Levar a mulher ferida para o hospital não tinha dado tão certo quanto planejei. O segurança, ao me ver correndo pela rua de desembarque de passageiros, soou uma maldita campainha que machucou meus ouvidos, cujos sentidos havia deixado aguçados caso a ameaça voltasse.
Em um instante estávamos rodeados de enfermeiros que puxaram a mulher de meus braços e a colocaram em uma maca para a triagem. Perguntas eram atiradas em minha direção e a única resposta que conseguia dar era um constante "não sei".
A situação toda escalou até o momento que sugeri procurarem nos bolsos da moça por uma identidade. E foi quando percebi o meu erro: Uma maré de olhares perplexos virou em minha direção. Quando recuei, dei de costas com uma parede de músculos.
– Esta tudo bem por aqui? – Um segurança brutamontes perguntou olhando para mim. Ao que só consegui responder com um prolongado "hãã".
O engravatado então olhou por cima do meu ombro para um policial que, claramente, estava ali pelo puro acaso do meu azar. O oficial franziu o cenho e percebi que encarava meu braço coberto até o cotovelo de sangue.
– Você está bem? – O segurança continuou, ao também notar meu estado. – Esta ferido?
Já era tarde demais, preso entre o brutamontes engravatado e os enfermeiros cada vez mais confusos que tentavam encontrar um ferimento que não existia – já que o sangue não era meu – só pude ficar ali, com uma careta no rosto, observando enquanto o policial, carrancudo, se aproximava da cena para averiguar a comoção.
Depois de se desvencilharem de nós, os enfermeiros finalmente conseguiram levar a mulher que resgatei para ser atendida, me deixando para lidar com os meus mais recentes problemas.
– Qual o seu nome? – Começou o policial que, após um pouco mais de questionamento, percebeu que não iria conseguir muitas resposta de mim. Apenas atestando que eu era um menor de idade, não identificado.
Claro, nem preciso dizer que acabei encaminhado para delegacia do distrito, meu estado lastimável não ajudando muito na situação de ser suspeito do ataque à moça que deixei no hospital. Tentei argumentar que, se tivesse sido realmente eu o infrator, não a teria levado as pressas pra receber socorro, mas quem era eu pra argumentar qualquer coisa? Finalmente, depois de um desconfortável exame de corpo de delito, resolvi ceder, para a alegria do delegado, e indicar um adulto para chamarem.
Não levou tanto tempo assim, mas cada minuto pode parecer ser uma eternidade quando se tem um demônio resmungando em seus ouvidos. Eles finalmente conseguiram puxar minha ficha e constataram que eu era órfão. Vinte minutos depois me avisaram que o adulto responsável chegara.
Nenhum assistente social poderia chegar ali em tão pouco tempo. Nenhum, com a exceção da Srta. Gabriela Manne, o "adulto responsável" que indiquei para me acompanhar.
Eu havia fugido da casa abrigo em que morava uma vez, enquanto estava sob seus cuidados e acabei virando a obsessão dela. Depois disso, continuei fugindo de vários dos lares em que fui colocado, mas ela sempre acabava me encontrando, não importava o buraco em que me metesse. Já estamos naquela de gato e rato a um belo tempo e imaginava que ela só me deixaria em paz quando me tornasse maior de idade.
– Jessé! – Ela deu uma atenção especial para a última silaba. – Que prazer em te rever! – Podia apostar que até o pastor alemão que havia visto ao chegar à delegacia tremeu com voz aguda dela.
– O sentimento é recíproco – Deixei que minha voz saísse acida. Odiava meu nome e costumava pedir que me chamassem de Jesse, como em “Jesse James”. Coisa que ela insistia em não fazer.
Srta. Gabriela era uma mulher de uns trinta anos de idade que tinha a pele morena e sempre em perfeito estado. O cabelo, preto e volumoso, estava sempre preso em coque alto que destacava seus olhos castanho-escuros. Usava um terninho cinza claro e quase nenhuma maquiagem. Todos que reparassem em suas feições veriam apenas uma bonita, gentil e trabalhadora mulher que só queria ajudar.
– O que eu vou fazer com você? – Ela parecia divertida – Já estava até me acostumando a vir te buscar em delegacias pela cidade toda. Mas ser detido por agressão? Essa é nova.
– Como assim? Você devia estar aqui pra ficar do meu lado. Eu não fiz nada! – Disse indignado. – A moça que ajudei vai dizer que é verdade quando acordar!
– Ela já acordou. – O silencio por trás desta afirmação se arrastou, suei frio "Será que a mulher estava tão atordoada a ponto de me confundir com o vampiro?" – Hahaha! – Srta. Gabriela finalmente continuou.
Dentre todos os defeitos que alguém poderia ter, apenas um me irritava a ponto de soltar fumaça.
– Você tinha que ter visto o seu rosto!
E era ter um péssimo senso de humor.
– Ela acordou sim, mas confirmou a sua história, Sr. herói. De fato, estava até querendo lhe agradecer pessoalmente. Mas isso não vai poder ser arranjado no momento. Você está indo direto de volta para o abrigo do qual fugiu. – Como eu odiava aquela mulher. – Passei três meses te procurando, sabia disso? Cheguei a pensar que te encontraria morto em alguma vala ou- Não faça essa cara, vamos! – Emendou se levantando, – Melhor sairmos logo daqui, só falta assinar alguns depoimentos e passar por um exame de corpo de delito para ficarmos livres.
– Outro?! – Reclamei, ao que apenas gesticulou para segui-la e assim o fiz.
Livres uma ova. Ela, sim, iria terminar o trabalho comigo, chegaria em casa e curtiria o aconchego de um lugar só seu. Já eu? Em um momento estaria seguindo para um lar temporário, com mais um monte de crianças que não iriam querer estar ali, preso sem poder cuidar dos meus assuntos e problemas, um tanto, demoníacos.
∴
Os dias costumam passar depressa quando esta se divertindo. Razão das semanas subsequentes ao meu enrosco no hospital terem parecido ser anos. A rotina no abrigo em que fui colocado era de matar e não tinha muito o que fazer para passar o tempo quando a maioria das pessoas com quem convive tem medo de você. Quer dizer, a menos que você seja Hound. Para ele, era extremamente gratificante fazer criancinhas saírem correndo aos berros ao verem meus olhos brilhando em amarelo de repente.
A casa do abrigo, chamado Caminho pra o céu, não era um local muito grande. Se não soubesse melhor, algum desavisado poderia até achar se tratar de uma residência comum. Mas era o suficiente para os vinte e tantos garotos que lá viviam. O prédio era antigo e precisava urgente de uma pintura, mas era fresco no verão e confortável no inverno. Era uma edificação de dois andares, construída em forma de “L”, com um anexo externo onde ficavam as salas administrativas, entre eles havia o pátio, com uma pequena horta e alguns brinquedos de plástico, doados pela comunidade, para as crianças pequenas. Ligando os prédios, muros de concreto decorados com arame farpado – por ser mais barato que uma cerca elétrica – e canteiros de flores impediam que estranhos entrassem... Ou que alguns de nós saíssem – não que aquilo pudesse me impedir. Apenas esperava Hound começar a resmungar sobre sua alimentação novamente.
Eu costumava subir no telhado, por uma calha que ficava perto da minha janela, e ficar lá até alguém me descobrir. Claro, depois da décima segunda vez todos os responsáveis já sabiam exatamente onde me encontrar. Tanto que nem compensava mais o esforço de subir ali.
Mas, como disse, não havia muito para alguém como eu fazer naquele lugar, deixando tempo mais que suficiente para achar novos esconderijos e fugir do contato humano. A rotina era basicamente essa: Quando não estava no refeitório comendo, no quarto dormindo, na biblioteca tendo estudando ou no corredor atormentando as crianças, me enfiava atrás de um enorme armário de madeira de baixa qualidade, onde guardavam os materiais de limpeza, perto da saída para o pátio. Não era o melhor lugar do mundo para se passar o tempo, principalmente se você tem um nariz sensível como o meu – o cheiro era de desinfetante, mofo e muito remédio para matar baratas –, que coçava e fazia meus olhos lacrimejarem toda vez que entrava ali. Porém o desconforto era compensado pelo tempo sem ter alguém para gritar, chorar ou pular em mim.
Quando havia retornado ao abrigo, o conto do meu "ato de heroísmo" já havia se espalhado e, mesmo que muitos dos garotos ali não dessem bem uns com os outros, aquele era exatamente o tipo de coisa que deixava qualquer mente jovem e impressionável excitada. Estávamos no inicio do período de férias escolares, o que tornava o convívio muito mais frequente e, eventualmente, frustrante.
No geral, não era um local ruim de se viver, se você não tivesse que constantemente alimentar um cão gigante e infernal que comia alma de condenados. Era um lugar deverás pacífico. As crianças, cuja maioria ainda mantinha contato com a família, eram visitadas pelos pais e parentes, o que mantinha o ambiente bem alegre. O único problema era quando as visitas ficavam abertas para o restante da comunidade e, vez ou outra, sempre aparecia um padre para me atormentar.
Estava indo em direção ao novo esconderijo, querendo um pouco de sossego após terminar as minhas tarefas, quando fui abordado por Bruno. Um garoto quatro anos mais novo que eu, baixinho para a idade e de pele bem morena, tinha os olhos e cabelos castanho-escuros, quase pretos, cortados bem rentes. Ele me viu no corredor e correu em minha direção.
– Jesse! Jesse! Onde você estava? – Disse ele agitado. – Todo mundo estava procurando por você! – Isso já não era mais uma novidade. Mas geralmente eu conseguia me desvencilhar de qualquer projeto no qual tentassem me envolver. – Vamos logo! Temos que avisar a coordenadora que achei você!
Ele agarrou a manga da blusa-meia-estação azul escura que usava e me puxou pelo corredor em direção ao anexo administrativo. Estávamos atravessando o pátio, indo pelo caminho mais curto, quando caiu a ficha. Estava tudo vazio e faltava pouco para o entardecer, se houvessem atividades em grupo a serem feitas, elas estariam sendo realizadas na biblioteca.
– Espera um pouco. – Disse eu parando. – Por que, exatamente, estavam me procurando? – Não que estivesse desconfiado, mas se tivesse que fugir seria muito mais fácil sair correndo naquele instante e pular o muro do que com dois ou três policiais humanos a minha volta em uma sala pequena. Paranóico? Eu?
– Estão dizendo que uma moça veio te visitar. Dona Gabriela a trouxe já faz umas horas, disseram que iriam esperar você aparecer!
Naquela hora, meu mundo parou.
O primeiro pensamento que veio a minha mente foi "mãe?". Mas logo o dissipei. Minha mãe havia desaparecido muito tempo antes de acabar sendo levado para um daqueles abrigos. A policia, inclusive, tentou procurá-la por um bom tempo mas, com as buscas infrutíferas e sem nenhum outro parente vivo conhecido, fui considerado um órfão.
Mamãe não voltaria para me buscar. Agora lhe causava medo demais para isso.
Olhei para onde a mão de Bruno, que agora segurava a minha, reparando no contraste de sua pele bronzeada com a minha um pouco pálida. Admito que era um pouco exótico, dentre os garotos daquele abrigo, com os cabelos castanhos avermelhados e olhos cor de mel que, vira e meche, se tornavam amarelos. Embora minha aparência acabasse mudando em fotos e filmes: a pele aparecia bronzeada de Sol e o cabelo e os olhos castanhos escuros. Ninguém sabia explicar. Ninguém exceto eu e o resto dos condenados, é claro. Era simples: estava possuído por um demônio.
Pensei em quão diferente éramos, o menino alegre que tentava me puxar e eu. Em como ele ainda mantinha contato com seus pais e logo voltaria para casa, enquanto eu já arruinará minha vida sem nem ter completado a maior idade.
– Bom. – Disse, retomando o passo – Vejamos no que isso vai dar, então.
E seguimos para o anexo da administração. Bruno animado, eu ainda remoendo os pensamentos e Hound zombando de minha expressão.
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