Rodamos a cidade inteira, mas nem sinal de noturnos. O que era muito estranho, uma vez que eles costumavam preferir morar perto dos humanos. Algo como “ter lanche da meia noite sempre a mão”. Checamos até os arredores de Montes Solares, mas nem mesmo a tal succumbos pudemos sentir. Estava começando a desistir, quando achamos algo interessante. Eu vinha descendo uma rua escura, ladeada de casas de muros baixos e grandes jardins, quando Hound se retesou a meu lado. Havíamos entrado em um acordo silencioso de não nos falarmos mais aquela noite, mas não achei que iria durar mesmo. O enorme cão farejou o ar por uns instantes, enquanto eu olhava em volta, procurando algo fora do normal. Hound girou e voltou pela rua, até onde nossa conexão permitia. Parou e se virou para me olhar, esperando que eu o seguisse.
Antes, eu não pensaria duas vezes antes de segui-lo. Estúpido, eu sei. Confiar tão cegamente em um demônio não é muito aconselhável, mas, afinal de contas, estávamos juntos nessa, não? Olhei ao enorme cão vermelho que entrara em mim. Não, acho que não. Hound nunca está do lado de ninguém alem dele mesmo. Dei-lhe as costas e continuei andando, escondido nas sombras.
Não dei mais que uns cinco passos, antes que Hound me bloqueasse a passagem.
– Ele esta mais à frente. – Ele disse em um tom sombrio. Olhei em seus olhos e dei de ombros.
– Imaginei que fosse algo assim. – Pensei por um instante. – A menos que outro houvesse aparecido.
Hound fez uma careta, enrugando seu enorme focinho em desgosto. Suspirei alto. Não poderia ficar fugindo para sempre de qualquer jeito. Iria viver ali por um tempo, e aquele ia ser meu professor. Não me custava nada dar uma espiada por entre as janelas. Melhor que eu conhecesse os segredos sombrios do cara antes do que depois. Não queria ser pego desprevenido.
– Vamos. – Eu disse e recomecei a andar. – Eu estava querendo fazer uma visitinha para ele de qualquer jeito.
Não foi difícil encontrar a casa do Sr. Machado, mesmo Hound não tendo se manifestado. Poucas casas ainda tinham suas luzes acesas, e a casa do professor era uma delas. Uma luz amarela se filtrava pelas finas cortinas de todo andar de baixo, deixando uma branda iluminação pelo jardim. O segundo andar também tinha a luz acesa em alguns cômodos, mas não todos. “Quase como se tivesse medo do escuro” pensei, dando um meio sorriso irônico. Pulei o pequeno portão e me esgueirei até debaixo de uma das janelas. Hound fez sons de impaciência, sempre lançando uma olhar para suas costas, desejando fugir dali. Franzi o cenho. Por ser o que era, não imaginei que fosse tão covarde. Talvez não fosse. Estava começando a me indagar se eu realmente deveria me afastar dali, quando as vozes chegaram aos meus ouvidos. Estavam abafadas e distantes, como se estivessem em outro cômodo. Tive certeza de que, se não fosse por meus sentidos mais apurados, não as teria ouvido. Olhei pela janela e amarrei ainda mais a cara. O professor e uma mulher, mais ou menos da idade dele, de pele e cabelos claros, usando um vestido cor de pêssego com um casaquinho por cima, discutiam não muito longe de mim e, a julgar pelos movimentos das mãos e bocas, em alto e bom som. Não era para o som chegar tão abafado como estava chegando. Inspecionei a janela, e me dei conta que era bem mais grossa que as janelas normais, alem de não poder aberta. A prova de som. Porque diabos um professor de geografia de uma cidade pequena precisava de isolamento sonoro?
Passei para a janela do cômodo ao lado, para conferir se era somente a sala que era assim ou se a casa inteira estava isolada. Inspecionei o vidro e ai estava: a prova de sons. Voltei rastejando para onde estava o casal. Talvez, se me esforçasse o suficiente, pudesse entender do que estavam discutindo. Claro, a casa estar toda a prova de som era estranho, mas não poderia me ocupar de desvendar esse mistério naquela hora.
Olhei através do espesso vidro, apertando meus olhos enquanto me concentrava. Tentava ler os lábios, mas falavam rápido demais. Por fim, fechei os olhos e apurei os ouvidos. Pude distinguir algumas palavras, mas não tudo. Estavam falando algo sobre uma hipoteca, dinheiro sumido... Apertei meus olhos ainda mais fechados enquanto me esforçava por ouvir. Senti Hound se movendo inquietamente atrás de mim. Senti uma pequena pressão na nuca. Um incomodo, mas não o suficiente para ser uma dor de cabeça. Julguei ser pelo esforço de escutar. Exceto que, sendo assim, deveria ser nas têmporas, não?
– Jesse... – Ele sussurrou. Parecendo um pouco desesperado.
Virei-me para olha-lo. Por que sussurrava? Não era como se alguém o pudesse ouvir. Olhei a minha volta, procurando, mas ele não estava mais ali. “Filho da mãe” eu pensei “Voltou a dormir e me largou sozinho”. Bufei alto e senti enquanto meu rosto se enrugava em uma careta de desgosto. Ouve uma exclamação abafada atrás de mim, e me voltei para ver o que acontecia. Parei em seco. Dois olhos castanhos arregalados olhavam diretamente para mim. Droga, a mulher tinha me visto. Sr. Machado olhou em volta e agarrou um grande abajur de metal preto, liso e comprido como um bastão, que estava ao lado do sofá e se apressou para a porta, arrancando a fiação e derrubando um vaso de cima de um criado mudo. A mulher correu para o telefone que ficava em uma mesinha perto da televisão e se pôs a discar. Ouvi os trincos da porta da frente serem abertos. Droga dupla.
Me levantei e comecei a correr. Pulei o portão bem na hora em que o professor saia para o jardim. Não parei. Corri rua abaixo virei algumas esquinas. Não tinha a mínima idéia de para onde estava indo. Mas não podia parar. Os policiais não demorariam a chegar, e estariam procurando por um suspeito andando pelas ruas desertas de Montes Solares. Tinha de sair de vista. Avistei um amontoamento de arvores pelo canto do olho, quando passei por um cruzamento, e retrocedi. Talvez fosse um bosque. Hesitei por um instante, olhando de onde vim. Era, essencialmente, um garoto da cidade. Não gosto de me embrenhar no mato. “Que se dane”. Respirei fundo e corri para as arvores.
Protegi meu rosto com os braços quando entrei no mato, mas logo tive de baixa-los. Caso quisesse continuar correndo. Avançava o mais rápido que podia, abrindo caminho pelo mato e pulando raízes e pedras. A mata não era tão densa ali, mas dificultava o suficiente para quem não estava acostumado. Tropecei para dentro de uma clareira e parei. Apoiei minhas mãos nos joelhos, tentando retomar o fôlego. Levantei a vista e analisei o local. Tinha que voltar para casa. Podia passar a noite inteira me escondendo, ou até mesmo fugir da cidade. Mas não queria desistir. Não agora. E, se Alma me pegasse em uma de minhas saídas noturnas, tinha certeza que arranjaria problemas. Queria ser alguém de confiança. Mas não era. Não com Hound ao meu lado. Dei mais uma olhada nas arvores que cresciam ao redor, nas folhas amarelas que se amassavam no solo. Mas Hound não estava aqui agora.
Levantei meu rosto e inspirei fundo. Esperando sentir algum odor familiar. Nada. Passei minha mão pelo cabelo. Não tinha a mínima ideia de que direção tomar. Estava começando a considerar voltar pelo caminho do qual tinha vindo, quando a pressão na nuca voltou. Franzi o cenho. Não tinha porque minha cabeça incomodar. Não estava me esforçando em nada, nem usando os poderes de Hound. Esfreguei minha nuca, buscando aliviar a pressão. Mas esta só se fez mais intensa. Perdi o fôlego. Isso nunca havia acontecido comigo antes. Um arrepio subiu pela minha espinha e pôs meus cabelos em pé. Tinha algo errado. Tinha algo realmente errado ali.
Girei olhando mais atentamente para as arvores. Para o que elas poderiam estar escondendo. Tinha mais alguém ali. Me observando. A dor se fez mais aguda de repente, e quase cai de joelhos. Seja lá o que fosse aquilo, estava me fazendo mais fraco. Minha vista começou a embaçar e minha respiração ficou mais difícil. Estava me matando! O maldito estava me matando, e eu nem tinha colocado os olhos nele ainda! Procurei, desesperado, por alguém que pudesse atacar para me defender. Mas não havia nada lá. Nada tangível pelo menos. Senti que minhas mãos começavam a tremer, e decidi que não podia ficar mais nem um minuto ali.
Simplesmente escolhi uma direção a esmo e disparei. Os galhos e folhas cortavam a pele desprotegida de meu rosto e braços. Sentia o suor escorrendo por pela minha testa, e fazendo minha camiseta grudar nas costas. Minha respiração era difícil, parecia não entrar ar o suficiente, e meus movimentos estavam torpes, mas não parei de avançar. Fui de encontro com uma arvore, e me deixei apoiar por uns instantes. Ele ainda estava por perto. Podia senti-lo em cima de mim. Como uma presença opressora e gelada em minhas costas. “Oh meu Deus! Eu vou morrer!”. Engraçado pensar nisso agora. Apesar de sempre ter tido receios quanto a isso, nunca achei que ia me apavorar tanto. E, além do mais, quem sou eu para pedir ajuda ao todo poderoso? Não é como se ele costumasse atender aos condenados.
Eu estava quase desmaiando. Debruçado no tronco da arvore, com farpas entrando em minhas mãos. Foi quando, quase no mesmo instante em que um zumbido se apoderou de meus ouvidos, senti o cheiro de água fresca. Fiquei com sede. Sei que é estúpido, ficar com sede quando se esta morrendo, mas não é muito fácil de se raciocinar quando parece ter um compactador de lixo prensando sua cabeça. Me coloquei em movimento novamente e fui em direção ao aroma convidativo. Era minha visão que se deteriorava agora. As arvores iam sendo tragadas pela escuridão da noite, deixando nada mais do que silhuetas insubistansiais pelo meu caminho. Quando, finalmente, deixei de enxergar sequer borrão a minha frente, pensei estar sego. Foi agradável, o isolamento. Não ouvia, não enxergava. Meu corpo estava estranhamente leve, um pouco febril talvez. Estranhamente reconfortante. Como era bom tirar os pesos dos ombros, relaxar. Eu estava tão cansado. Senti meu corpo tombando. A sensação foi boa. Como em uma montanha ruça. Meu corpo dormente e intumescido deu boas vindas a ideia de deitar em uma cama de folhas fofas. Mas não foi bem em folhas que cai.
Os espasmos involuntários que a água gelada causou em meu corpo me acordaram, me arrastando de volta a realidade. Tentei tragar ar, desorientado, mas tudo o que consegui foi me engasgar e me desesperar mais. Minha mente havia voltado a funcionar a mil. Meu corpo estava dolorido como se tivesse levado uma baita surra. A situação parecia surreal para mim. Agitei os braços e pernas, tentando nadar em alguma direção, chegar em algum lugar. Senti a terra do fundo as minhas costas e me aprecei em dar um impulso para cima. Saltei para fora da água e me desequilibrei, voltando a afundar. Mexi meus braços, agitado, e consegui me por de pé. Mesmo que cambaleante. A água batia na minha cintura, a corrente suave ameaçava me derrubar. Eu estava no meio de um riu. Me arrastei até o que esperava ser a margem oposta da qual havia vindo, e me deixei cair na terra molhada. Tossi e cuspi água, aos poucos recuperando o fôlego perdido.
Rolei de costas e olhei para o céu estranhamente estrelado acima de mim. Já não sentia a presença a minha volta. Ou o aperto na nuca. Estava tudo quieto. Mas era a quietude do mato. Com seus pequenos roedores, aves noturnas e insetos fazendo seus ruídos. Ruídos que só agora percebi estarem calados quando parei na clareira. Olhei para a outra margem do riu. Água corrente. Seja o que for que tentou me matar não pôde atravessar a água corrente. “Que bom não ser um lago” pensei “Se fosse, agora estaria morto”. Vôlei a apoiar a cabeça na terra e fechei os olhos por um instante. Não estava em condições de me levantar no momento. Ainda não tinha total controle dos meus membros. “Bom, acho que não tenho escolha a não ser cochilar aqui um pouco...” meus pensamentos foram ficando nebulosos “Só espero não acabar acordando morto”. A tensão foi se esvaindo de meus músculos cansados por lutar pela sobrevivência. Até que minha mente também relaxou, e eu dormi.
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