A primeira coisa que percebi quando acordei foi o movimento. Passos ressoavam apressados pelo corredor, indo e voltando. Esfreguei meu rosto e olhei o relógio., 5h 30 min da manhã...A aula começava às 7h 30 min. Levava dez minutos para me arrumar, e vinte para andar até a escola – de acordo com Alma. Eu não precisaria acordar por pelo menos mais uma hora e meia. Suspirei alto e me espreguicei, não importava a que horas acordasse, ainda sentiria sono.
Joguei meus pés para fora da cama, apoiei meus cotovelos nos joelhos, e deixei a cabeça descansar em meus antebraços cruzados, repassando o sonho que acabara de ter. Geralmente eu não conseguia me lembrar deles, mas este foi diferente. As imagens rasgavam a minha mente, como sempre fazem as memórias que desejamos esquecer.
No sonho, ela me arrastava para as escadarias de uma igreja, enquanto eu derrapava na chuva e implorava para que me largasse. Meu estômago se revirou, e uma dor alucinante bateu, fazendo-me colocar a bile pra fora. Chegamos às portas da catedral, eu gritava tanto que tinha certeza que minha garganta iria arrebentar. Ela me largou no chão, era tanta a dor que eu não conseguia me mexer, e soltou umas quantas maldições que eu não compreendia na época, e então foi embora. Eu assisti o carro deles se afastando pela rua, desesperado, meu rosto se molhava por causa da chuva e das lágrimas. Eu gritava para que não me deixassem sozinho, e então desmaiei.
Eu havia sido deixado sozinho, sem voz e moribundo, para os padres me acharem pela manhã. Meu corpo estremeceu, só de lembrar como a igreja fazia eu me sentir. Eu fiquei preso na catedral por dois dias inteiros, quase morto, até que um deles resolveu me levar ao hospital, quando percebeu que as preces não estavam ajudando. Eu havia gravado na mente, o jeito com que o padre me olhava. Não podia me mexer, consequentemente não podia reagir, e aquilo foi mais assustador do que sentir a fome de Hound pela primeira vez. Por sorte, do hospital, eu fui direto para o serviço social.
Respirei fundo, meus olhos ardiam mas eu me recusava a chorar. Fazia quase dez anos que eu não derramava uma lágrima. Nunca mais deixei as lágrimas caírem, não depois daquele dia. Alana não era a única forte ali. Levantei-me e estralei os ossos, lembrando-me da noite anterior. Não sabia como me sentir em relação ao que aconteceu, nem como me comportar perante Alana quando nos encontrássemos novamente.
Coloquei a mesma calça do dia anterior e peguei uma muda de roupas no armário. Fui até a porta e olhei para o quarto atrás de mim, tinha a sensação de estar esquecendo algo. Abri a porta e estanquei. Alana estava parada à minha frente, com o braço direito levantado, preparado para bater na porta. Ela me encarou por um segundo, desconcertada, e então baixou o olhar. Seu rosto ficou vermelho, como um pimentão, e então desviou os olhos de meu peito nu para o lado. Reprimi a vontade de rir. Eu não era um dos caras mais bonitos do mundo, mas estava bem mais em forma do que a maioria dos moleques da minha idade. Ela limpou a garganta e voltou a olhar para o meu rosto, sua expressão estava em branco.
– Eu vim trazer seu uniforme da escola.
– Uniforme? – Enruguei o nariz.
Ela me empurrou uma pilha de roupas dobradas, e eu voltei para o quarto, para jogar a roupa que havia escolhido na cama. Quando apareci no corredor novamente, Alana retirava do armário uma toalha felpuda verde-limão.
– Toma – ela disse colocando o tecido nas minhas mãos. – Essa é a sua toalha. Pendure-a no varal depois de usá-la – ela se virou em direção à escada. – Ah! E tente não bagunçar todo o banheiro novamente, senão você que vai limpar. – E desceu as escadas.
Fiquei parado por um tempo e dei de ombros, se ela queria fingir que nada havia acontecido quem era eu para reclamar? Entrei no banheiro e tranquei a porta atrás de mim. Coloquei as roupas sobre a tampa da privada e a toalha em um gancho pendurado ao lado da porta do box. Olhei-me no espelho da pia, analisando minhas olheiras, nenhuma surpresa estarem piores. Tirei a calça e a cueca, e joguei-as no cesto de roupa suja. Entrei debaixo do chuveiro, abrindo a água quente. Estava acordado o suficiente, não havia necessidade de água fria, podia me dar o luxo de relaxar por uns instantes.
Quando terminei o banho, sentia-me mais leve, minhas costas estavam quentes e vermelhas por causa da temperatura elevada da água. Peguei a toalha do lado de fora e me sequei antes de sair do Box, escovei meus dentes rapidamente, sem encarar o meu reflexo. Coloquei uma cueca limpa e peguei a primeira peça de roupa da pilha. Segurei a camiseta branca de algodão na altura dos olhos, uma estampa azul e laranja cobria todo o lado direito e o logotipo da escola estava bordado no peito esquerdo. Fiz careta. Dava para ver aquela blusa de dentro de um avião, de tão chamativa. Porém, suspirei e a vesti. A calça do uniforme não era tão ruim, feita de taquitel azul marinho tinha um zíper abaixo do joelho para transformá-la em bermuda no calor. Enfiei as pernas nela e agarrei minha toalha, enquanto saía do banheiro, calcei o têni que estava no meu quarto e desci para o primeiro andar.
Na cozinha, Léo estava sentado à mesa com cara de sono. Alma preparava sanduíches na pia e Alana os embrulhava. Soltei um bom dia e fui para a lavanderia, às minhas costas, pude ouvir como respondiam ao meu cumprimento. Passei pela porta de grade e entrei no ar gélido da manhã, depois de pendurar minha toalha no varal, voltei para dentro da casa e me deparei com um bolo coberto de chantily e raspas de chocolate.
– Íamos cortá-lo ontem – Alma falou, um pouco desconcertada. – Mas já que não deu certo, decidimos guardar para hoje de manhã. –Senti-me culpado.
– Valeu... – Respondi sem graça. Alana me entregou uma faca e cortei a maça macia e branca. Cada um pegou um pedaço e comemos em silêncio.
Alana terminou antes e saiu. Quando Léo acabou com o seu segundo pedaço, Alma pediu para que trouxesse o material escolar que compraram para mim. Ele saiu, e Alma suspirou, ela parecia cansada.
– Desculpe – ela disse. – Alana está encarando tudo isso muito mal – arrisquei um meio sorriso. – E com tudo o que esta acontecendo na cidade... – Deixou a frase sem terminar. Franzi o cenho.
–
– O que está acontecendo?
– Crianças sumindo, à cada semana somem mais. – Ela disse preocupada. – Até agora foram dez ao todo, sete corpinhos foram encontrados... – Estava perturbada. Não havia conversado com ela depois de encontrar Léo, mas dava para perceber o quanto ela havia sofrido também.
Um silêncio constrangedor caiu entre nós, e ele só foi quebrado quano Léo entrou arrastando uma mochila preta e vermelha. Peguei-a, coloquei sobre a mesa e abri. Dentro havia um caderno universitário de dez matérias, um estojo e uma agenda.
– Os livros ainda não chegaram – Alma explicou. – E, conforme for precisando das coisas, compraremos mais material – assenti e ela me entregou um sanduíche embrulhado em papel filme que fui enfiando em um dos bolsos externos da mochila, enquanto me despedia e saía do cômodo.
∴
Como Alma havia previsto, levamos cerca de vinte minutos para chegar ao colégio. Ele era constituído de três prédios, um pátio com cantina, uma quadra e um parquinho para as crianças pequenas, tudo rodeado por muros de concreto, que precisavam de uma boa pintura. Passamos pelos grandes portões de ferro, pintados com as cores da escola, e rumamos para o menor dos prédios. Ele possuía um só andar, com as paredes brancas decoradas pelos trabalhos dos alunos. Pude ver um grupo de crianças brincando por uma janela próxima, enquanto a aula não começava. Aquele era o prédio da Pré-escola.
Alana se despediu de Léo com um beijo, e me conduziu por um caminho coberto, que ligava as unidades. Passamos por um prédio com dois andares e uma decoração um pouco menos infantil, mas ainda bem alegre, fiquei conhecendo o prédio como o do Ensino Fundamental. Entramos pelas portas de vidro do edifício maior, tinha três andares eera mais estreito que os outros, mas o andar extra compensava. Ela me levou por um corredor apinhado de gente que conversava e ria, tentando ocupar o máximo de tempo possível fora das salas de aula. Esse era o prédio do Ensino Médio. No último andar, paramos em frente a uma sala de paredes de vidro.
– Aqui – ela me disse, entregando um envelope pardo. – Mamãe já cuidou de tudo, só falta entregar essa papelada que estava faltando – e voltou a andar, me deixando para trás.
– Hei! –Chamei e ela se voltou para mim, assim como mais outras cinco pessoas. – Faço o quê, depois?
– Se vira! – Ela deu de ombros e foi embora, misturando-se com a multidão.
– Que maravilha – resmunguei, antes de empurrar a pesada porta de vidro, e entrar no ar condicionado frio.
Uma garota de uns vinte e dois anos estava sentada atrás de uma grande mesa cinza. Um monitor ligado, exibindo o descanso de tela a escola, estava acomodado no canto esquerdo mais distante da mulher, dando espaço aos montes de papéis empilhados que ela conferia. Aproximei-me e ela levantou a vista. Tinha o cabelo castanho, com tantas luzes que parecia até loiro, preso em um rabo de cavalo alto. Seus olhos eram escuros, emoldurados por sobrancelhas metodicamente modeladas, era possível identificar todas as camadas de maquiagem que foram passadas para esconder qualquer imperfeição possível na pele. Usava um terninho preto com uma blusa branca de gola bufante por baixo. Ficamos em silêncio por um instante, até que ela deu um salto.
– É você o novo aluno! – Assenti, com um pouco de receio. – Claro, claro que é! – Disse, enquanto procurava apressada pelos papéis à sua frente, resmungando com o cenho franzido de consternação. – Desculpe – ela falou de repente. – é minha primeira semana no emprego, ainda estou me ajustando –. Olhei para o envelope que tinha nas mãos.
– É isso que está procurando? – Disse, estendendo o pacote para ela, que arregalou os olhos. Agarrou-o de minhas mãos e olhou dentro. Deu graças a Deus e soltou um aliviado suspiro. Escandalosa foi o que pensei.
– Er... –Arrisquei. – Poderia me dizer em que sala vou ficar, por favor?
Ela se sobressaltou novamente, deu uma olhada em volta, mordendo o lábio inferior, e levantou.
– Sente-se aí – indicou quatro bancos alinhados à parede. – Lembrei que a diretora queria falar com você... – E atravessou a porta na parede de dry wall atrás da mesa.
Aproveitei o tempo sozinho para tentar chamar Hound, que ainda não tinha acordado. Fiquei sussurrando no meio da secretaria, esperando que não pudessem me ouvir da outra sala, caso contrário, achariam que era um biruta que falava sozinho. Hound não deu nenhum sinal de vida, eu teria que dar uma bronca nele depois. A porta se abriu e a moça voltou para a sua mesa.
– Você pode entrar –disse sorrindo e indicando a sala com a cabeça. Ela podia ser escandalosa, mas até que era... Agradável.
Entrei na sala rezando para que Hound acordasse ou, o que era mais provável, para que a garota da maçã não aparecesse. A sala era pequena e amontoada de arquivos, uma mesa de madeira se encontrava no meio do cômodo com um monitor e várias pilhas papéis. Uma senhora de uns sessenta anos estava parada em frente à mesa, observando-me. Seu cabelo era tingido de vermelho, penteado de forma que me lembrava um capacete. Quase não dava para perceber seus olhos claros, escondidos pelos óculos com armação de tartaruga, usava um vestido roxo, de mangas compridas, que ia até o tornozelo, meia-calça bege e uma sapatilha de veludo vinho. Seu rosto, pesadamente maquiado, estava sério e sem expressão. Indicou com a mão adornada de bijuterias para que eu me sentasse na cadeira à frente da mesa, e sentou-se na que ficava atrás, apresentando-se como: Diretora Ruti Piccoli.
– Então, senhor... – Fez uma pausa, enquanto lia meu nome na ficha. – Jessé Weber Oliveira. – Fiz uma careta.
– Eu prefiro que me chamem de Jesse. – expliquei apressadamente, interrompendo-a. – Sabe? Como em Jesse James...
Ela olhou para mim, avaliando-me. Eu devia ter ficado de bico calado. Seu olhar era de desdém causando-me desconforto.
– Jesse James? – ela perguntou, acenei com a cabeça. – Como o “bandido”? – Minha mente ficou em branco, eu realmente nunca havia pensado daquela forma antes. Fiz outra careta, teria que parar de me apresentar assim. – Muito bem, Sr. Jesse – pronunciou meu nome como uma ofensa. – vou ser franca: li sua ficha. – Disse apoiando seus cotovelos na mesa. – Não admito marginais em minha escola, Sr. Jesse – de alguma forma, ela fazia meu nome parecer uma agulha entrando em meus ouvidos, sentia vontade de me encolher diante de seu olhar. Como diabos velhinhas briguentas conseguem ser mais assustadoras que lobisomens na lua cheia eu não sei, mas tinha certeza de que tomaria cuidado para não irritá-la muito. – Um escorregão, Sr. Jesse. Um escorregão sequer e está fora. Entendidos?
Acenei com a cabeça rapidamente, o que pareceu agradá-la. Ela sorriu com rosto satisfeito e se levantou indicando que a seguisse. Passamos pela desesperada secretária e seguimos pelo corredor, enquanto Sra. Picc... Desculpe, diretora Piccoli, apontava para portas ocasionais e dizia a função de cada sala: banheiros, laboratório, enfermaria, sala dos professores... Nada muito extraordinário. Saímos do edifício e nos dirigimos ao prédio do ensino fundamental. Fiz uma careta. Era para eu estar no primeiro colegial, mas, como havia reprovado o último ano, teria que cursar o 9º ano novamente.Suspirei, isso ia ser horrível. Paramos em frente a uma porta e a diretora virou para mim.
– Esta, Sr. Jesse, é a sua sala. Acho que não preciso acompanhá-lo, não é? – Acenei e peguei a maçaneta. – e Jesse? – Olhei para a mulher particularmente alta que era a diretora Piccoli. – Vou ficar de olho em você – tentei dar um sorrido forçado.
Ela balançou sua cabeça, pensativa, e se pôs a andar. Esperei vê-la desaparecer pelo corredor para entrar na sala na qual passaria o resto do ano letivo. Abri a porta rapidamente, como se tira um band aid, para não doer. Só com isso, já atrairia atenção o suficiente, mas, como se não bastasse, soltei um berro assim que pisei na sala.
Hound havia acordado. Acordado e berrado feito um doido na minha orelha. O que eu podia fazer? Ele nunca havia feito algo assim. Eu me assustei.
Olhei em volta para os rostos que me encaravam. Havia uns vinte alunos ali, todos me olhando como se fosse de outro planeta. Foquei no chão e andei até uma carteira desocupada, ao lado da janela.
Primeiro dia de escola e já era o doido da classe. Dava para ficar pior?
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