Desde o começo, minha primeira aula na nova escola parecia fadada ao fracasso. Minha entrada, um tanto escandalosa, não agradou em nada o professor que estava lecionando geografia. Eu odeio geografia, para que iria querer saber os tipos de solo e vegetação? E por que diabos eu deveria aprender sobre a capital de um país, lá nos quintos dos infernos, que eu nunca iria visitar? Bom, o Sr. Paulo parecia achar importante. Ele escrevia na lousa enquanto falava, dando ocasionais espiadas para a sala. e todas as vezes me flagrava olhando pela janela, o que me tornou o seu mais novo alvo de arremesso de giz.
Hound também não estava ajudando nem um pouco. Toda vez que o professor voltava sua atenção para mim ele rosnava e reclamava, me instigando a sair da sala. Falava tão alto que era quase impossível escutar todo o resto. Recostei-me na cadeira e bufei alto, embora não fosse minha intenção o som sair audível. Cabeças se voltaram em minha direção, inclusive a do professor, que veio se postar a minha frente com as mãos na cintura, em uma tentativa de parecer ameaçador. O que ele não era. Nem todos têm esse dom e sua aparência não ajudava. Ele era alto e magro demais, tinha o cabelo castanho meio calvo e os olhos, já grandes e esbugalhados demais, aumentados pelos óculos fundo de garrafa. Usava uma camiseta polo bege por dentro da calça jeans desgastada, muito grande para ele, que era presa por um cinto de couro marrom, para não cair. Admito ter sentido um pouco de dó, a princípio.
Ele me passou um sermão, que ouvi sem reclamar. Ao meu lado, Hound tremia de ansiedade e se ele não parasse de me aporrinhar logo, as coisas iriam piorar para o meu lado. Gato preto? Que nada! Experimente ter um cão do inferno inquieto por perto, isso sim traz azar.
Acho que nunca fiquei tão feliz em ter uma maldita campainha perfurando o meu tímpano. Hound começou a se acalmar logo após a troca de matéria, que trouxe para a sala um novo professor não muito mais digno de atenção do que o primeiro. Cada aula tinha em média de cinquenta minutos. Assisti a mais duas aulas de Matemática, na qual dividi o livro com uma garota chamada Thalita, que sentava a minha direita. Ela era pequena e morena -–sua aparência deixava bem clara sua descendência indígena – seu cabelo caía liso até os ombros, com uma franja tipo tigelinha. Eu até a acharia bonita, se não tivesse treze anos. Quase desejei a companhia do cão do inferno quando ela colou em mim, mas ele permaneceu parado perto da porta, atento ao movimento. Ele estava agindo de forma muito estranha, e isso estava me perturbando. Algo ia mal, e sempre que algo ia mal com Hound, as coisas iam ainda piores para mim.
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Foi com muito alívio que me levantei da carteira e sai para o corredor apinhado de gente assim que o sinal do intervalo tocou. Acho que Thalita me seguiu por um tempo, mas logo sumiu. Se me perdeu de vista ou simplesmente desistiu, Isso eu não sei, mas que ela me lançava olhares estranhos durante as aulas, isso eu tinha certeza. Cheguei ao pátio que os alunos do ensino fundamental e médio dividiam, e procurei por um lugar isolado, onde poderia falar com meu demônio a sós. Segui para um canto afastado, perto do muro exterior, e me sentei aos pés de uma pequena árvore. Tirei da mochila o sanduíche que Alma hvia feito, enquanto observava, ao longe, os alunos se amontoando ao redor da cantina, e comecei a desembrulhá-lo. Hound sentara a minha frente, observando meu progresso, sabia que estava chateado. Terminei de remover o papel filme e suspirei.
– Vai me dizer o que aconteceu ali? – Estava ficando cansado das coisas darem sempre errado comigo. Por que só eu tenho que aturar esse tipo de preocupação? possessão, claro. Ele olhou para mim por uns instantes, e então suspirou alto.
– Acho que seu novo professor é um compactuado recente. – Eu apenas encarei de volta.
– Um o que?
– Ele fez um pacto com um demônio – disse, bufando. – Apesar de eu não saber com quem, exatamente. – Ele explicou como se não fosse nada. – Pensei que talvez o demônio contratado ainda estivesse por aqui.
– E isso é ruim? Ele não seria, tipo... Seu parente ou algo assim? – Disse em dúvida. Nunca havia encontrado um contratante antes.
– Não – ele pensou um pouco mais. – Bom... Talvez, de certa forma, mas isso não importa – disse se levantando nas quatro patas. – Temos que ir embora. Agora.
Isso era incomum, Hound já havia estranhado certos lugares fazendo com que eu os abandonasse rapidamente, mas nunca desse jeito. Sempre foram pequenas sugestões, nada tão explícito. Mas, até ai, nunca havia me aproximado tanto de um contratante, não conscientemente. Hound não omitiria um ser noturno de mim, era perigoso demais ficar ignorante da presença deles.
– Contratantes são raros?
– Não, estão por toda parte. Por quê?
– Então como foi que nunca cruzamos com um antes? – Eu já havia visto todo o tipo de seres noturnos na minha vida, mas nenhum outro demônio que não fosse o cachorro infernal dentro mim. – Do que estamos fugindo Hound? – Perguntei sério, mais jogando um verde que outra coisa. Ele desviou o olhar e resmungou tenso. – O que está acontecendo?
– Acredite garoto, você não vai querer saber. – Ele olhou nos meus olhos com uma expressão que dizia tudo. Estávamos ferrados. Fiquei assustado, nunca antes havia pensado no porque de Hound aparecer na minha vida pedindo para usar meu corpo, mas agora parecia importante. Ele estava fugindo de algo e, seja lá o que fosse, se podia espantar Hound, podia fazer o inferno que quisesse com um humano, mesmo um possuído. Engoli em seco, me preparando para a próxima pergunta. Ia para o inferno e não queria saber o que me esperava lá, mas não tinha mais certeza se a minha hora estava chegando antes do previsto.
– Jesse! – Ouvi chamar, mas não desviei minha atenção de Hound, até que a pessoa chegou ao meu lado. Olhei para cima e encontrei Camila em seu uniforme escolar. – Quase não te vejo aí! Era essa a ideia, pensei
Mais um coro de vozes soou ao fundo, e olhei além dela. Saindo da multidão, vindo em nossa direção, estava Alana e mais três meninas que vinham em seu encalço, olhando para mim e soltando risadinhas. Era só o que faltava, pensei, já cansado. Sabia que Hound não voltaria a tocar no assunto e negaria qualquer investida minha. Havia perdido minha chance.
– E não é que é ele mesmo! – Alana disse ao se aproximar. – Você tem ótimos olhos Camila! – As garotas soltaram risadinhas. Eram um tanto comuns, bonitinhas, mas bem comuns.
– Eu nunca me engano! – Camila disse e olhou para mim, como se repensando a afirmação.
– Vamos na quadra olhar os garotos jogarem? – Uma das garotas, a loira, perguntou a Camila, que olhou para mim novamente.
– Deixa ele! – Disse Alana. – Ele não vai querer olhar os garotos jogarem. – Ela parou para pensar um pouco. – Pelo menos eu acho que não. – Todas olharam para mim e me engasguei, e tossi um pouco.
– Não – disse apressadamente. – Prefiro ficar por aqui mesmo – Camila olhou em volta.
– Sozinho? – Dei de ombros. Não estaria realmente sozinho, apesar da companhia não ser muito agradável.
– Então? Vamos? – Voltou a incentivar a loirinha. Camila pareceu indecisa. Comecei a comer meu lanche, esperando que meu desinteresse a fizesse seguir as amigas.
Fez-se silêncio por um instante, Alana e a loira esperavam Camila, enquanto as outras cochichavam e eu comia. Até que Hound ficou alerta e levantou o focinho, farejando o ar. Não demorou muito para que o perfume floral me alcançasse, fiquei tenso. Ela está aqui, realmente está aqui. Admito que esperava que a ameaça fosse só isso: uma ameaça. Respirei fundo, tinha que ficar calmo, reações exageradas podem ser interpretadas como medo. Embrulhei o restante de meu lanche, coloquei-o na mochila e já estava me levantando, quando as duas fofoqueiras perceberam a presença do novo elemento. A menina da maçã vinha caminhando em nossa direção, flanqueada por duas garotas com porte de modelo. Seu uniforme estava customizado com lantejoulas e miçangas, era realmente um bom trabalho. As três andavam como se estivessem em uma passarela, as duas fofoqueiras se afastaram, abrindo espaço para que as recém-chegadas parassem atrás de Alana.
Minha nova irmã se virou, enfrentando a menina e Camila assumiu o lugar à direita dela, dando suporte. A dúvida, que antes havia em seu rosto, agora substituída por superioridade e determinação. A menina com o excessivo cheiro de flores curvou para o lado e me olhou, claramente ignorando Alana.
– Olá de novo! – Ela disse sorrindo. – É Jesse, não é?
– Essa é a garota de quem me falou? – Olhei para Hound com o rabo do olho e acenei.
– De onde você conhece a Priscila? – Me voltei para Alana, que tinha o cenho franzido, assim como Camila, que estava com os olhos apertados como duas fendas, me ameaçando silenciosamente.
– Encontrei ela na rua ontem, enquanto andava pela cidade. – Dei de ombros.
– Ele estava tão faminto! – Priscila fez biquinho. – Não resisti em alimentá-lo. – Ela piscou para mim, e suas companheiras soltaram uma daquelas risadinhas agudas que me dão nos nervos. Fiz uma careta.
– Obrigado pela maçã. – Disse a contragosto.
– Deixa disso! – Abanou com as mãos. – Estou mais do que disposta a fazer tudo o que for necessário. – Disse, e me lançou um olhar cheio de significado.
– Succubus. – Disse Hound ao meu lado.
– Percebi – disse baixinho, o que levou Alana a olhar para mim, com uma bronca silencisa nos olhos. Ela tinha escutado, mas entendido errado.
– Então porque diabos precisa de mim! – Hound explodiu, rosnando. Acho que tê-lo feito acordar cedo e o stress da aula de geografia tinham deixado seus nervos no limite, o suficiente para fazê-lo perder o controle. Ele tentou se aproximar de Alana, mas fiquei entre eles, o que infelizmente, me colocou mais perto de Patrícia, que soltou uma risadinha e tentou pegar meu braço.
Tirei meu braço e me afastei dela, sem liberar o caminho para Hound. Tive que manobrar um bocado, mas não iria dar espaço para o cão. Qualquer passo em falso poderia lhe dar a desculpa para pular em Alana. Ela havia sentido a lambida de Hound, não queria nem saber o que iria sentir se pulasse nela. Camila me olhou estranho, mas tentei não me importar. A succubus me olhou zangada, e então virou para Alana.
– O que foi docinho? – perguntou para mim, sem tirar os olhos de minha nova irmã. – A cadelinha aqui está te monopolizando? – Um sorriso lascivo surgiu em seu rosto.
– Que!? – Alana gritou. – Cadela aqui é você! Prostituta de esquina!
– Se enxerga! – Camila apoiou.
Aquilo estava começando a ir pelo mau caminho. Tinha que fazer algo, não podia deixar uma briga estourar ali, principalmente com Hound tão possesso e querendo extravasar. Soltei um bufo. Hound possesso, quão irônico isso não era!?. Priscila ficou vermelha de raiva e acho que eu tinha acabado de piorar as coisas.
– Olha aqui, peruasinha... – Ela disse estreitando os olhos para Alana. – se manda daqui, ou eu vou fazer você conhecer o inferno!
Foi automático, agarrei seu braço e a virei para mim. Aquela podia ter sido uma ameaça vaga para os humanos, mas sabia bem o significado real por trás dela. Todo o humor sumiu de meu rosto, olhava para a succubos com olhos vazios. Minhas mãos apertavam sua carne e, se fosse humana, já estaria com o osso quebrado. Ela olhou para mim horrorizada, estava com medo, eu podia sentir o cheiro, e estava gostando. Senti Hound se aproximar de mim, encorajando-me a fazer o que queria, a não me importar com as pessoas no pátio. Podia enfiar a mão por seu peito e arrancar seu coração, ela nem teria chance de lutar, de trocar de forma para algo mais forte. Senti o poder fluindo do cão, alagando minhas veias, seria tão fácil. Os cantos de minha boca começaram a subir dando forma a um sorriso ferino.
– Jesse! – Olhei para o lado, e me deparei com Camila me olhando com receio. Sacudi a cabeça para clarear o pensamento, estava respirando pesado, soltei o braço de Priscila e me afastei uns passos.
– Para uma pirralha magrela, até que você tem coragem – eu disse, provocando um risinho das amigas de Alana. – Tenho certeza de que minha irmã dá de dez em você.
Priscila arregalou os olhos, mas logo controlou sua expressão. Olhou para Alana, e então novamente para mim.
– Não parecem irmãos. – Ela disse abaixando os olhos, admitindo o erro.
– É adotado. –Alana se apressou em dizer, me olhando de um jeito estranho.
Passou-se um momento de silêncio, ficamos um olhando para cara do outro. Ao meu lado, Hound rosnava e rogava que atacássemos, eu estava mais calmo, mas a descarga de adrenalina em antecipação à luta não tinha passado. Quase perdera todo o controle de Hound, e ainda não tinha recuperado totalmente. A succubus deve ter percebido isso, pois se afastou ainda mais.
– Eles são minha família, estão sob minha proteção. – Inclinei-me em sua direção e sussurrei em seu ouvido. Ela respirou fundo e me olhou nos olhos, confiante.
– Eles também são uma fraqueza, cachorrinho. – Respondeu e se afastou, caminhando para a multidão, me deixando para pensar no que disse. Ela ia ser um problema e, de repente, eu já não estava mais tão certo de que deveria ter parado Hound, apesar de tudo...
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