Era noite de lua nova e matava o tempo em cima do telhado de uma casa térrea abandonada, procurando inutilmente por ela. Tinha acabado de sair do clube Blood Mary, o melhor local em São Paulo para alguém como eu comer um lanche de madrugada. Não gostava de me envolver com eles – já tinha o suficiente de coisas sombrias dentro de mim – mas a dona do bar, uma sucubus chamada Laila, era uma conhecida e ótima informante. Ela me contava sobre cada ser que começava a se sobressair na cidade e eu os caçava.
Era uma via de duas mãos: ela precisava de alguém para aparar as pontas soltas que atrapalhavam seus negócios, já eu precisava da energia vital dos condenados, almas malditas sentenciadas ao inferno, para alimentar o demônio que habitava em mim.
– Hei, garoto! Tem um movimento ali no beco. – Falando, literalmente,
no diabo, um enorme wolfhound
irlandês, de olhos amarelos e pelo vermelho sangue sentou-se ao meu lado atrapalhando
minha inútil busca pela lua.
Porém, foquei meus sentidos no escuro que tomava a rua, sem me preocupar em responder ao cão. Com o passar dos anos, aprendemos que falar sozinho só atrai problemas e, como eu era o único que podia ver o cão infernal, confortavelmente alojado em mim, acostumei a não lhe responder sempre.
Franzi o cenho. Apesar dos meus sentidos terem ficado muito mais afiados que os de um humano comum, os de Hound eram muito melhores. Se o cachorro dizia que tinha algo lá – mesmo que eu não pudesse sentir – é porque realmente tinha.
Fiquei imóvel, observando a travessa mal iluminada. O problema de caçar vampiros é que, a menos que saiba onde fica o ninho deles, você nunca irá achá-los. É preciso esperá-los aparecer, e eles só saem para caçar.
Passos ressoaram pela rua mal iluminada, e fixei minha atenção no som. Uma mulher apressada, por volta dos quarenta anos, aproximava-se do beco. Era pequena e esbelta, tinha sinais de envelhecimento no canto dos olhos e da boca, porém mais aparentavam ser um indício de estresse do que de sua idade propriamente dita. Seus cabelos curtos castanho-claros estavam presos com presilhas, afastando-os do rosto, e seus olhos verdes pareciam procurar, agitados, vestígios de perigo por seu caminho. Estava vestida como uma secretária e levava uma bolsa preta, de aparência sobrecarregada, em seu ombro esquerdo enquanto agarrava uma sacola-plástica cheia de compras de encontro ao peito.
Me senti mal por usá-la de isca, mas não podia voltar para casa de mãos vazias. Já fazia um tempo desde a última vez que alimentara Hound e, se não o fizesse logo, ele iria voltar a dar problemas.
A mulher fez uma curva repentina, atravessando a rua na entrada do beco, enquanto olhava para dentro da escuridão. Não sei se chegou a ver algo ou se foi apenas instinto, mas se virou e acelerou o passo. Porém, já era tarde, não chegou a dar cinco passos antes que lhe barrassem o caminho.
O vampiro que lhe bloqueara a passagem parecia ser jovem, tanto em aparência quanto em idade. Não se movia com muita cautela, mas dava a impressão de ser forte. Estava vestido com roupas esfarrapadas e sujas, quase como um mendigo, e seu fedor de sangue morto chegou até mim com o vento. A mulher se encolheu e arregalou os olhos, mas não gritou. Acho que sabia que não iria adiantar, não estávamos em uma rua residencial e já fazia tempo que as lojas haviam fechado. Ninguém iria ouvi-la.
Ela começou a falar algo, provavelmente pedia que a poupasse ou deixasse ir, mas não conseguia compreendê-la da distância em que eu estava. Hound, porém, começou a sorrir e supus que ele a ouvia perfeitamente, e seu desespero o divertia.
Fiquei incomodado, aquilo não estava certo. Querendo terminar logo com a situação, me preparei para atacar.
– Não! – O demônio repreendeu. – Ele é jovem, transformado. Tem pouca energia. Deve haver mais algum por perto, controlando-o. Não se mova!
A contra gosto, me aquietei. A mulher começou a recuar em direção ao beco, acuada pelo homem a sua frente.
– Se tiver mais um, ele não vai se mostrar – Sussurrei com os dentes serrados – O novato vai conduzí-la pra dentro da viela!
– Espere. – Foi a única resposta que obtive.
Estava prestes a retrucar, quando escutei um enorme barulho. A mulher tinha acertado o vampiro com a sacola cheia de compras, derrubado a bolsa no chão e disparado em direção de onde tinha vindo.
O vampiro sequer vacilou. Com apenas um salto estava em cima da coitada, que esperneava e se debatia. Desta vez não hesitei, pulei pro chão e disparei em direção aos dois, antes mesmo que Hound pudesse dizer algo. Podia ouvi-lo rosnar contrariado em minha mente.
O condenado agarrou a mulher pelos cabelos e socou sua cabeça no asfalto antes que eu pudesse arrancá-lo de cima dela. Joguei-lhe no chão, aos meus pés, e deixei que Hound dividisse comigo o controle dos movimentos, tornando-me mais forte.
Com a mão esquerda seguramos o jovem vampiro pelo pescoço, mantendo suas presas longe de nossa carne, esmagamos seu ombro esquerdo com um golpe e imobilizamos o resto de seus membros com as pernas. Ele urrava e berrava, tentando se libertar. Seu cheiro fazia arder nosso sensível nariz. Rasgamos a parte da frente de sua blusa puída e, num só movimento, enfiamos o braço até o cotovelo em sua barriga, passando a mão por baixo de seu externo, agarramos seu coração e, fechando com força nossos dedos, estava tudo acabado.
Era isso. Não havia nenhum ritual ou palavras sagradas. Tudo o que precisava fazer era matá-los com minhas próprias mãos e suas almas condenadas não mais iriam para o inferno. Elas desapareceriam absorvidas por Hound.
Voltando a ter controle total de meu corpo levantei o rosto e me deparei com dois olhos frios brilhando acinzentados no escuro. O outro vampiro, escondido no beco, era claramente mais velho e forte, porém, tudo o que pude vislumbrar foi seu rosto marcado por imensas cicatrizes de queimadura, antes que este desaparecesse na rua estreita.
A raiva de Hound se tornou palpável em seus rosnados.
– Eu disse! Eu disse que havia mais um! – Me ameaçava com seu enorme corpo intangível. – Maldito humano! Se tivesse esperado teria ganhado uma presa melhor! – Ele continuava dizendo enquanto eu me dirigia para a mulher caída. – Ao invés de ter ficado com um vampiro que não devia ter nem mesmo uma semana de vida e um defunto para se livrar. Antes deixasse que o vampiro acabasse logo com ela! Assim o corpo iria desaparecer com o dele pela manhã.
– Ela não tá morta – Disse enquanto checava seu pulso.
– Então temos que matá-la!
– Não. Ela não foi mordida... Mas tem um ferimento na cabeça e o tornozelo direito parece estar quebrado.
– Há! E desde quando você é médico? – Gracejou o demônio com escárnio.
Eu hesitei um instante antes de responder.
– Tem razão, temos que levá-la a um hospital.
Hound não respondeu, mas podia sentir sua raiva crescendo como fogo correndo por minhas veias. Levantei e fui buscar a bolsa da mulher antes de pegá-la o mais suavemente possível. Ela tossiu, cuspiu um pouco de sangue e começou a se agitar em meus braços.
– Daniel... Daniel? – Chamava.
Tinha cara de ser mãe. Mas não podia dizer com certeza, não era o mais indicado para discutir esse tipo de assunto. Fazia tempo que não tinha família nenhuma.
– Não. Meu nome é Jesse. Eu vou te levar para um hospital agora... Tente ficar acordada, ok?
Uma lágrima escorreu por sua bochecha, não soube se de dor ou decepção, mesmo assim, tentei sorrir para encorajá-la enquanto corria pela rua.
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