Parecia que meu corpo havia sido atirado em um triturador de lixo. Cada pedaço visível, e alguns nem tanto, de mim doía. Despertei com uma horrível dor de cabeça e a sensação de estar coberto por uma espécie de crosta. Então me lembrei da noite anterior, e abri meus olhos. O rosto de Alana estava a centímetros do meu. Todo o ar que tinha nos pulmões se foi. O desespero me inundou. “O que eu fiz?”. Levantei meus braços para checar sua pulsação e --
– Ai!
Parei em seco.
– Você ta viva!
– Achou que eu fosse um zumbi?
– Você ta bem? – Perguntei enquanto me levantava e começava a procurar alguma ferida em seu corpo.
– É claro que sim! – Ela disse afastando minhas mãos. – Diferente de você, aparentemente.
Foi ai que lembrei de meu corpo dolorido. Senti náuseas e me inclinei para traz, procurando a parede com minhas costas, mas tudo o que consegui foi me estatelar no chão novamente.
– Você ta legal? – Alana perguntou, debruçando-se sobre mim. – Serio. Se você tem ataques de sonambulismo, deveria ter dito pra gente. – Devia parecer confuso, pois ela deixou aparecer uma expressão de consternação no rosto e me explicou. – Você ta com a roupa de ontem, ta com cara do pão-que-o-diabo-amassou e ta todo coberto com essa coisa azul... – Terminou gesticulando para mim. Levantei minha cabeça o suficiente para ver o sangue seco da ninfa cobrindo boa parte de minhas roupas. Fiz uma careta e deixei minha cabeça cair de volta. Estava realmente horrível. – O que é isso afinal de contas? – me voltei para Alana.
– Não vai querer saber.
Com muito cuidado, comecei a me levantar. Devagar e sempre. É o que diz o ditado, não é?
Logo nos primeiros degraus da escada me arrependi. Minhas juntas rangeram e os músculos protestaram. Tentei me segurar na parede, mas não foi o suficiente. Teria caído, se Alana não tivesse me segurado. Aos poucos, chegamos ao topo. Ela rodeava minha cintura com um braço, enquanto segurava no corrimão com a mão livre. O cheiro dela era fresco e limpo, rodeado de preocupação. Por um instante fiquei tenso.
– Você esta bem? – Ela perguntou me segurando com mais firmeza.
Estava prestes a empurrá-la longe e mandá-la correr, quando percebi a ausência de Hound. Verdade, o cheiro estava lá. Mas não passava disso. Um cheiro. Não sentia nenhum impulso doido de me aferrar ao pescoço dela. Sem o cão por perto, aquele cheiro chegava até ser agradável. Afinal de contas, não é todo dia que me dou ao luxo de ter alguém se preocupando por mim. Um sorriso quase surgiu em meu rosto. Quase.
Ela me encaminhava para o meu quarto, mas a parei. Tinha que tomar um banho antes, não agüentaria ficar com o sangue seco em mim por muito mais tempo. Posso ser sanguinário e frio quando preciso ser, mas não quer dizer que goste disso.
– Onde você pensa que vai? – Alana me perguntou franzindo o cenho.
– Banho. – Disse simplesmente.
– A, não. Você não vai. – Disse ela me puxando. – Você vai pra cama. Não sei o que aconteceu com você, mas não tem condições de se meter no chuveiro sozinho.
– Quer me ajudar então? – Não consegui segurar a resposta acida. O rosto dela se tingiu de vermelho, e ela me largou. Apoiei minhas costas na parede, por pouco não me estatelo no chão. E levantei a vista para ela.
Alana me olhava indignada. Bom, acho que acabei ofendendo seus credos puritanos sem querer. Mas o que posso fazer? O sarcasmo acabou embrenhando em minha alma, mais do que gostaria de admitir.
– Foi mal. – Eu disse sincero. Ela cruzou os braços e continuou me encarando irritada. – Olha, tenho que tirar isso de mim. – Disse olhando em seus olhos. – Eu só quero entrar no chuveiro e tirar isso de mim.
Não sei o que ela viu. Mas a fez hesitar. Ela descruzou os braços, e sua expressão era uma mescla de preocupação e desconfiança.
– Jesse... O que é esse negócio azul?
Estava prestes a tentar uma desculpa esfarrapada, quando Léo entrou em cena.
– É sangue de monstro! – Ele gritou entusiasmado. – É sangue de monstro, é sangue de monstro! – ele cantarolava sem parar. Fiquei tão chocado que não pude reunir palavras para fazer objeção. De tudo o que aquele garotinho podia ter chutado, ele acertou em cheio logo com o primeiro palpite. – Eu sabia! Eu sabia! Jesse é um super herói e foi lutar com os monstros a noite toda! Eu sabia! Ele é igual ao homem aranha!
Alana amarrou a cara e conduziu o irmãozinho relutante de volta ao quarto. Quando voltou, toda a preocupação fora substituída por raiva. Dei um suspiro resignado. Bom, não era nenhuma novidade ela estar brava comigo.
– Viu que fez! – Ela começou a brigar. – Agora ele vai ficar todo animado, até você decepcioná-lo de algum jeito. E eu sei que vai! E tudo por causa dessa... Dessa... – disse gesticulando para mim. – O que é isso?
– Cai no esgoto. – Disse e comecei a me arrastar para dentro do banheiro.
– Esgoto? – Ela me seguiu. – Você não fede a esgoto. Você fede a... – Parou e cheirou ao meu redor. – Você fede a lavanda. Lavanda e suor. Onde diabos você esteve?
Ignorei o falatório e sentei na privada. Fui tirando a camiseta, mas ela estava tão grudenta que acabou ficando presa. Impedindo que abaixasse os braços. Me contorci um pouco, mas o esgotamento acabou ganhando. Podia haver imagem mais ridícula? Um garoto, que supostamente deveria ser um dos seres mais perigosos perambulando por ai, derrotado por uma camiseta encharcada de sangue de ninfa.
Estava tão consternado, que não reparei no silencio repentino. Senti como duas mãos pequenas pegavam as bordas da camiseta e a puxavam para cima delicadamente. Suspirei de alivio e olhei para Alana. Que agora abria a torneira do chuveiro e checava a temperatura da água. Ela virou de frente para mim, e pude ver que seu rosto estava vermelho.
– Vou separar umas roupas e colocar do outro lado da porta. – Ela disse saindo. – Grite se precisar de algo. – Ela começou a fechar a porta, então pensou de novo e jogou minha camiseta dentro do cesto de roupas sujas. – Só para que saiba, não vou ajudar se estiver pelado. – Disse, voltando a seu estado carrancudo, e fechou porta.
Com dificuldade, tirei as calças. Mas decidi que talvez fosse melhor ficar de cueca. Só por precaução. Me arrastei para dentro do boxe e fiquei sentado debaixo do fluxo de água, que caia morna em meus ombros e nuca. Até aquele momento, não havia percebido como meu corpo estava frio. O choque de temperatura foi quase doloroso. Estremeci um pouco e relaxei. Respirei fundo e deixei a água fazer seu trabalho, levando embora todo o sangue. De olhos fechados, fui checando cada parte de meu corpo. Apesar de algumas escoriações e hematomas, que logo iriam desaparecer, não havia nenhum dano serio. Recostei-me na parede de azulejos, estremecendo novamente com o contato da parede fria com as minhas, agora quentes, costas.
Pensei em Léo. Ele havia acertado quanto ao sangue. Mas não era um herói, em realidade, estava mais para o vilão da história. Ninfas podem ser criaturas sobrenaturais, mas não costumavam matar ou ferir outras criaturas a menos que fossem ameaçadas. Já havia ouvido relatos de ninfas, dríades e náiades, sabotando construções e causando acidentes para defender seus lares. Mas a verdade, é que humanos causam mais danos a elas do que elas a eles. Quando se mata a arvore, ou destrói o rio ou lago, que esta conectada com a ninfa, ela morre junto. A grande verdade é que elas não são almas condenadas, mas espíritos da natureza. Se eu não tivesse um demônio alojado em mim, provavelmente teria sido deixado em paz. Bom, se não tivesse um demônio em mim, não estaria correndo desesperado pela floresta em primeiro lugar.
Tudo o que podia pensar naquele momento é que não era um herói, mas um assacino. Porém, não podia me dar ao luxo de ficar me culpando. Tinha que superar isso até a noite. Até Hound acordar. Não podia por tal arma psicologia em suas mãos – ou deveria dizer patas. Ele já tinha arsenal o suficiente contra mim.
Não sei quanto tempo fiquei ali. Mas devo ter apagado por uns instantes, pois acordei sobressaltado. Minha cabeça latejava, mas meu corpo estava bem melhor que antes. Não demoraria muito para que me recuperasse por completo. Há! As maravilhas de dividir o corpo com um demônio.
Fiquei em pé cambaleante, porem forte o suficiente para me manter sozinho. Fui até a porta e peguei as roupas que Alana separou para mim. As vesti sem me preocupar em me secar. Sai do banheiro cheio de vapor quente e caminhei para o quarto.
Estava já me preparando para entrar na cama, quando Alma apareceu n porta.
– Jesse! – Ele disse quando me viu. Entrou no quarto e colocou a mão em minha testa. – Como Ana disse, você esta com um pouco de febre. – Ela me empurrou para debaixo dos lençóis. – É melhor que fique em casa hoje. Eu já liguei para a escola e avisei.
Saiu do quarto por um instante, e logo voltou com uma xícara, um par de comprimidos e um termômetro nas mãos.
– Aqui. – Ela disse me passando a xícara, que continha um achocolatado morno, e os comprimidos. – Beba isso.
Enquanto eu bebia, Alma preparou o termômetro. Agitando-o para cima e para baixo. Fazendo o nível de mercúrio recuar ao ponto de inicio. Ela retirou a xícara de minhas mãos e pediu que colocasse o termômetro debaixo do braço.
– Eu já volto. – Ela disse e saiu novamente.
Uns minutos depois, ela voltou e pegou o termômetro para ler a temperatura.
– Err... – Eu tentei começar, enquanto ela girava o objeto entre os dedos, tentando achar um foco através dos óculos que usava. – Sem querer incomodar... Mas a senhora não se atrasar para o trabalho?
Alma sorriu para mim.
– Não se preocupe com isso. – Ela disse alisando meus cabelos. – Sua febre não esta muito alta, acho que vai ficar bem. – Fez com que me acomodasse melhor na cama. – Eu terei que sair agora, mas pedi que nossa vizinha, a Sra. Ferrarezi, viesse aqui e desse uma olhadinha em você. Alana irá voltar na hora do almoço, e então poderá assumir o comando... – Por um instante eu vi um brilho de arrependimento e orgulho misturados em seus olhos. – Não se preocupe. Provavelmente foi só uma gripe. Assim que descansar um pouco vai melhorar.
Ela hesitou um pouco, e então me beijou na testa. Deixou uma bandeja com bolachas, suco e uma caixa de lenços de papel na escrivaninha.
– Procedimento padrão de gripe – Havia explicado sorrindo.
Então foi até a porta, deu uma última olhada em mim, e saiu de casa.
Sensação estranha. Bom, é claro, a situação também era estranha para mim. Isso nunca havia acontecido comigo. Não depois de Hound pelo menos. Fazia alguns anos desde que alguém me viu doente, que dirá cuidou de mim. Era bom poder contar com alguém para te amparar. Mas este sentimento de proteção, eu tinha só conhecia em teoria. Não importa o quanto qualquer um diga que quer me ajudar, a verdade é que é impossível. Sou o único capaz de ajudar a mim mesmo. Por mais biscoitos e carinho que tente me empregar, quando um filho da noite agarra meu pé, sou o único que pode sacudi-lo dali. Sou o único no qual posso confiar para lutar as batalhas por minha vida.
Falando em batalhas. Havia algo grande prestes a acontecer ali em Montes Solares. Algo ruim. O que me atacou a noite anterior, não tinha sido nada com o que já tivesse cruzado antes. Dava-me arrepios só de pensar no poder que aquela coisa tinha. Podia ter me matado só com a mente, sem nem sequer me tocar. Sem dar chance de me defender.
Eu precisava ter uma longa conversa com Hound. Meu repertorio de noturnos não era assim tão grande, o que me deixava a mercê da vontade do cão do inferno. Tentei lembrar que tipos de criaturas tinham poderes mentais como os que me atacaram. Não havia muitos, mas se eu juntasse com os recentes desaparecimentos de crianças... Preferiria não pensar nisso, mas não seria a primeira vez que vampiros vão atrás de lanchinhos menores. Não tenho muita certeza, mas tem algo a ver com a pureza do sangue. O sangue das crianças pequenas é mais limpo e, acho eu, mais saboroso. O problema é que os vampiros não costumavam fazer tamanho massacre. Eles eram cuidadosos e sabiam controlar suas crias. Eles sabiam que chamar muita atenção era perigoso. Que ainda existiam humanos com conhecimento dos noturnos, e que sabiam como caçá-los. Não que qualquer humano fosse melhor que eu, é claro. Era injusto comparar minha agilidade e força que obtinha com Hound com as de um simples humano.
Fiquei deitado ali, meditando as possibilidades. Uma imagem me veio à mente. Uma rua escura, um vampiro novo caído aos meus pés, e um vampiro mestre, de face queimada, me olhando com raiva antes de desaparecer. “Quais são as chances...” me perguntei “daquele vampiro ter seguido a mulher em busca de vingança?”. Se fosse o caso, então aquele vampiro era muito mais do que aparentava. E muito mais forte que os outros de sua raça também.
As coisas acabavam de ficar mais complicadas.
Sra. Ferrarezi chegou uns quinze minutos depois. A senhora estranha e encurvada, de coque e olhos azuis, com quem duas vezes já havia cruzado antes, olhou para mim, balançou a cabeça em desaprovação e saiu do quarto resmungando algo sobre os jovens, bebidas e uma ressaca.
À tarde, depois que a Sra. Ferrarezi já havia deixado a casa, e Alana e Léo haviam voltado de escola, já me sentia bem melhor. O problema devia ter sido causado por estresse mental. Com o ataque do vampiro – não conseguia pensar em outra hipótese – e toda a confusão por causa de Hound, acabei forçando demais minha mente.
Cochilei quase o dia todo e fui impedido de sair da cama por Alana, mas, ao cair da noite, já tinha voltado ao meu normal quando Hound acordou.
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