As flores em seu jardim estavam murchas, mas não significava que estavam mortas. Por isso, quando lembrava, pegava um regador e passava um tempo ali fora, as regando e olhando a luz da cidade lá embaixo, entre tantos obstáculos e estalactites.
Dos corredores dentro do castelo, Malri avistou a figura de Nerlim no lado de fora. O antigo governador de Má não entendia a mente daquela pessoa ali embaixo. Desde o momento que chegou em Má, via Nerlim como alguém desprovido de sentimentos, ou energia para lidar com o mundo lá fora, ele tinha uma aura deprimente e melancólica. Nunca o tinha visto mover um músculo, que não fosse por Cairo. Agora, ele estava ali, cuidando de suas flores mortas e perambulando pela cidade. Estava curioso em saber o que tinha mudado, acreditava que tudo isso também tinha haver com Cairo.
Malri desceu até Nerlim, que não se importou com sua chegada. O fundador apenas continuou o que estava fazendo.
— Preciso voltar logo para Gofo, então vim vê-lo, caso ainda precise falar comigo. — Malri começou, falava com tranquilidade, como se as duas pessoas ali estivessem no mesmo nível.
— Vou mudar algumas coisas, primeiro quero fechar todos os prostíbulos.
Malri franziu a testa, tossindo, não sabia se tinha escutado direto. Seu ouvido estava bom, ouviu tudo corretamente, as palavras na voz de Nerlim ressoavam em sua cabeça.
— O- o quê? — engasgou.
Nerlim se virou para ele, o rosto de Malri ainda estava inchado e repleto de curativos, pensou que talvez ele tivesse batido a cabeça muito forte, e não estava pronto para uma conversa.
— Sua cabeça está ferida? — A pergunta deveria soar como preocupação, mas não havia nada no rosto de Nerlim que contribuísse para isso, porque ele não se importava de verdade.
Malri piscou, buscou se recompor. Sempre teve muita liberdade para lidar com os assuntos de Má, então não sabia como tratar sobre esses assuntos agora que Nerlim estava envolvido.
— Isso é muito repentino, não podemos fechar esses lugares da noite pro dia.
— Eu consigo.
Sim, Nerlim conseguiria, ele só precisava usar aquelas sombras que pareciam chamas e tudo estaria soterrado, essa não era a questão, Malri pensava.
— Eu não quero ofendê-lo — isso era verdade, o rosto de Malri ainda doía, não precisava de Cairo o dando mais uma lição por agir errado com Nerlim — mas precisa tratar de qualquer assunto com calma. Má não é mais um lugar pequeno, existem muitas figuras poderosas por aqui. O que precisa fazer primeiro é entender como essas forças estão distribuídas e quem controla o quê.
— Parece muito complicado.
— E é. Você pode até fazer as coisas como quiser, e logo todo esse lugar estará vazio, ou terá vários inimigos tentando o tirar de seu castelo.
— Então, como devo fazer?
— Precisa de pessoas ao seu lado que possam ajudá-lo a trazer para a realidade as coisas que deseja fazer. Muitos dos que trabalhavam ao meu lado ainda cuidam de seus assuntos aqui em Má, na minha residência. Continue usando-a para administrar Má. Irei avisá-los para introduzir minhas tarefas a você.
— Não, mande que me reportem tudo na casa dos mercenários, eu estarei lá por enquanto.
— Eu irei fazer isso. — Malri esperou um pouco, ponderando. — Por que saiu do castelo? — perguntou de uma vez, para matar sua curiosidade.
— Cairo me pediu para verificar o novo administrador da casa dos mercenários.
Previsível, pensou Malri.
°°°°
Havia uma quantidade considerável de pessoas nas ruas, cedo de manhã em Má. Niu as vezes tinha que pular ou contornar algumas que estavam caídas no chão, depois de tantos anos ainda não conseguia controlar sua expressão de nojo, vendo aqueles corpos jogados na lama, ou seja lá o que fosse a umidade abaixo deles, depois de uma noite vivida como se não houvesse amanhã.
Sua figura elegante e erguida destoava deste ambiente.
Assim que chegou na casa dos mercenários, nada mais que um grande casarão de dois andares de madeira escura, alguém o acompanhou. Havia uma fonte circular simples na frente e alguns bancos, não parecia um lugar assustador, mesmo assim havia um ar pesado sobre a casa.
— Eu ainda não entendi porque meu pai está aqui — Rid despejou, acompanhando Niu por seu caminho até o escritório. — Ele nunca se importou com nada disso, e ele não precisa. Desde que eu me entendo por gente, nunca vi ele sair pelo mundo, eu dúvido muito que ele saiba como as coisas funcionam — fez uma pausa, colocando uma mão na frente de Niu, para que o mesmo parasse e olhasse para ele. — Não estou dizendo que meu pai é burro, nem pense isso. Esse mundo, as pessoas, são apenas complicadas demais.
— Não era ele quem deveria estar cuidando de você?
— Por que você não pode só responder, como uma pessoa normal? Só diz logo se você sabe de alguma coisa.
— Se quer saber, pergunte diretamente a ele. — Empurrou a mão na sua frente, continuou a caminhar em seguida.
— Acho que você esquece que trabalha para mim.
— Não se iluda. Eu trabalho para seu pai.
Quando chegou na porta do escritório, Niu apenas girou a maçaneta, pois sabia que agora ela sempre estaria aberta. Havia alguém lá dentro esperando. Rid era o único surpreso, não esperava Nerlim ali tão cedo.
— Rid, vejo que está mesmo se dedicando — era uma surpresa para Nerlim também, ver esse filho acordado tão cedo. Mesmo seu coração apontando que era mais provável que Rid não tenha sequer dormido ainda aquele dia.
— Ele só quer saber porque você está aqui — Niu entregou, enquanto caminhava para sua cadeira. — Está com medo das pessoas complicadas o enganarem. — Ele pegou seu café na mesa, tomando tranquilamente, enquanto aquele filho tinha um ataque ao ser exposto.
— N- não é bem assim — ria de forma forçada, quando encarou Niu, seus dentes cerraram.
— Fico feliz que se preocupe comigo — Nerlim era verdadeiro, no entanto era impossível não querer chorar, pensando que seu filho o achava um inútil. — Mas não precisa deixar isso tirar sua paz, ficarei bem. Eu sei o que estou fazendo — não, ele não sabia, era quase visível.
Rid se aproximou da mesa do pai.
— Pai, conte comigo para tudo — respirou, levando uma das mãos até o pescoço. — Eu ainda tenho alguns assuntos dos Moanjs para resolver, mas assim também estou o apoiando. E qualquer outra coisa que queira delegar a minhas mãos…
— Eu farei isso, obrigado.
— Certo — se afastou um pouco sem jeito — tenho que ir então. Até logo, mando notícias.
Assim que ele saiu, Nerlim não aguentou mais, escondeu o rosto entre os braços na mesa.
— Normalmente são os pais que envergonham os filhos — Niu comentou, sem muita emoção.
— Você está desdenhando de mim, não está?
— Uau, seu filho não precisa se preocupar, você já sabe o que é desdenhar. Como alguém que viveu como um monge em uma caverna, isso é incrível.
Nerlim poderia se sentir atacado, mas se Niu estava irritado ou insatisfeito com sua forma de ter agido em relação a Má, era compreensível. Acreditava não ter direito de se defender. No entanto, Nerlim não achava que isso fosse um ataque.
— Se sou um monge, um mosteiro é mais adequado que uma caverna.
Nerlim ainda não sabia dizer se a expressão que estava no rosto de Niu era de julgamento ou diversão, mas tinha essa impressão de qualquer que fosse, não era desdenhoso.
°°°°
Pode-se dizer que o administrador da casa dos mercenários era alguém controlado, que sabia ocultar suas emoções, entretanto, isso não se aplicava quando se tratava do mercenário Morte, Yuri — ou quando a emoção era ódio.
Yuri havia recebido sua primeira missão há alguns dias e tinha saído para cumpri-la. Desde então, era notável a ansiedade de Niu, que se irritava quando Nerlim dizia para ele não se preocupar, porque Niu não aceitava que estava preocupado.
Quando o pequeno mercenário entrou pela porta da sala do administrador, Nerlim jurava que conseguia sentir que o ambiente ficou menos pesado, que Niu voltou a respirar mais calmamente.
— Yuri, como foi? — O administrador perguntou sem afobação, mas por dentro estava feliz, pois o garoto parecia bem.
Niu nem viu que o fundador de Má o encarava descrente, sorrindo em seguida.
Nerlim guardaria esse dia em sua mente, para usar em algum momento que Niu o repreendesse (de novo) por chamar o garoto pelo nome.
— Fiz tudo certo — Yuri respondeu. — Posso ir?
— Sim. — O liberou, afinal, ele só estava ali porque havia pedido para ir até ele quando terminasse sua primeira missão, isso porque Niu não queria esperar Yuri vir atrás de outra missão para saber se a primeira tinha ocorrido bem.
O garoto saiu, fechando a porta atrás dele.
— É de uma falta de percepção, para não dizer crueldade, tudo isso. — Comentou Nerlim, chamando a atenção do administrador.
— Por que seu amigo mandou essa missão?
— Não foi Cairo, foi um conhecido dele. — Nerlim se levantou, caminhando até a janela atrás da cadeira de Niu. — Alguém que, se tivesse a mínima decência, não teria mandado Yuri fazer isso, e sim ter feito ele mesmo. Mas não acho que aquele homem se importa de verdade com Yuri.
— E o que o líder dos tigres fez? — Niu virou um pouco, para ouvi-lo explicar.
O líder dos tigres brancos era o alvo que Yuri eliminou, não era uma pessoa notável em meio a um mundo de tantos grandes nomes.
— Já viu as mãos de Yuri?
Niu havia notado, o garoto tinha cicatrizes dos dois lados das mãos, como se tivesse sido atravessada por algo. Não só isso, mas em seus pés também.
— E tem como não ver? — Lembrando disso, se sentiu irritado.
— Houve uma chacina em uma casa perto da vila dos deumianos tigres. Os deumianos tigres sempre foram conhecidos por fazerem suas próprias leis, mas naquela época fazia tempos que algo tão horrível não era feito como punição, e isso só aconteceu porque uma das pessoas que morreram era amante do líder dos tigres. Ele não se importou em ter certeza se a criança era culpada, e nem de que só era uma criança.
O rosto de Niu ficou enfurecido, naquela altura ainda conseguiu se sentir surpreso com a capacidade das pessoas em serem ruins. Se sentia tonto com a aversão.
Nerlim compreendia sua repulsa.
Os olhos de Niu acompanhavam o fundador de Má se mover, caminhando para o lado da mesa e se encostando.
— Principalmente porque não foi Yuri. — Nerlim ficou de frente para o administrador, com os braços cruzados na frente do corpo.
— Inimigos da família?
— Não eram tão importantes para tanto… Foi a mãe dele, ela é completamente louca, centrando seus pensamentos apenas em si mesma e em seus desejos. Não entende que o amor tem de ser puro e sincero. Penso que o fato de Yuri não conseguir se importar é o que o mantém são.
— Penso que é o contrário, e não sei onde aquilo é ser são. — Niu também cruzou os braços, afastando a cadeira um pouco para trás. — Mas tem razão, é de uma falta de percepção, para não dizer crueldade, tudo isso.
— Tudo só para satisfazer a vontade de quem mandou a missão.
— E quem mandou?
— Isso Cairo não me deixou dizer.
— Vocês são todos loucos. — Niu se levantou irritado, batendo a cadeira com força na mesa.
Talvez Niu estivesse certo, todos ao redor de Cairo eram tragados por sua loucura, até não ter como escapar disso, então eles mesmos arrastavam mais pessoas para isso. Cairo Omagaro era nocivo, ter consciência disso era o que mantinha Nerlim longe dele e dos seguidores, mesmo assim, preservava sua pura e sincera amizade pelo homem, e quando Cairo precisava, Nerlim não conseguia evitar estar lá por ele.
Nerlim observou o administrador saindo do escritório, sem ligar para quem ficou para trás.
Niu não queria pensar muito sobre isso, mas era inevitável. Ele mesmo usou muito da apatia e arrogância para tentar menosprezar as coisas ruins que vivenciou, era uma forma de sobreviver. Mas o tempo logo mostrou suas garras, nenhum evento passava despercebido pela mente. Poderia não ser cedo, você estando ciente ou não, a questão era que o corpo sempre reagiria, lembraria. Manchas que podem ser camufladas ou esquecidas, mas nunca apagadas.
A apatia poderia ser enxergada como maturidade, ou inteligência emocional, mas era apenas um sintoma. Uma camada que escondia um desastre tempo suficiente para que sua destruição pudesse ser irremediável.
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