro, engolindo em seco, fitou seu pai, que permanecia calado até o momento, até se aproximar um passo, cauteloso, para ficar à frente do seu grupo e responder com cortesia, mas a altura, a apresentação do seu "convidado".
-Eu sou Nô, Pkiya da família Yihwichia, da tribo Toppo. Com cortesia aceito a sua mensagem. - Depois da resposta, também bateu sua lança duas vezes no chão.
- Eu vim em nome da minha tribo. Eu vim para pedir por uma audiência com o ancião-sacerdote Kiuin'chi!
-E de que se trata o seu pedido de audiência?
-Isso é algo que só pode ser dito ao seu ancião, Pkiya Nô. - O Biaa'chuia responde, com grosseria.
Nô ignora a intencional falta de cortesia por parte do convidado, passando por cima de sua autoridade como chefe da tribo, e aumenta seu tom, sendo mais incisivo, assim como o ancião o aconselhou semanas atrás.
-E por acaso veio aqui nos dar explicações sobre porque seus homens vêm rondando nossa tribo em lobos como carniceiros? Ou por que estão sempre vigiando nossos irmãos com olhos de predador quando saem para proteger nossas terras? Ou talvez, o motivo de estarmos vendo tantas colunas de fumaça onde deveriam estar as tribos menores ao redor?
-... - Gigi estala a língua, demonstrando abertamente sua irritação, e se aproxima mais alguns passos do Pkiya, levantando ainda mais seu tom, e a tensão entre os guerreiros dos dois lados também - Nós viemos até aqui apenas para estender a vocês nossas mãos, eu não vou tolerar sua falta de respeito em nos tratar como um incômodo.
-Até agora, o único descortês foi você, Gigi, da família Hichia. E caso não saiba, o ancião-sacerdote Kiuin'chi é alguém que não gosta de assuntos triviais que só servem pra agradar um lado.
-Trivial?
-Se o que você tem a dizer não pode ser dito para mim, não vai ter sentido eu ter que levá-lo até o ancião, pois sou eu quem decido se o assunto é ou não do interesse dele. Não você. - O Pkiya impõe.
Gigi apenas range seus dentes, se irritando ainda mais, e deixando suas emoções levarem a melhor de sua inocência. Vendo que o Pkiya Toppo não colabora e seu tempo estava acabando, resolveu que apenas o seu método mais comum valeria o risco que trazia. Pois o tempo estava contra ele.
-Eu não vou repetir, Nô, Pkiya da família Yihwichia. Leve me até o ancião-sacerdote, ou vou ter de fazer isso por mim mesmo…
Contraindo o rosto de desagrado, o Pkiya se conformou com o desenvolvimento da situação, que chegou muito mais rápido àquele ponto do que havia imaginado, mesmo tendo sido mais ou menos previsto. Encarou de volta o olhar ignorante do convidado, mais afiado que nunca, e rezando para que a coisa tivesse algum motivo muito bom para estar acontecendo.
-Então dê agora as costas para mim e saia da minha tribo, ou tente, se não temer a morte.
-Você é um tolo! - Gigi ruge de repente.
Lanças entram em posição de ataque, e os dois grupos rivais avançam uns contra os outros. Kaiera, suando frio, corre na direção de seu pai, que já estava com a arma em mãos, pronto para defender suas costas. Aquela era uma batalha real e muito repentina para lidar ou processar agora, mas seus instintos o deixaram saber o que fazer. E a luta inevitável começou.
Os Biaa'chuias lutavam usando o bom alcance de uma lança para estocadas certeiras, enquanto os toppos utilizavam de técnicas de giro sofisticadas tanto para atacar quanto para defender. Enquanto os invasores procuravam se separar em dois grupos para cercar os toppos pelos flancos, os guerreiros avançaram, procurando atacar os inimigos por cima. Gigi avançou como uma fera pra cima de Nô, que previu isso e se preparou, confiando suas costas ao seu filho, o Biaa'chuia no meio do caminho os surpreendeu lançando sua arma até ele, num movimento rápido e preciso. Com agilidade, o Pkiya desvia do ataque, que almejava sua cabeça, mas o inimigo aproveitou da distração para tentar pegá-lo pelo flanco direito, o mais vulnerável.
Kaiera viu o guerreiro cortar a distância entre eles rapidamente e se agachar, atacando com machados de lenhador de bronze, que retirou de algum lugar em seu saiote. O Pkiya reagiu com surpresa, e na hora, defendeu o ataque posicionando sua lança na direção em que os cabos do Machado terminavam e as lâminas começavam, evitando ter sua arma partida. Na mesma hora, empurrou o inimigo pra trás com um golpe giratório, e arriscou um chute no meio do movimento, quanto Gigi se reequilibrava do ataque de antes. Agora com mais espaço, o Pkiya se posicionou outra vez na defensiva, e Kaiera se atenta aos arredores, extremamente preocupado com o fato de o nativo inimigo estar com armas sofisticadas mais perigosas que as atuais deles. Armas que eles não deveriam ter em mãos.
-Se correr agora, eu ainda deixo você sair daqui com um braço inteiro. - Nô ameaça.
-Eu vou rasgar sua língua e oferecer em sacrifício até o final do dia! - o Biaa'chuia gritou para seu oponente, avançando loucamente outra vez, lançando um ataque de cima.
E a batalha em volta começava a se expandir, com pequenos núcleos de guerreiros se enfrentando cada vez mais esparsos entre si, a derrota era apenas uma questão de tempo. O número de toppos era maior, restavam dentro do seu território, aonde mais reforços chegariam. Prevendo isso, Gigi desvia da lança do Pkiya vindo em sua direção numa meia lua e assobia alto para seus aliados. Os outros invasores, se aproveitando da confusão, se esgueiram entre os núcleos de batalha em grupo e avançam para o interior da tribo. Nô rapidamente percebe a situação, olhando de esguelha até eles, rebatendo mais um ataque feroz do oponente, grita para seu filho.
-Kaiera! Pare eles!
O rapaz range os dentes, mas assente rapidamente, se afasta, confiando as costas do seu pai para os outros enquanto corre na direção dos invasores, já que os reforços não o chegariam antes de oferecerem algum risco a sua tribo.
E com precisão, o líder Toppo contra-ataca os golpes rápidos e fortes do líder invasor com sua lança, evitando ao máximo as lâminas dos machados que poderiam destruir sua arma e quebrar suas defesas.
-Seu tolo! Isso é pelo nosso povo! - Gigi ruge mais uma vez, de olhos injetados, atacando o Pkiya numa sequência mortal, enquanto o oponente não consegue fazer nada além de rebater os ataques, desgastando a ponta de sua arma lentamente.
-Você é um lunático, isso sim!
Com boa parte dos invasores contidos, alguns guerreiros toppos começam a se unir com seu líder, flanqueado Gigi, enquanto atentos a suas armas de metal, mas cada vez mais perdido na raiva, o Biaa'chuia se atenta mortalmente ao Pkiya, atacando com brutalidade e sem parar por sequer um momento, rangendo seus dentes e avançando contra ele feito uma carroça desgovernada, cada vez mais próximo de quebrar todas as defesas do Pkiya. E Nô cedia cada vez mais espaço, sem poder encontrar uma abertura para contra-ataque, cedendo lentamente a pressão imensa que o invasor o causava…, porém, atento ao momento em que seu oponente gastaria suas energias e ficasse mais vulnerável, o que não parecia ser tão viável, pois o homem parecia tirar forças da sua própria convicção.
Mas nada disso foi necessário.
Buuuuuuusssst
O barulho ensurdecedor atrai os olhares dos dois líderes, e de todos os guerreiros presentes, como um ímã atraindo pó de metal em um rio.
O que viam, era uma coluna de fogo ardente subindo aos céus, mais vívida que qualquer alucinação, e sumindo logo em seguida. O segundo de distração custou para os dois lados, mas principalmente os Biaa'chuias, que não perceberam a presença esguia dos bonecos se aproximando até que fosse tarde. Os toppos sequer reagiram a tempo de tão atônitos, ao verem grandes bonecos brancos saltarem do nada e atingirem os invasores com golpes pesados. Alguns conseguiram contra-atacar, mas suas armas simplesmente ricocheteiam nos corpos duros dos bonecos, que aproveitando a abertura causada por isso, os derrubaram com chutes precisos nos seus pontos sensíveis.
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