Passamos por algumas mesas de madeira, algumas ocupadas por famílias felizes lanchando. As mesas tinham a aparência de ser tão pesadas que parecia ser preciso mais que um par de braços para locomovê-las. Ninguém poderia roubá-las facilmente.
Léo tropeçou e eu agarrei a sua mão. Fazia dez minutos que reclamava de estar cansado. Sair procurando as famílias de seus amigos perdidos, antes de levá-lo de volta, não parecia mais uma boa ideia. Ele murmurava e choramingava, querendo parar. Mas já havia lhe explicado que Alana estava preocupada, e que seria eu a levar a bronca se demorássemos ainda mais. Léo fincou os pés no chão e me fez arrastá-lo, não iria pegá-lo no colo. Arrastaria-o pelo caminho inteiro, mas não o pegaria no colo.
Estávamos quase saindo da área de mesas, quando uma voz começou a chamar. À princípio, não achei que fosse comigo, mas ela começou a ficar mais alta e furiosa, e ninguém lhe respondia. Virei para trás, mais por curiosidade do que qualquer outra coisa, e cai de bunda no chão. Naquele momento, fiquei feliz por Hound estar dormindo. Eu havia sido nocauteado por uma garota. Não que ela fosse absurdamente forte, e muito menos que eu fosse fraco – já derrotei coisas estranhas demais para ser avaliado assim. C. Ela me pegou de surpresa, e agora meu nariz latejava. Não estava quebrado, só dolorido, mas se tivesse sido acertado por alguém forte, ou com uma arma branca, estaria encrencado. Deus! O dia nem tinha terminado, e me pegaram pela segunda vez desprevenido. Realmente, estava ficando displicente.
Olhei para cima e vi uma garota gordinha. Um pouco mais baixa que Alana. Usava uma calça jeans e uma blusa tipo bata, listrada de azul claro. Seus olhos castanho-escuros me encaravam e seu cabelo era tingido de vermelho, preso com uma tiara, que deixava sua franja solta de um lado do rosto, corado pela ação. Colares pendiam de seu pescoço e pulseiras de seus pulsos. Ela parecia feminina demais para sair distribuindo murros em caras que não conhecia, mas quem seria eu para julgar? Quase ninguém adivinharia que tenho um demônio dentro de mim. Ela agarrou o pulso de Léo e girou em suas sapatilhas, se afastando. Demorei uns segundos para me recompor, e me pus de pé. Talvez não seja culpa da família ou de algo sobrenatural, talvez eu só esteja lento hoje.
Agora era eu quem gritava para ela, que se afastava à passos rápidos na direção de um grupo de pessoas. Corri até alcança-la e agarrei a mão livre de Léo. Ela virou para me encarar. A fúria estava se espalhando por seu rosto, deixando suas bochechas mais vermelhas. Para alguém tão pequena, até que era bem corajosa. Reprimi um sorriso. Agora não era hora de sorrir, e sim de fazer cara de mau.
– Se não lagar o menino eu grito! – ela rompeu minha concentração, com uma voz baixa e ameaçadora. Fiquei sem fala, provavelmente com cara de tacho. – Largue-o! – Continuou.
Limpei minha garganta e ajeitei minha postura.
– É o meu irmão quem você está tentando raptar, garota... – disse com a maior calma possível. – Então, quem deveria soltar aqui é você – falei triunfantemente. Encaramos-nos por uns instantes. Eu estava crente que logo ela se daria conta de ter confundido Léo com algum outro moleque. Ela olhou para ele, se voltou para mim e me preparei para suas desculpas.
– Léo só tem uma irmã – ela disse, fazendo- me titubear novamente. Que maldita garota era essa que me pegava desprevenido tão facilmente? – E o nome dela é Alana, minha amiga que me ligou, faz uns vinte minutos, dizendo que seu irmão tinha desaparecido – ela disse, apaontando o indicador pintado de vinho para o meu rosto.
– Então, se tem alguém tentando raptar o menino, esse alguém é você! – ela disse e voltou a andar.
Fiquei sem me mover por um momento, encarando o nada. Até que percebi que os dois já haviam se distanciado demais. Droga! eu pensei. “Será que tem como piorar?”.
– Hei! Moleque! – três homens se aproximaram de mim. Eram tão grandes como pugilistas, se não fossem humanos, estaria preocupado.
Tentei ignorá-los e continuei andando, mas dois deles se postaram à minha frente, bloqueando o caminho. Virei-me deixando os dois brutamontes à minha esquerda e o cara que havia me chamado à direita.
Eles pareciam saídos de um anúncio para academia. Tinham por volta dos vinte anos, bombados e morenos. Todos de regata e bermuda, dois deles estavam de tênis, enquanto que o terceiro tinha usava um par de Havaianas. Agruparam-se à minha volta e cruzaram os braços sobre o peito, tentavam parecer ameaçadores. O que eles não sabiam era que, a menos que tivessem presas, pudessem levantar um carro acima da cabeça, atear fogo com a mente ou qualquer uma dessas pilantragens do mundo sobrenatural, eles não me assustariam.
– Desencana moleque! – falou o que tinha luzes no cabelo.
– E agradece que não vamos te surrar e levar pra polícia – completou o mais alto, com um corte de cabelo estilo militar. Eu olhei para ele. Meu rosto devia estar bem sinistro porque, mesmo sendo meio palmo mais baixo que o menor deles, o grandão titubeou.
– Pra começar – falei no melhor tom zombeteiro que Hound gostava. – eu sou menor de idade, então, se vocês me baterem e me levarem para polícia, vocês é que serão presos – eles vacilaram um pouco. – Segundo, eu não fiz nada para ser preso e, a menos que vocês sejam policiais, o que eu duvido – eles não tinham o usual cheiro de pólvora e metal característicos dos policiais – não podem me prender, muito menos me levar para lugar algum.
Comecei a andar, mas o do cabelo com luzes me segurou pelo ombro. Olhei para a mão dele e depois para o seu rosto. Eu estava com a minha melhor poker face. Achava ela mais perturbadora do que olhar com raiva ou ameaçadoramente. Simples calma fria e controlada. Ela significa que você já passou por situações iguais ou piores, saiu na melhor, e não significou nada. É a expressão de alguém sangue-frio, e as pessoas reconhecem o perigo nela. Nem sempre entendiam o porquê, mas sabiam que era ruim. O cara tirou a mão e engoliu seco.
– Não vamos permitir que você rapte mais crianças – o cara que havia me chamado no começo falou, interrompendo meu momento com o agora assustado cabelinho-de-luzes. Não o conhecia nem há cinco minutos e já lhe dei um apelido depreciativo. Cabelo feio é um porre mesmo.
Virei para o que, a meu ver, era o líder do grupo. Minha confusão deve ter sido óbvia, porque o cabelinho se recuperou rápido cruzando os braços, inflando o peito e se apreçando a concordar com a última observação. O suposto líder suspirou alto e deixou os braços caírem pros lados, lançando-me um olhar avaliativo, decidindo se me deixava ir ou não.
Bom, não importava o que ele decidisse. A garota briguenta estava fugindo com Léo, e eu nem tinha certeza se ela era realmente amiga de Alana ou não. Suspirei e passei a mão direita pelo cabelo, relaxando. Ficar tenso só iria deixá-los na defensiva.
– Escuta – disse cansado. – Eu não estava raptando o moleque. Ele é meu irmão – o líder me lançou um olhar de desprezo, fazendo um gesto de negação com a sua cabeça raspada.
– Alana não tem irmão mais velho – ele disse, simplesmente.
Merda! Todo mundo aqui conhece os Oliveira?
– Sou adotado – disse relutante. – E não sou mais velho... Tenho dezesseis.
Ele fez uma expressão de surpresa. Olhou seus companheiros e depois voltou-se para mim.
– Então você que é o Jessé? – fiz uma careta.
Alana maldita. Deve ter falado para todo mundo meu nome.
– Jesse. Eu prefiro que me chamem de Jesse – É melhor começar já o controle de danos.
– Hmm – ele ficou pensativo por um instante. – Eu sou Marcus – E então apontou para o do cabelinho e depois para o grandão – Wallace e Pedro – acenei para eles e eles acenaram de volta. – Vamos ficar de olho em você – ele disse fazendo um movimento com a cabeça para os outros dois, e então foram embora, de volta para a mesa na qual estavam sentados.
Não perdi mais tempo e disparei na direção em que Léo e a garota se foram, ainda sentindo o olhar dos três em mim.
∴
Dois minutos depois, eu assistia de longe como Alana corria para Léo, toda desesperada e preocupada. Enquanto eu me aproximava do grupo, ela checava cada pedacinho de pele visível do coitado, mas eu nem iria comentar nada sobre isso, ela havia passado por maus bocados nessa última hora. Era normal que quisesse conferir a integridade do garoto.
Estava há uns dez passos deles quando a gordinha me notou. Normalmente eu condenaria a falta de vigilância, mas ela havia chegado perto o suficiente para me dar um soco uns minutos antes. Mas novamente, não estava em posição de julgar. A garota se colocou entre os irmãos e eu, fez cara de má e esperou que eu desistisse. Quando viu que eu não iria embora, abriu a boca para brigar, mas foi interrompida por Alana que, de tão preocupada e desesperada, virou uma irmã raivosa.
– Onde você estava? – ela rosnou para mim. – Você tem ideia de pelo que eu passei? Você me largou sozinha! – gesticulava com as mãos enquanto falava rápido. – Só quando mamãe voltou eu pude sair e fazer alguma coisa – engraçado ouvir “mamãe” saindo de sua boca. Principalmente, porque era ela quem parecia a mãe agora. – Saiu falando toda aquela merda e foi vagabundear por aí! – Fiquei bravo. Ela só precisava de um bode expiatório, eu sabia. Mas. ainda assim, eu não gostava de ser acusado de coisas que não fiz. O que acontecia o tempo todo...
– Não estava vagabundeando – disse indignado. Dei uma espiada de lado na garota que me socou, ela parecia estar desconcertada. Suspirei alto. – Acredite. Estava praticamente perseguindo ele – tentei falar o mais amavelmente possível, mas acho que minha voz saiu irônica demais. O que ela não gostou. Apontou o dedo para mim e o balançou um pouco, num movimento brusco, pensando no que dizer. Soltou uma risadinha desdenhosa.
– Foi sua culpa – disse, como se tivesse chegado à uma conclusão. – Se não tivesse ficado todo: “Ah! Porque estou com calor! Ah! Por que estou com sede!” – fez uma imitação fulera de minha voz. – É tudo culpa sua! – e falou novamente, mais alto.
Olhei-a por um instante. Aí estava! Finalmente aconteceu! Eles começaram a me culpar... Não sei de onde veio, mas um risinho irônico saiu de minha garganta e foi aumentando de volume. Balancei minha cabeça. Realmente achei que podia ser diferente? Famílias são todas assim, não são? Sempre vai ter a descarga humana e, no caso, sempre serei eu. Ela bufou alto.
– Você não é da família – e, pelo tom dela, nunca iria ser – não sabe de nada.
Olhei bem em seus olhos, parando de rir. Não sei de nada? Ao contrário, sabia até demais. Gostaria de não saber tanto. Deixei o humor escorrer de meu rosto. Quem não sabia de nada era ela. Não sabia nem um décimo das coisas que passei com minha família de verdade, das coisas que encontrei dividindo meu corpo com Hound, de tudo o que fiz e nunca poderia me redimir.
Hound tinha razão. Nunca vai haver um lugar para mim. Não com os humanos, muito menos em uma família. Eu era um exilado. Assenti e me virei para ir embora. A distribuidora de socos entrou na minha frente. Suspirei e me preparei para ouvir mais porcaria. Olhei em seu rosto e congelei. Não me encarava com raiva nem recriminação. Olhava com pena e, de alguma forma, isso foi pior. Desviei os olhos e traguei saliva. Estava envergonhado. Fazia muito tempo que não ficava assim, mas me senti responsável por não me encaixar neste meio. Afinal, fui eu quem disse sim para o demônio.
– Lu... – Alana disse atrás de mim. – Deixe-o ir.
Ela hesitou.
– Vou encontrar vocês em casa. – Eu disse, ainda sem olhá-la.
Não pareceu muito feliz, mas ela se moveu me dando passagem, e eu fui embora.
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