Aviso de gatilho!
Menção de suicídio e uso indevido de medicamentos. Leia por sua conta e risco.
Você não está só, ligue 188 (CVV) / 988 (USA) / 0800 686 5652 (UK) / Search for your country's helpline.
O espelho reflete sua imagem enquanto se encara. Ela se vê refletida, mas não se enxerga. Eva apenas fita uma desconhecida. Um suspiro deixa seus lábios enquanto ela começa a tirar suas roupas, peça a peça sem pressa. Ela entra na banheira, já cheia, respira fundo uma vez, soltando o ar enquanto fecha os olhos. Ainda com eles fechados, ela respira fundo mais duas vezes e afunda completamente na água. Imergindo até mesmo sua cabeça. Sua mente flutua para alguns anos atrás. Quando sua vida parecia tão ruim como agora, mas que de repente mudaria em uma única noite.
Em um terraço de um prédio empresarial – no qual ela aprendeu como entrar sem ser notada – Eva olha para a cidade abaixo. O céu está escuro, quase nenhuma estrela visível. Ela respira fundo olhando o horizonte, uma brisa fraca passa por si quando ela solta o ar, isso a fez fechar os olhos e respirar fundo mais uma vez.
Eva olha para baixo novamente inspirando mais uma vez, enchendo seus pulmões devagar e o soltando na mesma velocidade. Ela apoia as mãos na beirada e levanta uma das pernas, estava pronta para subir no parapeito quando alguém aparece e lhe faz parar.
— Você não está pensando em pular, está? A queda não será bonita e seu caixão vai ter que ser fechado — a voz é doce na concepção de Eva, e quando ela olha para a menina, dona da voz, perde alguns minutos encarando a beleza dela antes de responder.
— Não acredito que eu ligue muito de como vão me ver depois que morrer, não vou estar aqui para ouvir.
A estranha ri com isso, mas não desiste de fazê-la desistir.
— Quem te garante? Se sua alma ficar presa verá tudo. Além disso, tem maneiras mais legais de morrer, ou mais tranquilas pelo menos.
— Tipo?
— Vamos dar uma volta e eu te conto.
Eva abre o olho ao emergir da banheira. Sai completamente, se secando e deitando na cama. Algumas horas depois, sentada com os joelhos encostados em seu peito e seus braços em volta dos mesmos, Eva encara o relógio na parede oposta à sua cama, ela vê os ponteiros girando segundo por segundo, minuto por minuto, hora por hora. Assim ela passa mais uma madrugada escura acordada. A casa está silenciosa, assim como a rua, o único barulho é de seu ventilador girando. As horas passam e a menina continua na mesma posição.
— Amanhece, amanhece, amanhece…
Eva repete a palavra por quase toda a madrugada. Na esperança de que isso faça o tempo passar mais rápido, mas ela sabe que nada é tão fácil assim.
Ao amanhecer ela se levanta com calma e caminha até o banheiro, se olha no espelho e engole seus remédios. Ela enche a banheira e entra afundando todo seu corpo, exceto a cabeça.
— 1… 2… 3.
Eva afunda a cabeça e permanece imersa. Seus pensamentos voltam repetidamente na noite que sua vida mudara, para depois pensar na noite que tudo piorou drasticamente. Naquele momento ela só queria relaxar. Esquecer tudo que aconteceu. Parte dela ainda não está pronta para aceitar que seja o fim.
— Eva Lopes! Não posso te deixar sozinha um minuto se quer?
— Pode. Eu estou bem, mãe.
Sua mãe, Marta, faz com que ela saia da banheira e a ajuda com a toalha. O olhar de Marta mostra preocupação, mas Eva só consegue enxergar pena. Com isso em mente, ela se arruma para sair o mais rápido da vista do olhar de sua mãe.
Entrando no campus, a única coisa que Eva enxerga são as pessoas que a encara. Todos sabem da história trágica, mas nenhum consegue dizer nada. No banheiro, de frente para o espelho, olhando-se com o mesmo olhar vazio de meses e com os comprimidos já em mão, ela está pronta para tomar mais que deveria, provavelmente só vai deixá-la dopada, mas será o suficiente para aturar a todos naquele momento. Antes que possa tomar, entram no banheiro e seu pulso é segurado no mesmo instante. Um suspiro sai da boca da mulher antes de falar.
— Quantas vezes ainda irei te salvar?
Seu olhar de pena faz Eva entrar na defensiva.
— Eu nunca pedi sua ajuda, Anne.
Anne muda o olhar de pena para raiva.
— É a verdade.
Eva encara o espelho mais uma vez e caminha para a porta.
— Não é porque você acredita que não tem mais jeito que eu preciso concordar e assistir você morrendo.
Eva para. Volta seu olhar para ela, a raiva não estava mais ali, só tinha a pena novamente. Ela faz um movimento com os ombros e sai do banheiro. Eva sabe que a maioria dos olhares de pena que vê são coisas da sua cabeça, ou ao menos é o que sua psicóloga diz, mas em sua concepção são reais demais para ser apenas imaginação. Ela também não entende como ainda tem gente tentando ajudá-la. Ela mesma já aceitou que não tem mais jeito. Não é a primeira conversa assim que tem com Anne, e sabe que não será a última, pelo menos não por enquanto.
Em uma das muitas noites de insônia, Eva andava pelas ruas silenciosas da madrugada. Caminhar a acalmava e não é como se ela tivesse medo de algo acontecer por estar na rua tão tarde. Ela caminha e sem perceber está na frente da casa de Anne. Para de frente à casa, e se senta no meio fio. Anne, que está na varanda de seu quarto olhando para baixo, vê Eva chegando e desce as escadas da casa rápido para sentar-se ao lado da amiga.
— O que te faz pensar que eu preciso ser salva? — Eva quebra o silêncio.
— Eu só não quero assistir minha amiga morrer — seus olhos estão encarando o chão assim como os de Eva.
— Não precisa. Eu estou bem.
— Não, não está. E não vou fechar os olhos para isso, se é o que está me pedindo.
Ela não responde Anne. Apenas levanta e continua seu caminho, voltando para casa dessa vez.
Mesmo depois de tantas conversas e consultas, não entra em sua cabeça como pode existir pessoas dispostas a ajudá-la. Ela não impede que tentem, mas não é como se esforçasse para mudar, porque não achava que tinha algo para mudar. Ela estava bem. Só esperando seu momento. E mesmo dizendo isso para todos, ninguém parecia entender, nem mesmo sua psicóloga, mas ela tentava em todas as consultas.
Como essa agora. Ela estava sentada no sofá branco com almofadas coloridas, em uma sala branca com uma grande janela, ela conhecia bem aquele lugar simplista, com uma poltrona também branca voltada para si. Eva encara a mulher a sua frente, esperando que ela diga algo.
— Como foi sua semana Eva? Como se sente hoje? — tem um sorriso em seu rosto, tentando passar conforto para a outra.
— Normal. Minha mãe e Anne continuam pensando que não estou bem.
— Marta me disse que te tirou da banheira duas vezes essa semana. O que está tentando fazer?
— Esperando o momento certo.
— Você ainda acredita que vai encontrá-la?
— Tenho certeza. Só não é agora. Por enquanto, eu estou bem.
— E você acha que ela ficaria feliz com isso?
— Hum, eu não sei. Você não sabe. Ninguém sabe.
— Sei que se ela te amava tanto quanto você a ama, ela iria querer lhe ver feliz. Você precisa seguir com a sua vida por você e por ela.
— Hum, eu estou bem.
Antes que a mulher possa responder, Eva se levanta e sai da sala. Ela não sabe se aquilo é verdade, nem Eva sabe. De qualquer forma, ela não se sente feliz e não se sentia antes, o que poderia mudar agora?
Sentada em sua cama, sem querer passar mais uma noite em claro, Eva leva a garrafa de um vinho barato a boca. Em algumas noites o álcool servia de sonífero para ela, e se quer dormir precisaria mais que uma garrafa, por isso escolheu o mais barato para ter o suficiente para comprar pelo menos duas. Ela encara o relógio na parede e vira mais uma vez. A porta de seu quarto se abre revelando Anne, que entra sem dizer nada. Ela entrega a garrafa para a amiga que dá um gole e permanece em silêncio. Há muito o que dizer, mas ela sabe que nesse momento não vai conseguir nada, então prefere esperar o dia seguinte. As duas bebem em silêncio por um tempo até Anne ficar impaciente e por música para tocar. Elas bebem enquanto cantam e, às vezes, Anne dança junto as melodias. Elas só param de beber quando dormem. Anne é a primeira a fechar os olhos e entrar no mundo dos sonhos. Eva desliga a música, ajeita a amiga e se deita na cama pronta para dormir, mas talvez teria sido melhor a insônia.
Eva e Lilith tinham sorrisos leves nos rostos enquanto andavam de mãos dadas pela areia da praia. Estavam felizes, era evidente. Olhando para o mar, Eva solta a mão de Lilith, tira a blusa, o short e anda em direção a água.
— O que está fazendo, meu amor? — O sorriso dela aumenta.
— Vem, Lili, — solta uma risada — vamos relembrar nosso primeiro beijo.
Eva entra na água e afunda. Lilith continua olhando de longe, mas gradualmente vai tirando as mesmas peças que a namorada. Quando Eva ergue-se, estica sua mão em direção da outra que a pega sem hesitar. Eva leva a outra mão em direção ao rosto dela e ela se aproximam. Suas bocas se encostam em um selar. Um sorriso surge nos lábios de ambas. Lilith puxa Eva para ainda mais perto e às duas voltam a se beijar, dessa vez com intensidade, com línguas que se mexem nas bocas, com sintonia com afoito, mas também com amor e carinho. Antes de acabar o beijo elas afundam na água. Quando Eva volta a superfície rindo, mas Lilith não, seu riso morre e seu coração aperta.
— Lili?! Lilith, cadê você?
Eva acorda suada, seu coração está acelerado ao extremo. Sua mão vai ao peito com a dor da lembrança; da pior noite de sua vida. Ela olha ao redor para se situar, está em seu quarto, sozinha. Ela respira fundo uma única vez e se levanta. Seu coração ainda está acelerado quando ela entra no banheiro e enche a banheira. Ela se olha no espelho. Abre o armário pegando seus comprimidos. Ela tira sua blusa e seu short, leva os comprimidos a boca. Com calma entra na banheira, já cheia, desligando a torneira. Ela afunda aos poucos, deixando apenas seu rosto para fora, encara o teto. Quando ela sente os remédios fazendo o efeito, ela respira fundo três vezes, com calma.
— Eu sinto muito, meu amor.
Eva afunda sua cabeça. Havia finalmente chegado o momento certo. Ela estava bem e agora estaria melhor ainda.
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