Capítulo 03 - “Tão comum quanto eu”
02 de Março.
“Stella, qual o próximo passo?” - a voz soou dentro da mente da jovem brasileira que acabou de pisar no aeroporto de Ottawa.
Ela havia programado sua chegada mais cedo, porém seus planos foram frustrados após seu voo atrasar. Contudo, mesmo chegando no horário planejado, seria impossível evitar se perder no meio das pessoas indo e vindo em um lugar que a jovem mal conhece.
- Bem, vamos para o hotel guardar nossas coisas…- Stella falou em voz alta e em sua língua mãe, apesar de não ter ninguém conhecido próximo dela ou sequer que compreendessem seu idioma. -...daí depois exploramos a cidade. Não deve ser tão difícil encontrar o…
Stella parou por alguns instantes. Uma das mãos apertando a bagagem cor de âmbar e a outra coçando a cabeça, bagunçando os cabelos pretos como a noite sem estrelas. Ela não se lembrava do nome da pessoa que procurava… ou “procuravam”.
“Kazami, Stella.” - A voz soou mais uma vez em sua mente. Era uma voz semelhante à sua própria, quase como apenas um pensamento comum.
- Isso! - Sua voz talvez tenha soado alta demais em comemoração já que algumas pessoas que iam e vinham pararam seus passos para observá-la de forma assustada e receosa. Alguns sussurros foram ouvidos. “Estrangeira, é?”, “Que estranha”.
Mesmo assim, Stella não se envergonhou e sorriu simpática, acenando para os curiosos que a ouviram falar sozinha. Nada com que já não estivesse acostumada.
“Hm,...Não acha que fomos meio irresponsáveis em vir aqui com poucas informações? Tipo,...É um país diferente.” - A voz ecoou mais uma vez.
- Não se preocupe. Raid parecia confiável. - Ela andou arrastando a mala não muito pesada até o lado de fora do aeroporto. - Além disso, nada de tão ruim aconteceria com alguém tão comum quanto eu.
Havia um ônibus que os turistas pagavam para serem levados até o hotel mais próximo da região. Stella não foi exceção e se prontificou junto com outros passageiros que esperavam a entrar no transporte que logo estacionou por ali.
Stella entrou no veículo não tão diferente dos que costumava pegar em seu país de origem, exceto por alguns pequenos detalhes aqui e ali.
Algumas pessoas se acomodaram rapidamente nos primeiros assentos. Muitos eram grupos de familiares que estavam viajando ou voltando de viagem. A jovem brasileira era a única que parecia estar sozinha, apesar de não estar.
Ela se acomodou em um assento no fundo do ônibus, próximo a janela e com um lugar vago ao seu lado.
“Ah, sabe o que estou pensando?” - a voz disse.
- Sei. Sobre o acidente de carro, não é?” - Stella disse, dessa vez, sussurrando para não incomodar os outros passageiros.
“Sim. Você disse que o garoto falou que veio do Canadá, não é?”
- Não, não. Ele disse que viria para o Canadá, mas não que veio dele.
Aquela memória era a única que Stella não compartilhava com a voz que falava dentro de sua mente.
Cinco anos atrás, quando Stella tinha doze anos, houve um acidente de carro que resultou em um coma. Não só a brasileira ficou ferida, mas também o motoqueiro confuso e perdido que bateu contra o carro em que ela estava.
- Apesar de tudo, não acho que a família Kazami tenha a ver com ele, Ash. Até porque, há a descrição de que todos os membros da família Kazami possuem olhos vermelhos. Aquele garoto tinha olhos prateados.
Stella estava tão imersa na conversa que nem notou a pessoa que se aproximava.
- Com licença? - Uma voz tímida surgiu ao seu lado. Falava em inglês.
Era um rapaz não muito mais velho do que Stella. Ele possui cabelos ondulados que caem sobre os ombros, a coloração negra porém com um sútil reflexo púrpura. A pele reluzente e rosada tal qual uma boneca de porcelana.
Sua veste social humilde e elegante.
Subindo um pouco o olhar notava-se os detalhes de seu rosto mas nada que se destacasse mais do que seus olhos: heterocromáticos.
As íris quase que inteiramente castanhas claras como mel, porém, seu olho esquerdo possuía manchas violetas que oscilavam em seu tom mais vibrante até o mais tímido lilás.
“Esta cor é humanamente possível?” Stella pensou.
“Se não for um humano normal, sim”- a voz respondeu, sem nem mesmo dar privacidade aos pensamentos da jovem brasileira.
- Este…- Ele apontou para o assento. Sua forma de falar tímida fez com que Stella pensasse que ele não costumava ter muitas interações sociais. -...lugar está vago?
Ou talvez ele até estivesse com medo de Stella, como uma estrangeira, não compreender seu idioma. A ansiedade de não saber se conseguirá se comunicar pode ser verdadeiramente dolorosa.
Por sorte, Stella sabia falar inglês.
- Sim. Pode se sentar. - Ela respondeu enquanto sorria, disfarçando o tempo que tomou encarando-o.
“Homem estranho do caralho, por que deixou ele sentar aí?”- a voz perguntou.
“Educação”, Stella pensou. Não conseguia manter uma conversa apenas com seus pensamentos já que, a todo momento, ela pensava em muitas coisas.
Sua conversa com Ash provavelmente cessaria até o momento em que um deles descesse do ônibus.
“Educada…Sei.” - a voz disse.
- Cale a boca, Ashley. - Stella falou em voz alta automaticamente em uma tosse forçada, em seguida olhando para o rapaz que já havia se acomodado.
- É a sua primeira vez em Ottawa, senhorita? - O estranho perguntou.
- Sim. Na verdade, é a minha primeira vez fora do meu país.
Talvez a viagem para o hotel fosse longa. Seria bom conhecer mais alguém além da pessoa que Stella e Ashley procuravam.
- A propósito, eu me chamo Stella. - Ela sorriu erguendo a mão em direção ao jovem introvertido.
Ele sorriu de volta, acanhado, mas apertou a mão da jovem.
Ambos os sorrisos gentis o suficiente para não causar constrangimento, mas vazios o bastante para criar uma barreira que os impediria de serem amigos.
- Eu me chamo Julian.
“Pelo menos o estranho parece educado” Ashley disse.
Stella concordou com a cabeça ao ouvir o comentário de Ash, porém a conversa que se iniciava foi interrompida após uma freada brusca. A parada repentina fez com que o corpo da brasileira fosse jogado para frente, quase batendo com certa força no assento dianteiro. Isso se seu corpo não tivesse parado antes. A milímetros de distância do impacto, como se uma força invisível tivesse a protegido do impacto.
“Cuidado”, Ashley disse.
- Obrigada… - Stella sussurrou, levemente ofegante pelo susto.
O som de reclamações preencheram o ar. Os passageiros se levantavam para recolher seus pertences ou voltarem para seus assentos após caírem pelo corredor do ônibus. Aquilo estava uma bagunça, era como se os problemas insistissem em seguir Stella.
A brasileira olhou na direção de Julian. Ele carregava consigo uma bolsa de ombro e uma bagagem como a dela, mas com a parada brusca, sua bolsa caiu junto de seus óculos de lentes redondas.
Um sonoro e temeroso “droga” foi proferido pelo jovem.
Ele se abaixou de forma apressada e preocupada enquanto tateava o chão do veículo à procura de seus pertences. Foi evidente que seus óculos faziam muita falta, o que fez Stella se prontificar a ajudá-lo no mesmo momento.
- Aqui. - Não foi difícil para a brasileira encontrar os óculos que, por sorte, não se quebraram.
- Obrigado, senhorita Stella. - Ele colocou os óculos novamente, enquanto piscava algumas vezes sentindo o alívio por enxergar claramente de novo.
Os pertences que haviam caído da bolsa de Julian não passavam de alguns cadernos e papéis. Pareciam coisas de estudante. Stella até encontrou um livro no meio da bagunça… um livro?
Aquele objeto chamou-lhe atenção. Ela não pensou muito antes de pegar o livro em mãos. Era fino e a lateral de suas páginas mostrava o quão desgastado ele era. Ele não possuía nenhum título, apenas um símbolo estranho com cinco pontas no meio da escuridão da capa. Mesmo assim, ele pesava como um livro grosso.
Foi em um intervalo de menos de um segundo. Stella ouviu um grunhido ecoando em sua mente. Dor. Mas não era ela quem estava sentido.
- Ash?
As mãos de Stella afrouxaram o aperto para soltar o livro mas, antes sequer de obter uma resposta de Ashley, ela sentiu a mão fria feita a de um cadáver tocar a sua.
Um fio de suor frio escorreu pela têmpora da jovem.
Estreitando melhor o olhar ao redor, era como se o chão estivesse forrado por corpos que sangravam abaixo do véu de uma névoa fina e densa que enfeitava o ar repleto de escuridão salpicada com desespero.
À frente, o jovem de heterocromia carregando um sorriso sádico. Seu corpo guardado por uma sombra que jazia atrás de si. Uma silhueta sem forma mas com chifres e rabo. Algo que nem Stella nem Ashley jamais haviam visto antes.
Aos poucos os lábios de Julian se moviam, preparando palavras para serem proferidas. Aquilo intimidou Stella. Ainda mais quando reparou nos dentes em formato de presas como as de um tubarão pronto para abocanhar a sua presa.
Stella engoliu em seco. Não conseguia pronunciar palavras mas uma única e sublime definição lhe veio à mente: profano.
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