Desci as escadas com o cabelo ainda molhado. Havia tomado um banho frio. Mas não adiantou tanto quanto eu esperava. A diferença era que, agora, meu corpo estava ainda mais dolorido. Cheguei à cozinha e senti o cheiro de molho de tomate. Os dois irmãos estavam sentados na pequena mesa, cada um com um prato cheio de macarrão. Alana olhou para mim e apontou o fogão com a cabeça. Peguei um prato vazio no escorredor, e destampei a panela solitária que continha o molho de carne.
– O macarrão esta no tupperware, dentro do fogão. – Alana indicou. Voltei a tampar a panela e peguei o recipiente com o macarrão. Me servi e sentei ao lado de Léo.
– Você demorou. – Alana começou. – Não ia guardar para você. Se acabasse, ia ficar sem. – Ela estava carrancuda. Por que? Nem ideia.
– Fui tomar um banho. – Disse, enquanto dava a primeira garfada.
– Hum. – Acho que ficou sem assunto, pois não disse mais nada.
Comemos em silêncio por um tempo. Só abrindo a boca para pedir que passasse a bebida ou, mais frequentemente, para mandar Léo mastigar de boca fechada. Léo terminou primeiro. A irmã retirou seu prato, depositando-o dentro da pia, e o mandou fazer seu dever. Não muito depois, foi Alana quem se levantou para colocar seu prato na pia. Parei de comer e esclareci a garganta. Ela se virou para mim, interrogativamente. Vacilei por um instante. Parecia brava. Ainda não conseguia entender suas mudanças de humor. A principio, achei que fosse bastante obvio que ela me odiasse. Depois, pensei que já tinha melhorado em sua opinião. Agora, não sabia mais nada. Olhei para seus olhos, e achei melhor pedir ajuda de uma vez.
– Bom... – Começo ruim. – A diretora falou comigo e... – Ela levantou uma sobrancelha. – Olha. Ela me ofereceu um teste no final do ano. Com a matéria da oitava série. Se eu passar, ela disse que poderia me adiantar para o primeiro colegial. – Fiquei olhando para Alana, esperando uma resposta.
– Como um supletivo? – Ela perguntou e eu acenei com a cabeça, afirmando. Ela acenou também. – E o que eu tenho a ver com isso? – Ela perguntou, encostando-se na pia. Me mexi na cadeira, desconfortável.
Não era do meu feitio pedir ajuda.
– Vou precisar de ajuda? – Eu disse em forma interrogativa. Ela suspirou alto.
– Eu posso tentar. Mas não sou boa professora. – Deu de ombros. – Se eu fosse você, pediria para outra pessoa.
– Para quem? – Eu disse e abri meus braços, em um gesto de impotência. – Já lhe ocorreu que não conheço ninguém por aqui?
– Você conhece a Camila, tão bem como conhece a mim. – Ela deu de ombros novamente.
Anui com a cabeça e voltei a comer. Isso ia ser difícil. Pelo menos, Camila não parecia o tipo que iria se irritar comigo com qualquer coisa, como Alana fazia. Já era algo.
– Ah! – Alana chamou minha atenção, antes de sair do cômodo. – Antes que me esqueça. Hoje é a sua vez de lavar a louça. – Dito isso, ela se foi.
Fiquei escutando seus passos subirem as escadas. Terminei de comer, e fui olhar o que me esperava na pia. Não era tão ruim. Se eu podia rasgar um cara com as mãos, também podia encarar o molho de tomate dos outros. Fiz uma careta. Era por isso que gostava de comer fora. Eu sempre dava um jeito de pular a minha vez com a louça no instituto. Acho que não ia ter a mesma sorte aqui. Respirei fundo e abri a torneira.
∴
Quando terminei de lavar o que estava na pia, meus dedos estavam enrugados. Enxuguei meus braços, que estavam molhados até o cotovelo, e sai da cozinha. Léo estava sentado na mesa de jantar, com livros e cadernos espalhos pela metade da mesa que ocupava. Do outro lado, estava um jornal, ainda enrolado dentro do saco plástico dos entregadores. Senti vontade de lê-lo. Que tipo de noticias uma cidadezinha como aquela teria? Queria abrir e ver se havia alguma informação de São Paulo. Mesmo que fosse pouco provável achar algo a respeito da região, muito especifica, que eu queria. Fui até a mesa e peguei o jornal nas mãos.
– Posso ler? – Perguntei a Léo. Que levantou sua cabeça e olhou de mim para o jornal algumas vezes.
– Se quiser. – Ele disse como se isso fosse estranho. Nada incomum um garotinho de cinco anos não achar um jornal atraente.
Lancei-lhe um sorriso e fui até a sala. Sentei no sofá de dois lugares, retirando o papel de seu embrulho. Desdobrei o periódico e parei em seco. A foto de um garoto ilustrava a primeira pagina. Reconheci-o como sendo um dos amigos de Léo, do estranho dia no parque. Acima da foto, em grandes letras garrafais, estava o titulo da matéria:
Somem mais duas crianças em Montes Solares.
Olhei por cima do ombro, para meu novo irmão que rabiscava algo em uma folha sulfite. Será que ele sabia que seus colegas haviam sumido? Eu devia perguntar se ele sabia de algo? Voltei a olhar o jornal em minas mãos. A matéria relatava como os pais dos garotos perceberam seu desaparecimento, como a policia estava se esforçando, etc.
Agora eu sabia quem era a succubus da cidade. E quem melhor para ter informações, que uma prostituta do inferno? Teria que fazer uma visita a Priscila. O problema era que não sabia bem em que porta bater. Decidi que iria procura-la aquela mesma noite. Mais garotos sumiram. Garotos muito próximos de Léo. Não estava gostando nada disso. Voltei a guardar o jornal dentro do saco plástico e levantei. Se o pequeno soubesse de algo, mesmo que ele não achasse útil, seria bom eu descobrir. Respirei fundo e me sentei a seu lado.
Passamos o resto do dia conversando. Eu tentava descobrir o que ele sabia, ou pensava que sabia, sem ser obvio demais. Aparentemente, seus amigos faltaram hoje na escola. O que já estava ficando comum para ele. Aquela era a única escola da cidade, algumas crianças estudavam em São Paulo, mas não a maioria. Com o sumiço contínuo dos filhos das pessoas, não era de se estranhar que Léo conhecesse vários dos desaparecidos. Também perguntei sobre a escola e os professores, tentando parecer sociável. Terminei desenhando homens palito em uma folha de papel que Léo me deu. Talvez eu tenha sido sociável demais. Não era muito bom desenhista, tanto, que até os desenhos de um garoto da pré-escola eram melhores que os meus.
Estava fazendo careta, enquanto comparava meus desenhos com os de Léo, quando escutei o motor do carro de Alma entrando na garagem. Levantei a cabeça, atento a outros sons. De repente me senti muito parecido com um cão de família, que fica pulando no portão e abanando o rabo quando o dono chega. O pensamento me gerou outra careta. Olhei pela janela, e constatei que já tinha anoitecido. A porta de vidro da cozinha se abriu, e o cheiro de esfiha invadiu minhas narinas, inconfundível.
Não demorou muito para que todos estivessem reunidos na cozinha, atacando a comida como lobos esfomeados. Logo descobri que não foi só comida que Alma havia trazido. Depois de todos já estarem bastante estufados de esfihas de carne e queijo, Cada um de nós pegou um grande brigadeiro, que Léo jurou ser o mais gostoso da cidade, e fomos nos sentar na sala. Alana foi colocar o filme que Alma alugara no DVD. Fazia muito tempo que eu não assistia a um filme. Eu não via muita televisão, geralmente apenas para consultar o tempo ou as noticias do dia, e também não era alguém que costumava ir ao cinema. Conclusão: já fazia uns bons dois anos que eu não assistia a um filme decente.
– Então, Jesse? – Alma começou – Como foi o seu primeiro dia na escola?
– Os garotos disseram que Jesse é louco. – Léo respondeu por mim. Engasguei com o brigadeiro. Tive que esclarecer a garganta várias vezes, e tomar quase metade da garrafa de refrigerante, antes da crise de tosse começar a melhorar. – Falaram que deu para ouvir o berro, lá do prédio do colegial! – Ele continuou animado. Alana tentava disfarçar uma risadinha com a mão, e Alma me olhava com uma interrogação na face.
Esclareci minha garganta mais uma vez.
– Bati meu dedão. – Disse a primeira coisa que me veio à cabeça. Alana ria com mais força agora, sem poder se conter. Encarei o copo que tinha nas mãos, tentando ignora-la. Foi ai que percebi. Onde estava Hound? Já era hora que tivesse acordado. E não é como se ele costumasse perder uma oportunidade de zoar da minha cara. Achei que talvez ainda estivesse bravo. Era bem provável que tivesse que leva-lo para caçar hoje também. Tanto para fazer em uma só noite. Ia estar todo moído pela manhã.
Alma pareceu aceitar minha resposta meia-boca, acho que não queria invadir minha privacidade, e Alana deu play no vídeo. O filme foi “A Pantera Cor de Rosa”. Acho que nunca ri tanto quanto naquela noite. Bom, não depois de Hound ter entrado na minha vida.
∴
Eram quase onze horas, quando nos retiramos para os quartos. Os Oliveira se despediram com beijos, mas preferi sair com apenas um “Boa noite”. Não dormi. Sequer troquei de roupa. Sentei na cadeira da escrivaninha, que eu havia posicionado de frente para a porta. Fiquei com os braços cruzados, apoiados no encosto a minha frente. Meus olhos seguiam fechados, enquanto eu prestava atenção aos sons. Não queria arriscar ser descoberto. Só sairia de casa quando tivesse certeza de que todos estivessem profundamente adormecidos.
Não demorou tanto quanto eu esperava. Duas horas depois de todos deitarem em suas camas já era seguro sair. Não hesitei. Fazendo o mínimo de barulho possível, passei por cima da escrivaninha e saltei pela janela. Cai no chão sem fazer quase nenhum ruído. Anos de pratica. Claro, o fator demônio, que aumenta as habilidades de meu corpo, também ajudava. Mas eu prefiro levar o credito assim mesmo. Andei rapidamente pelo corredor da garagem, e saltei a grade em uns poucos movimentos. Quinze minutos depois, eu já estava longe da casa dos Oliveira.
Parei em baixo de uma árvore, escondido nas sombras, e me pus a chamar por Hound. Cinco minutos depois, lá estava ele de cara amarrada. Olhava para mim como se quisesse me causar algum dano. Fiz uma nota mental para não deixar ele roubar muito do controle do meu corpo aquela noite. Quem sabe o que poderia fazer?
Esse negócio de possessão era um saco. E uma tremenda injustiça. Eu sentia todas as dores de Hound. Todos os seus desejos e sentimentos. Se ele ficava furioso, mesmo que eu estivesse calmo, meu sangue fervia com o dele. Tinha dias em que minhas emoções fugiam completamente ao controle. Já ao inverso, Hound podia saber o que eu estava sentindo, mas não era algo que tomasse conta dele. As dores também, ele não sentia nada que me machucasse. Eu podia quebrar as pernas, deslocar o braço e ter uma estaca enfiada na barriga que ele não repararia. E esse é outro motivo para não deixa-lo no total controle de meu corpo. Ele sairia lutando com todos os tipos de seres que aparecessem, e seria eu a agüentar as porradas.
A dor é um mecanismo de sobrevivência. Ela avisa quando estamos fazendo algo que nos prejudica, ou quando alcançamos o limite de nossos corpos. Teve uma vez, uns anos depois do contrato, que eu desmaiei durante uma luta. Não pude suportar a dor, ela chegou a um nível tão alto que obrigou meu cérebro a desligar. Acordei no hospital uma semana depois, com Hound me chamando de fracote. Eu poderia ter morrido ali, e o demônio só perceberia quando fosse jogado para fora de meu corpo. Depois disso, Hound concordou em parar de tentar assumir o controle.
Olhamos um para o outro por um tempo, esperando para ver quem desviaria primeiro o olhar. Fui eu. Não importa o que digam, você não consegue sustentar o olhar de um demônio. Ouvi Hound bufando e voltei a olha-lo. Ele estava com uma expressão divertida no rosto. Estava feliz por ter ganhado essa pequena batalha.
– Faça-me um favor, garoto... – Começou enquanto se espreguiçava. – Não me deixe nervoso, e não teremos problemas. – Ele me olhou com descaso. – Não peça um favor a um demônio se não pode pagar.
– Não foi um favor. – Eu retruquei enquanto ficava de pé. Ele não tinha nenhum direito de ficar bravo. E isso me enfureceu. – Foi mais como uma ordem.
Hound olhou para mim serio. Se não fosse pelo fato de ser incorpóreo, e não poder me fazer esse tipo de mal, achei que ele pularia em mim. Mesmo assim, os cabelinhos da minha nuca se arrepiaram.
– E o que te faz pensar que pode me dar ordens? – Ele perguntou em tom de ameaça. Se eu pedisse para Hound fazer algo por mim, ele faria, mas, agora que havia catalogado os pedidos como ordens, ele provavelmente se recusaria a fazer qualquer coisa. Iria transformar minha vida em um inferno maior do que já era. Respirei fundo.
– Não quis ofender. – Eu disse devagar. – Mas também não tenho, nem nunca vou ter, favor algum pra te pagar. – Continuei, ficado mais confiante. – Você que me deve por todos esses anos usando meu corpo.
– Unf – Hound soltou um risinho de escárnio. – Foi uma troca justa. Eu já lhe dei o que pediu em troca de dividir seu corpo. Se as coisas não saíram como queria, o problema é seu.
Eu poderia embarcar em uma imensa discussão sobre o contrato que fiz. E de como ele não me contou todas as implicações da entrada dele em minha vida. Mas não iria dar em lugar nenhum. Não se tenta ganhar de um tubarão a nado. Discutir sobre política com um demônio é a pior coisa que alguém pode fazer. Acredite, eu já tentei.
Respirei fundo mais algumas vezes. Me acalmando. Tinha um trabalho a fazer. Achar a succubus e espremer tudo o que ela soubesse sobre as crianças desaparecidas. Olhei nos olhos amarelos de Hound. Não importava mais o que fiz no passado. Não importava mais o que me tinha sido omitido. Eu só tinha que pensar no presente agora. Caso contrário, ia acabar morto.
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