Não sei bem como, mas consegui alcançar a sala de aula. Um pouco antes da aula terminar, mas ainda assim cheguei lá. A professora – uma mulher que me lembrava muito uma rata gigante e felpuda – virou-se pronta para jogar um mundo de problemas em minha cabeça. Mas acho que os métodos de Hound realmente devem fazer efeito, já que ela olhou para minha cara e, seja lá o que viu ali, a fez me mandar para a enfermaria. Devia estar realmente mal. Isso, ou não desviei do vomito tanto quanto eu queria.
Thalita prontamente se ofereceu para me ajudar, saltando fora de sua carteira e correndo em minha direção. Acho que, se qualquer outro tivesse se oferecido, a professora não deixaria que saísse da sala. Mas Thalita era a CDF da classe. Sempre estudiosa e atenta, com todas as lições em dia. A última pessoa que tentaria arranjar uma desculpa para escapar. Foi por isso que a professora a deixou sair.
Não estava totalmente feliz com a decisão. Minha cabeça estava um caco, e ficar ouvindo a menina tagarelar em meu ouvido não ajudava a melhorar... Nenhum pouco.
A enfermaria era um pequeno quarto, perto da diretoria, todo pintado de branco. Havia uma janela oposta a porta, por onde entrava o sol que acabou me segando quando entrei. Thalita me indicou para que sentasse em uma cadeira que ficava entre uma mesa, ocupada apenas por um calendário e folhetos de educação sexual, e o armário de remédios. A sala também tinha uma maca branca a um canto, o que não deixava muito espaço para circulação, e alguns quadros sobre a anatomia humana pendurados nas paredes. A menina se certificou de que estava bem estável na cadeira e saiu em procura da enfermeira.
Thalita era legal. E esse era o problema. Era legal de mais. Falava de mais. Me perseguia de mais. Não é que não gostasse dela. É só que não a suportava. Mas, ainda assim, a habilidade dela de forçar o desligamento da minha mente era incrível. Quase sempre que começava a falar eu entrava em standy-by. E comecei a sentir falta disso quando, por não ter o que distrair minha mente, comecei a divagar sobre como as coisas iam em minha vida.
Acredite: Ninguém quer encarar um cão do inferno nervoso. Mas ninguém merece um deprimido também.
Como na maioria das opiniões de Hound, o lado dele parecia muito tentador. Fugir daqui, sem ter mais que dar satisfações para ninguém, sem ter que me preocupar com coisas supérfluas. Voltar a minha vida de caçadas noturnas e dias folgados... Eu seriamente considerei essa opção. Era fácil de mais para não fazer-lo. Mais fácil para mim, mais fácil para os outros. Mas não era o que queria... Era?
A enfermeira chegou, salvando o meu dia. Não estava em um bom momento, ou estado mental, para tomar decisões. Nem era de voltar atrás quando as tomava. A enfermeira, uma senhora de óculos e um sorriso simpático, dispensou Thalita de volta para a classe. Ela estava vestida toda de branco, mas não era propriamente um uniforme, além do em seu rosto ela levava um segundo par de óculos pendurado em seu pescoço por uma corrente de contas. Levava os cabelos brancos bem curtos e, apesar de baixinha e magra, transmitia o conforto e segurança que qualquer criança machucada precisa.
Ela mexeu em mim um poço, checando minha temperatura, olhos e garganta. Sorriu e disse que não via nada de errado comigo. Que possivelmente era só desgaste. Mandou que deitasse na maca e descansasse um pouco. O que eu aceitei muito agradecido. Foi quase instantâneo: Minha cabeça encontrou o travesseiro fino e com cheiro de cloro e minha mente apagou.
∞
Não podia ser pego saindo às escondidas novamente. Fato. Havia dito a Hound que o levaria para caçar a noite, mas não especifiquei o horário exatamente. Se ele cismasse de sair logo após o por do sol estaria em grandes problemas. Outro fato.
Também não tinha a opção de pedir cobertura para nenhum dos dois irmãos. Léo... Bom, acho que Léo ainda não aprendeu direito como se mente. Sempre acaba contando se Alma ou Alana pedem. O que me leva para a segunda opção infrutífera. Alana nunca me ajudaria. Não foi como se tivéssemos algum tipo de briga depois do intervalo – não tivemos qualquer tipo de troca verbal realmente -, mas parecia simplesmente impossível ela me acobertar. Principalmente se isso significaria quebrar as regras da casa.
Ela seria a primeira a dedurar. Dava para ver no olhar dela enquanto voltamos para casa. Ela sabia que tinha algo errado comigo e achava que, seja o que fosse, podia afetar a ela e a família. Não estava tão longe assim da verdade.
Olhei pela janela. Acompanhando a decida do sol. Como uma coisa tão bonita podia, simplesmente, parecer tão desesperadora? O quarto mergulhou na escuridão. E eu esperei. Esperei ouvir a irritante risada zombadora do demônio, o arrepio na espinha quando ele te espreita, ou até mesmo a horrível dor de sua fome. Cheguei a me tencionar para agüentar o impacto. Mas nada veio.
Aos poucos fui relaxando. Hound não iria me atormentar tão cedo. Soltei a respiração, que não havia percebido estar segurando, sentei na cama e apoiei a cabeça em meus braços cruzados sobre os joelhos.
– O que está fazendo? – Juro que me senti sair do corpo e voltar. Olhei para cima para ver Alana parada em minha porta aberta. Ela me mandou um olhar de: Não precisa responder, eu já sei. – O jantar já está pronto. – Terminou e foi embora.
Esfreguei meu rosto com as mãos.
– Assustado? – Dessa vez cai de onde estava sentado. O demônio aparecera sussurrando em meu ombro. Literalmente.
– Droga! – Deixei escapar ele desatou a rir. O olhei zangado. – Ainda não estou saindo. – Sua risada sumiu tão rápido quanto apareceu. Talvez mais.
– Nós estamos indo a-
– Mas não agora. – Eu o interrompi. Um principio de rosnado começou eu seu peito. – Os espere dormir, Hound. Me de ao menos isso. – Mantive o rosto livre de emoções.
Ele pareceu ponderar por uns instantes.
– Que seja. – Seu sorriso voltou ainda maior. – Mas, se fosse você, não ficaria muito tempo perto da garota comigo faminto como estou...
Maravilha, isso era só o que faltava.
∞
Depois de uma refeição muito mais que tensa. E de muitas historias fantasiosas de Léo, seguidas por muitas explicações minhas. Todos se retiraram para os seus quartos. Era obvio que esse tipo de intriga não era o comum naquela família. E fui eu quem a trouxe para dentro. Me perguntei o quanto de mal eu ainda iria causar até me convencer de que Hound estava certo. Por que ainda tentava acreditar que tinha um lugar entre os humanos. Muito egoísmo? Talvez, mas não se espera muito de alguém que deu seu corpo a um demônio. Certo?
Demorou apenas umas horas mais para que todos dormissem. Hound estava inquieto – impaciente, se preferir – para sentir o prazer da caça. Prazer este que, por nossa ligação, eu sentia também. Mas não devia, ou queria sentir. Hound sempre disse que tinha um sentido estupidamente forte de honra. Não acreditava. Já havia feito besteira demais para ter algo assim.
Como tinha feito das outras vezes, pulei pela janela do quarto e me esgueirei pela garagem em direção ao portão. Mas o barulho, de uma janela se abrindo as minhas costas, me fez parar.
-Jesse? – Era Alana. Estava na janela da cozinha, mas não virei para vela. Só fiquei lá parado, tentando pensar desesperadamente no que fazer. – O que esta fazendo?
– Errr... Bom... – Finalmente me virei para olhá-la. Estava com as calças e blusa de flanela do pijama, com o cabelo todo bagunçado e uma expressão preocupada. Achei que ainda não havia acordado direito.
– Vamos embora logo garoto! – Hound soava irritado e olhei para ele.
– Você esta saindo?! – Sim. Agora ela estava acordada. – E é quase meia noite!
– Bom... – Ainda não me tinha ocorrido uma desculpa.
– Você ta loco? – Ela olhava para mim nervosa. – Volta já pra dentro! – Franzi o cenho. Não gostava de receber ordens.
– Jesse. Entra. Agora. – Ela apontou o dedo para mim. – Ou vou contar pra mamãe!
– Olha... – Comecei, tentando explicar, mas Hound escolheu esse momento para interferir.
A dor da fome voltou, mas não o suficiente para me derrubar, mas sim para deixar transparecer.
– Você ta bem? – Alana parecia duvidar.
– Mova-se garoto. Agora.
Olhei para a minha nova irmã, que me analisava da janela, tentando mostrar sinceridade.
– Eu sinto muito. – Disse e fui para o portão.
Ouvi os movimentos de Alana correndo para a porta dos fundos, tentando me alcançar. Mas a velocidade não podia se comparar a minha e, no momento que ela chegou ao portão, eu já havia virado a esquina.
A dor de Hound já havia passado, mas tinha sido substituída por outra. Que apertava meu peito e me enjoava. Uma dor que não conhecia até agora e que, se pudesse, nunca iria conhecer.
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