“Lúcifer era perfeito, sábio, belo e formoso, de vívido esplendor”
一 Você não vai mudar o mundo, Mateus.
Havia horários muito específicos para certos problemas. Três da manhã, sabe-se lá porque; sete da manhã, quando começava o turno diurno; sete da noite, quando ele terminava; três às cinco da tarde às segundas, quartas e sextas, porque era hora de visitas.
Cada hospital tinha seus próprios problemas programados. Não era estranho para Mateus.
Havia, também, horários muito específicos para determinadas conversas. Costumavam ser três da manhã, sabe-se lá porque; sete da manhã, quando começava o turno diurno; sete da noite, quando ele terminava. Só não incluía as horas das visitas porque eles sempre tentavam não deixar ninguém se matar, então, as únicas palavras eram traz a porra do sedativo, cacete!
Eram sete da manhã de segunda-feira – sete e dez, para ser mais exato –, e lá estavam Mateus e Hélio entregando medicações coloridas e conferindo línguas.
E tendo determinadas conversas.
一 Eu não quero mudar o mundo. 一 Mateus retrucou, meio sorrindo. 一 Quero melhorar o mundo deles. Já não basta estar trancafiado longe da tua família e ter que tomar um monte de merda que você nem sabe o que é?
Hélio torceu o lábio e franziu as sobrancelhas. Eram tão escuras quanto os cabelos dele, mais claras que os olhos cor de mel. Ele não era tão mais velho, só dez anos, mas pelo visto, dez anos é tempo suficiente para acabar com esperanças de alguém.
一 Todo mundo pensa assim quando começa.
一 Esse não é meu primeiro emprego na área, tá?
一 Imagino se fosse.
Mateus revirou os olhos, mas sorriu. Ele era recém contratado no Instituto, um enfermeiro de formação também recente, tinha 24 anos e uma perigosa necessidade de se aproximar de todo e qualquer paciente, o que incluía os violentos também. Isso lhe rendeu um soco na boca na primeira semana e um sermão dos colegas: ele fora avisado mais de uma vez que não se mexia com o paciente do quarto 448.
一 Ele só estava nervoso, foi depois da visita! 一 Mateus reclamou, o lábio sangrando.
O assunto da manhã era exatamente sobre as visitas. Hélio não queria que Mateus ficasse perto de qualquer paciente com histórico de violência e deixasse para os staff que já estavam habituados, mas ele se recusava. Não tinha medo de nenhum paciente, nunca teve e nunca teria. Pasme: tentaram convencê-lo.
O paciente 448 – ele tinha nome, e era Paulo – era esquizofrênico e tinha surtos psicóticos frequentes. Nunca requisitaram internação porque ele parecia inofensivo, até estrangular o irmão e deixá-lo num coma. Dizia ver vultos, ouvir vozes, falava sobre matar alguém para se livrar da sua maldição e por isso tentou matar o irmão mais velho, não sou louco, por favor, vocês precisam confiar em mim.
A única visita que recebia era o irmão mais novo. Era loiro, tinha um sorriso aconchegante e olhos bonitos. Paulo entrava em psicose após vê-lo e só então se tornava violento. Mateus perguntou o porquê não proibirem o homem de visitar, mas ninguém soube respondê-lo. Hélio deu de ombros uma vez.
一 Ninguém nunca o vê entrar.
Parecia um pouco irresponsável, mas Mateus aprendeu a não se meter na gerência.
Paulo era o próximo para a medicação. Ele tinha a barba cheia e os cabelos pretos com fios brancos aqui e ali e não importava o quanto dormisse, sempre tinha olhos cansados. Ele era bastante educado e quieto. Mateus sorriu, entregando os comprimidos; Paulo era um dos únicos pacientes que não tomava água para engolir as pílulas.
一 Bom dia, Paulo!
Hélio não disse nada, só fez sinal para Paulo sair da frente. Com “mudar o mundo” Hélio queria dizer “ser educado com os pacientes”, aparentemente, coisa que ele não era de todo.
一 Bom dia, novato. 一 Paulo virou os comprimidos na boca. Mostrou a língua. Deu as costas.
Mateus observou enquanto revistavam-no à procura de qualquer coisa perigosa. Ele não parecia incomodado, apenas enfadado, como se soubesse que não adiantaria de nada, afinal, Paulo sempre tinha algum tipo de perigo nas mãos.
A hora das visitas passava mais rápido do que parecia ser. Fora Paulo, dificilmente algum outro paciente se desorganizava depois do contato com um visitante e, na verdade, era mais comum que o causador de surto em outro paciente fosse o próprio Paulo. Por conta disso, ele fora isolado, e quase nunca falava com ninguém, fossem outros internos ou qualquer staff. Mateus não pôde deixar de pensar em como isso poderia ser um agravante no estado mental dele, mas, de novo, ele aprendeu a não se meter.
Era por volta das quatro e meia quando um homem não muito mais velho que Mateus surgiu da sala de visitas. Os cabelos loiros estavam penteados para trás, os olhos eram inquietos e ele sorria. Tinha bochechas rosadas e sardas no pescoço. Vestia uma calça social branca e uma camisa de botões vermelho vivo.
O irmão de Paulo.
Mateus sorriu para ele, sem graça. O irmão de Paulo era charmoso e deixava todos ao redor dele um pouco anestesiados, como se o tempo parasse, ou diminuísse o suficiente para que as pessoas pudessem engolir o máximo da sua presença. A voz dele era melodiosa e ele tinha cheiro doce de maçã.
Ele assinou a hora de saída no caderno e, antes de ir embora, virou-se para Mateus com uma sobrancelha arqueada. Ao fundo, Paulo começou a gritar.
一 Você é novo aqui, pois não?
一 Sou, sim, senhor.
一 Nada de senhor. 一 Ele chacoalhou as mãos. 一 Seu nome?
一 Mateus.
一 É um prazer, então.
E, assim, ele saiu pela porta.
Hélio olhou Mateus de soslaio. Ele estava prestes a dizer algo, até que gritaram por ajuda e ele saiu correndo de trás do balcão da recepção. Antes de segui-lo, Mateus bateu os olhos no livro de visitas.
Samael, 16h32.
Hm, onde Mateus viu aquele nome antes?
Quando os gritos se tornaram demais, ele correu para ajudar. Paulo não dizia coisa com coisa; jurava que corpos esguios se estreitavam nos cantos, sombras sorridentes dançavam nas paredes, vozes riam e gritavam, e que lá estava, lá tinha algo com chifres, e asas, e um sorriso tão grande que a boca rasgava e sangrava, e tudo tinha cheiro podre, e…
一 Alguém traz o cacete do sedativo! 一 Foi Marta quem gritou, era a enfermeira chefe. 一 O filha da puta é forte, porra!
Mateus trombou com outra enfermeira, que trazia uma seringa na mão. Ele pegou e correu até Paulo, que chacoalhou a cabeça com força, suplicando que o ouvissem, chorando, recusando-se a parar, até que Mateus segurou as bochechas dele com força e colocou a seringa no seu pescoço. As veias, pulsando com tanto ardor, começaram a apaziguar, e Paulo amoleceu – não só ele como a bexiga, que soltou toda a urina e molhou a calça dele e o chão.
Marta bufou.
一 Tinha de ser mais rápido, novato.
一 Sim, senhora. Desculpe.
一 Tsc, está tudo bem. Hélio, você e o menino levam o 448 para o quarto e depois, não sei, tiram dois ou um para decidir quem limpa. Eu preciso falar com o irmão dele.
Hélio e Mateus se entreolharam, e Hélio comprimiu os lábios.
一 Ele já foi, Marta.
一 Você só pode estar brincando com a minha cara, caralho.
Mateus tinha de segurar o riso sempre que estava próximo de Marta. Ela era muito respeitada, inteligente e muito possivelmente a melhor enfermeira que ele conhecera na vida, mas tinha a boca tão suja quanto o Rio Tietê em São Paulo. Ela não achava ruim, de todo, que rissem, até ria de volta, dependendo da situação.
Com ajuda do segurança que Mateus ainda não tinha decorado o nome, colocaram Paulo na maca, amarraram os pulsos dele – à contragosto de Mateus – e o empurraram em silêncio até o elevador. Já no quarto andar, com a rodinha da maca rangendo, Hélio suspirou.
一 Eu tenho pena dele.
一 Oh, se não é o senhor você não vai mudar o mundo mostrando que tem sentimentos.
一 Cale a boca, vai. 一 Hélio resmungou, mas sorria de canto. 一 Porra, três vezes por semana há, sei lá, quatro meses, isso acontece. É cansativo para a gente, mas e para ele?
Mateus não respondeu. Não conseguia imaginar o cansaço, a dor, o sofrimento de Paulo, ainda mais a ansiedade de saber dias e horas em que sua própria mente lhe pregaria peças e ninguém acreditaria nas suas palavras, ninguém se importaria o suficiente para acalmá-lo, acolhê-lo, para explicar o que era ou não real.
一 Eu fico com ele. 一 Disse, por fim.
Hélio não retrucou.
Mateus hesitou em amarrar Paulo à cama, mas não queria outro soco na boca e muito menos ser taxado de descuidado e ingênuo (só para não dizer burro). Prendeu só um dos pulsos dele com as amarras de velcro, notando cicatrizes vermelhas e recentes; não cortes, exatamente, mas arranhões feios, inchados.
Paulo abriu os olhos, resmungando em desconforto, quando Mateus terminou de vesti-lo com calças limpas.
一 Olha só. 一 Mateus sorriu, tirando as luvas. 一 Como você está?
Os olhos de Paulo semicerraram. O cenho franziu. Ele nem tentou se mexer, parecia já estar habituado a apagar e acordar amarrado numa cama.
一 Vivo.
一 Sim, isso está, mesmo.
一 Que merda.
Mateus arqueou uma sobrancelha.
一 Você queria não estar?
Paulo riu, debochado e triste.
一 É o que eu mais queria.
一 Certo, e… Bom. Quer falar sobre?
Mais uma vez, Paulo riu. Agora, apenas desacreditado, um pouco ofendido. Os olhos dele, escuros e inquietos, fizeram Mateus pensar se ele ainda estava num episódio, afinal, alguns eram coisa de horas, outros, de dias.
一 Por quê? 一 Ele perguntou. 一 Por que você quer me ouvir?
一 Pode te ajudar.
Paulo bufou e olhou para o teto. Mateus se aproximou com cuidado, porque pensou ter visto algo nos olhos dele, mas não soube identificar o que era.
一 Eu não sou maluco, porra.
一 Não disse que você é.
一 Moleque, se você acreditasse que eu não sou, você não trabalharia aqui.
Mateus olhou por cima dos ombros. Ninguém no corredor. Ele sentou na cama e soltou o pulso de Paulo, que encarava-o ainda de cenho franzido.
一 Agora eu que acho que você é maluco.
一 Você não está violento e me parece bastante certo das suas capacidades. Não vejo razão de estar amarrado. 一 Mateus suspirou. De novo, algo passou pelos olhos de Paulo, e ele teve de pegar a lanterna de bolso e conferir se estava tudo bem. Não havia nada, exceto alguns vasinhos dilatados e que provavelmente estourariam. 一 Estar em cuidado psiquiátrico não significa que pessoas são loucas, apenas doentes.
一 Eu não sou louco nem doente.
一 É, e as pessoas dizem isso também.
一 Vai se foder.
Mateus sorriu, porque Paulo também estava sorrindo.
一 Eu fui honesto, está bem? 一 Mateus disse, baixinho. 一 Podemos falar sobre, se você quiser.
一 Mas você não vai acreditar, vai?
一 Eu não posso e nem vou dar corda à sua psicose, nem aos delírios.
一 Um não bastava. 一 Paulo resmungou.
Mateus não insistiu. Ele sugeriu limpar os arranhões apenas porque já estava ali e algo não o deixava ir embora. Interesse? Dúvida? Não sabia.
Paulo concordou, indiferente. Ele esfregou o rosto e, assim que olhou para Mateus, alguma coisa mudou. Uma sombra parecia cobri-lo. Uma espécie de agonia, uma seriedade de alguém que sabia não poder fazer mais nada além de aceitar e esperar a morte chegar.
一 Se tem algo que você deva saber 一 Murmurou. 一, é que ele não é meu irmão.
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