Chiyo era um estudante dois anos mais jovem que Mallory na época. Eles se conheceram quando um atirador invadiu a escola onde estudavam e, surpreendentemente, Chiyo conseguiu pará-lo. Este ato quase lhe custou a vida já que quase foi baleado na cabeça. Por sorte, o tiro foi de raspão, resultando em um ferimento bem grande na altura da orelha.
Bem, Mallory já sabia sobre a existência de não-humanos na época, então, chamou sua atenção o fato dos olhos do garoto serem naturalmente na cor escarlate sendo que nenhuma característica física sua explicava esse fenômeno.
Por fim, estes dois viraram amigos e ele a ajudou a controlar parte dos dezessete demônios que habitavam no corpo dela na época. Além disso, ele a confortou quando Mallory perdeu o amor de sua vida.
Ela disse que, se Chiyo estivesse vivo hoje em dia, ele seria um senhor de idade debochado e com uma cicatriz enorme que deixaria sua orelha esquerda feia.
Como sempre, a forma como Mallory conta suas histórias, mesmo que trágicas, soam divertidas. Conversamos sobre algumas outras coisas também e, como de costume, ela me fez comer mais e mais biscoitos.
Apesar da leveza em nossas palavras, a conversa com Mallory implantou uma dúvida em meu coração.
Perder a pessoa amada, perder os amigos… Eu seria forte como ela foi caso isso ocorresse comigo? Não importa o quanto eu pense… A resposta sempre é “não”.
Antes da tarde chegar ao fim eu retornei ao prédio principal. Noah foi obediente e se comunicou com Bolt. Surpreendentemente, tudo foi agendado para ser resolvido nesta mesma noite.
Pela primeira vez, o representante das hienas estava sendo objetivo.
Achei que poderia adiar o encontro com Jeffrey e ainda pôr um fim no assunto das hienas irritantes, mas uma dúvida nasceu em mim quando descobri o local que Bolt havia escolhido para a luta: um farol.
Não havia nada que o favorecia em um local como esse. Antes de sair, cheguei a perguntar para Noah sobre mais alguma especificação, mas era o mesmo de sempre: uma luta corpo a corpo sem uso de poderes. Nada fora do comum.
De qualquer forma, queria estar longe antes que Jeffrey chegasse na cidadela, então saí antes da equipe principal.
Dirigi por algumas horas. Confesso que desci da moto com uma certa dor nas costas.
A noite já estava caindo. O farol não possuía luz e o caminho percorrido para chegar ao topo dele não passava de uma simples escada enferrujada que levava a uma espécie de sala de treinamento que as hienas customizaram. Sinceramente, fui um idiota. Eu vim sozinho para uma área que as hienas tomaram como território.
Deveria ter notado pelo rastro de lixo e cheiro de drogas pelo caminho na estrada entre as casas até aqui.
Após ouvir uma sinfonia de rangidos vindo da escada por onde subi, vi Bolt. Um homem não tão mais alto do que eu. O cabelo castanho arrepiado e uma barba mal-feita estampada no rosto que sempre carrega uma expressão de superioridade. A tatuagem tribal mal-feita cobrindo o pescoço combinava com as roupas desgastadas.
- Onde estão as testemunhas? - Bolt disse. A voz rouca e o tom sarcástico seguido de uma das sobrancelhas erguida. Ele me olhou de cima para baixo.
- Estão chegando.
Era certo que um desafio assim deveria ocorrer na presença de testemunhas não só da parte da Divisão Cervo, mas como da subdivisão das hienas também. Geralmente uma ou duas pessoas de ambos os lados já eram suficientes para o conselho considerar o resultado do desafio válido.
- Uma pena. As minhas já chegaram.
Meus olhos contemplaram a escada mais uma vez. Big Brian subiu, o que já era de se esperar. Mas os sons de passos não pararam por ali.
Outro integrante carregando o símbolo da hiena. Mais um, e mais um. E mais. Mais.
Todos se amontoaram em forma de círculo ao redor de mim e de Bolt. Os olhares contendo a mesma expressão: raiva. Era como se eu fosse um verdadeiro monstro. Como se tivesse feito o pior tipo de mal a eles.
“Não está certo”, eu pensei enquanto olhava em volta. A ficha caiu lentamente sobre o que estava acontecendo ali quando vi que a única saída havia sido barrada pelos membros da subdivisão.
- O pessoal da sua equipe principal vem, não é? Se não me engano geralmente você traz o bruxo, a mulher fria… - Bolt sorriu de canto. - …ou o seu favorito, não é?
A multidão ao redor murmurava: “Desta vez ele vai perder”, “o chefe preparou tudo”, “ele vai se arrepender de ter nos humilhado”.
Passei os olhos por todos que abriram suas bocas imundas, mas houve um que não emitiu um som sequer: Brian. A única hiena que parecia adestrada.
- Me pergunto se eles concordarão com a nova liderança quando você for eliminado. - Bolt deixou escapar uma risada anasalada e caminhou lentamente em minha direção.
Não havia motivo para recuar, então permaneci onde estava até ficar cara a cara com o tatuado.
Os demais membros da subdivisão responderam à provocação de Bolt com aplausos e apoio. A espécie de autoafirmação de que já haviam vencido antes mesmo da luta começar sempre foi um padrão de qualquer início de conflito envolvendo as hienas.
Independente de qualquer euforia entre Bolt e seus seguidores, meu instinto gritou que aquilo não terminaria bem. Há mais homens do que eu posso contar e eu estou sozinho. Não importa como eu olhe, não me parece apenas um desafio como sempre foi. Isso é uma execução... ou uma tentativa de uma.
- Vamos começar? - A voz de Bolt quebrou o silêncio que minha mente fazia.
Involuntariamente eu assumi uma postura de luta, mesmo sem ter um plano para sobreviver até que minha equipe principal chegasse.
“Aki já deve ter voltado da aula de música”, eu pensei.
Quando Bolt avançou com um soco com o punho direito eu ouvi o som de um trovão. O som estridente me surpreendeu, mas não me impediu de desviar daquele golpe insignificante.
Dei um passo para trás e senti um vento frio arrepiar minha espinha. Quando olhei de relance na direção da brisa, vi grades…
“Porra, aquilo é uma varanda ou o que? Dá direto para o mar!”, pensei.
Aquela sala mal iluminada e suja acabou fazendo passar despercebido o lugar em que deveria estar uma porta que dava para poucas grades de segurança enferrujadas.
Outro golpe foi desferido por Bolt. Um chute vindo da esquerda. Eu desviei.
- Está brincando comigo?! Lute direito! - Bolt cortou o vento com sua voz estridente em um grito de irritação.
- Por que… - Eu demorei um pouco para voltar-me na direção do tatuado que me enfrentava. -...chamou uma platéia?
- Ah, uau. O rei cervo sabe falar. -Bolt virou-se para os demais enquanto erguia ambas as mãos, como se fosse uma deixa para que ele fosse exaltado. As hienas riram e comemoraram em apoio.
Outro trovão foi ouvido. Começou a chover.
O local era absurdamente próximo do mar. Facilmente se ouve o som das ondas se chocando contra as pedras. Se iniciou uma tempestade que enfureceu o mar.
Eu engoli em seco. Não gosto de tempestades.
Possibilidades paranóicas começaram a surgir. Cair no mar, morrer afogado.
O barulho das ondas e o vento uivante fazia eco em meus ouvidos. Este é um dos meus únicos medos irracionais. É algo que sempre faz voltar as memórias ruins e delírios sem sentido.
Mesmo com a visão ficando turva e desfocada com a neblina dos pensamentos ruins, eu notei uma coisa diferente: Bolt estava de luvas.
“Por que luvas?”, eu me perguntei.
- Ah, droga, é ele…! - Um dos membros da subdivisão falou ao fundo da platéia.
- Droga, abram caminho! - Outro gritou.
- Não falaram que ele ia vir! E agora, o que faremos?! - Mais um disse.
As falas oscilavam entre assustadas e fascinadas. Fixei meus olhos no ponto da multidão onde as pessoas abriam passagem para alguém que chegava com passos pesados. O andar nada silencioso só poderia ser de uma pessoa. Aquela pessoa.
Ele possui cabelos perfeitamente lisos em um tom castanho com pontas alaranjadas. Seu físico é bruto e definido como o de alguém acostumado a brigar, e ele estava. A camiseta negra junto da jaqueta de couro com detalhes grosseiros não disfarçaram sequer uma curva de seus músculos.
Apesar de tamanho poder esculpido em seu corpo, seu rosto se destoa quase como se não se encaixasse no conjunto inteiro. Suas feições são compostas de linhas delicadas e bem desenhadas mesmo que acompanhadas de três cicatrizes em seu rosto. Uma acima do seu nariz, na sua bochecha direita e abaixo do olho esquerdo.
Seus olhos com longos cílios próximos de duas íris carregando o mais límpido verde claro e brilhante compondo um olhar frio, mas que não deixa de ser cativante. O conjunto de detalhes suaves e bárbaros cobertos por sardas perfeitamente mapeadas.
Grandiosamente surgiu o mais temido da equipe principal da Divisão Cervo: Aki.
Não importa a quantidade de informação que Aki carregasse em sua aparência, o que mais intimidava os inimigos era sua altura. O único entre todos presentes que mede 1,90, olhando por cima de todos os outros.
Quando Aki é visto por um inimigo a tendência não é temer apenas pelo tipo de poder que ele carrega, mas também pela potência do soco que ele é capaz de acertar.
- Que merda está acontecendo aqui? - A voz de Aki quebrou o silêncio erguido por todos que se calaram ao ver o japonês tomando a frente dentro do círculo feito pela platéia. - Isso não é um desafio, é uma perda de tempo. - Ele fez um sinal com a mão para que eu andasse logo. - Vamos embora, Lúcifer.
Rapidamente me esqueci da tempestade e do turbilhão de sensações ruins que nasciam do fundo da minha mente. Eu deixei escapar uma risada. Quem olhasse de longe pensaria facilmente que Aki é o líder aqui, e não eu. Mas não havia problema nisso. Este é o jeito dele.
Mesmo com o tom das falas do mais alto fazendo todos tremerem, nenhuma hiena sequer ousou tirar os olhos dele, isso inclui Bolt. Isso fez com que eu desse o assunto como encerrado. Mas foi erro meu abaixar a guarda.
Bolt estalou a língua.
- Não pode terminar assim…! - Bolt soltou as palavras em um rugido e moveu-se em minha direção em uma velocidade que jamais havia visto alcançar.
A luva com garras retráteis fez com que agulhas surgissem da ponta de seus dedos. Em questão de segundos eu compreendi o motivo de estar carregando algo fora do comum com ele.
Não daria tempo de desviar daquele ataque tão próximo, eu só pude defender colocando os braços em forma de X.
Antes que eu pudesse notar, quatro das agulhas foram cravadas em meu antebraço esquerdo. Um líquido prateado vazou como que transbordando de um compartimento dentro das luvas.
O mundo começou a girar lentamente. Cheguei a ouvir um ruído que parecia ser a voz de Aki, mas a única sensação que tenho certeza de sentir foi da mão de Bolt me empurrando com toda a força para trás.
Eu tentei fechar o punho para me segurar em algo mas senti que meu corpo havia quebrado algum tipo de estrutura. Naquele momento, todo o plano de Bolt fez sentido para mim. Por que um farol? Por que tantas pessoas como testemunhas? Por que as luvas?
Eu nem sequer notei que eles me encurralaram de costas para as grades.
Caí no lado de fora, quebrei a grade enferrujada.
Eu caí no mar.
Comments (0)
See all