Hélio bufou. Mateus sentiu que, se não estivessem a trabalho, teria levado um tapa na orelha.
一 Você vai mesmo dar ouvidos à isso?
一 Você não? O cara surta toda vez!
A discussão corria há alguns minutos. Já era o dia seguinte. Mateus ouviu a história toda de Paulo e concluiu que, por mais convincente que ele parecesse, eram delírios. Bastante bem construídos e detalhados, explicações para tudo que Mateus perguntava sem sequer titubear, mas eram delírios. A única coisa que não ficou certa foi quem era Samael; Paulo afirmou piamente que o único irmão que tinha estava internado e em coma há seis meses, talvez até mesmo morto, ele não tinha como saber. Mateus perguntou diversas vezes quem Samael poderia ser, e Paulo respondia, sério e um tanto quanto assustado:
一 O querubim.
Claro, Mateus não acreditava que fosse um anjo, até porque não tinha fé em nada específico, mas se essa era a única pergunta que a resposta de Paulo não satisfazia, talvez Samael não fosse mesmo irmão dele. A ideia não era perturbadora, só esquisita.
Naquela noite, Mateus sonhou com um anjo, e o anjo era Samael.
Hélio olhou para o teto, exasperado, irritado.
一 Talvez, simplesmente, ele não goste do irmão. Acontece. Talvez seja um irmão adotivo e o cérebro todo empapado dele julga que o cara não é irmão dele, foda-se, cara! Para que porra isso importa?
一 Importa porque pode ter um estranho vindo aqui, e… e, não sei, pode ser alguém perigoso…
一 Mateus. 一 Hélio suspirou. O tom de voz dele era quase penoso. 一 Você só quer acreditar nisso. Não tem explicação plausível. Deixa quieto, está bem?
Ele não deixou.
Mais tarde, na hora do banho de sol, Mateus se prontificou a levar Paulo ao jardim. Hélio o olhou com tanta descrença que Mateus podia ouvi-lo xingar toda sua ancestralidade, ao que ele respondeu com um sorrisinho travesso. Marta deu de ombros e aprovou a decisão.
Sentavam os dois num banco embaixo de uma árvore. Estava demasiado quente para ficar no sol por mais de cinco minutos. A sombra era fresca e o ar, úmido. A pele de Paulo brilhava com o suor, ele olhava adiante, observando outros dois pacientes jogarem canastra ao longe.
一 É só uma questão de tempo até você enlouquecer também.
一 E você diz isso por…?
一 Porque é o que ele faz. Por que você acha que eu estou sozinho?
Mateus arqueou a sobrancelha. Quando ele não respondeu, Paulo virou o rosto para ele. Era um homem muito bonito em feições muito tristes.
一 Você quer mesmo que eu responda?
一 Ah, claro. 一 Paulo resmungou. 一 Você está sozinho porque é maluco, Paulo.
一 Hm, quase? 一 Mateus abriu um sorrisinho quando Paulo encarou-o com os olhos semicerrados. 一 Ouvi dizer que você é afastado dos outros pacientes porque você tenta fazê-los acreditar nos seus delírios.
一 Eu não digo nada aos coitados, moleque. Eles simplesmente enlouquecem.
一 Certo, mas, uhm, você disse a mim.
Paulo balançou a cabeça devagar. Ele piscou antes de desviar o olhar para o jogo de cartas outra vez, e respondeu, calmo:
一 Eu sei.
一 Paulo. 一 Mateus chamou, cuidadoso. 一 Quem é ele? Por que querubim? O que isso teria a ver com…
一 Ele foi um querubim 一 Paulo interrompeu, a voz baixa, como se alguém pudesse ouvi-lo. Olhava para cima, para as folhas da árvore dançantes ao vento. 一, até não ser mais. Ele ainda se chama assim às vezes.
Mateus observou Paulo, o dito perigoso e violento paciente 448, tão sereno, mas tão desesperançoso. Ele falava com a certeza de um homem cujas escolhas não teriam mais diferença, porque o futuro estava escrito, e agora era só uma questão de tempo até que se realizasse.
Paulo olhou-o outra vez.
一 Você prestou atenção no que eu te contei ou decidiu só se focar na única coisa que não te fez sentido?
Ele assentiu, porque prestou atenção. Prestou atenção quando Paulo disse que odiava o pai e, na adolescência, passou a pedir que ele morresse. Não importava como, mas o bêbado que o espancava e tentou matar a mãe com um facão precisava morrer. E, um dia, de tanto pedir, o pedido se realizou: o pai foi atropelado por ônibus ao atravessar a rua embriagado. Prestou atenção quando Paulo disse que Deus ouviu suas preces e, assim, ele passou a orar para matar qualquer um que lhe cruzasse o caminho: os traficantes para quem devia, a mulher que o deixou, o filho da puta do bar que não lhe dava mais bebida. Todos caíam mortos de um jeito ou outro, maneiras detestáveis e agonizantes.
Um dia, Paulo sonhou com um homem louro, de sorriso bonito e voz aveludada, que dizia estar na hora do seu pagamento. Não entendeu e deixou para lá. Sonhou de novo, de novo e de novo, até que o homem se irritou. Paulo o via no espelho, no canto de seus olhos, mas não era a visão tão angelical que lhe vinha em sonho; eram chifres e olhos arregalados e vidrados e um sorriso sangrento, rasgado, um corpo torto, asas longas e queimadas pelo fogo – até aqui, Mateus tinha explicações. Paulo sofreu durante a infância e, desde a morte do pai, sentia-se em controle de algo, enfim. O sonho não era nada mais que a culpa de sentir esse tal controle, essa responsabilidade. O que veio depois era, possivelmente, a doença despertada pelas drogas.
O homem do sonho ser Samael não fazia sentido, mas poderia haver inúmeras respostas, Mateus apenas não era da área para responder.
一 Então, novato 一 Paulo continuou. 一, você sabe que não era Deus.
一 Olhe, Deus parece bastante capaz de sair matando por aí. 一 Mateus ofereceu um sorriso, tentando levantar os ânimos, mas Paulo virou o rosto para o outro lado, enraivecido. 一 Eu só não entendo como isso pode ter a ver com você estar sozinho. O que esse tal querubim quer? Por que enlouquecer aos outros se você é o propósito dele?
Paulo não respondeu, e não olhou para Mateus até precisar entrar no Instituto de novo.
Era uma rua escura, o asfalto estava molhado, não havia nada nas calçadas quebradas além de lixo. O ar estava quente, abafado pela recente chuva, e Mateus pensou como foi parar ali.
As calças brancas do pijama arrastavam no chão. Tinha o torso descoberto e, ainda que estivesse calor, ele tremia, os braços estavam gelados. Os pés estavam sujos de terra e doíam como se Mateus tivesse andado quilômetros e quilômetros. À frente, talvez há uns dez metros de si, uma poça escura crescia ao lado do bueiro, como se ele estivesse entupido e expelindo esgoto.
Mateus olhou por cima do ombro. Estava sozinho. Andou até a poça, desconfiado, até que uma luz amarelada surgiu, como se o poste de luz o tivesse visto e pensado oh, claro, preciso acender. Assim, ele foi capaz de ver que o bueiro vomitava sangue; espesso, escuro e com coágulos.
Uma mão fria puxou-o para trás pela nuca. Mateus tentou gritar, mas não teve tempo, porque o medo congelou-o.
Um homem encarava-o, se é que essa palavra podia ser usada de fato. Um de seus olhos balançava para fora da cavidade, pendurado por músculos trêmulos, e o outro fora amassado junto com metade do crânio, céus, a cabeça do homem tinha um buraco, um buraco, pedaços aqui, pedaços lá, cabelo ensanguentado, o cérebro cinzento e pulsante sangrava junto a um fluido amarelo, o cérebro dele, oh, pai amado! O pescoço dele estava torto para o lado, quebrado, ele babava pelo canto da boca. Sorriu.
Era estranhamente familiar.
一 Ele vai te sacrificar também.
一 Quem? 一 Mateus sussurrou. Achava que ia mijar nas calças.
一 O querubim.
Mateus bufou, ainda assustado e com uma crescente raiva no peito.
一 Quem é o cacete desse querubim? Quem é você?
O homem soprou um riso gorgolejante, e Mateus demorou a perceber que ele engasgava com sangue. O restante do corpo também estava ensanguentado e uma costela saía pela camiseta. Ao fundo, uma voz melodiosa murmurava uma canção qualquer, Mateus não sabia dizer qual era e se era importante, até que as palavras começaram a fazer sentido e o tom da voz tornou-se brincalhão.
一 Vai me ajudar, querido?
Mateus quis se virar; não conseguiu. Estava congelado mesmo pelo medo. O homem lhe estendeu a mão torta, mas a voz que veio não era dele, e estava próxima, tão próxima que o hálito de quem quer que fosse soprou quente na orelha de Mateus.
一 Se não levar um, levo dois.
E, com urina escorrendo pelas coxas, Mateus percebeu que a voz era de Samael.
Num susto, com falta de ar e palpitações, abriu os olhos, atordoado. Estava na própria cama, no apartamento alugado e pouco mobiliado, e tinha acabado de fazer xixi na cama aos seus vinte e quatro anos por um pesadelo induzido pelo discurso – muito convincente – de um paciente esquizofrênico.
一 Você está um lixo, cara.
Mateus suspirou, tentado a responder à altura, mas continuou a organizar as fichas das medicações entregues naquela manhã.
一 Só dormi mal.
一 Se você diz… 一 Hélio disse, dando de ombros. 一 Tem café fresco na sala, se quiser.
Um tanto quanto irritado, Mateus segurou um palavrão e resmungou eu sei, obrigado, porque não era culpa de Hélio ele ter tido um pesadelo e não ter voltado a dormir, não havia necessidade de ser um babaca, por mais que quisesse. Ele queria comentar com alguém sobre o sonho, mas suas opções eram colegas de trabalho que o repreenderiam por ouvir ao 448 e o próprio 448, que provavelmente entraria em psicose logo em seguida caso Mateus abrisse o bico.
Mateus ouviu a porta do pequeno depósito bater e assumiu que Hélio saíra. Ele fechou os olhos, seduzido pela ideia de sentar no banquinho de plástico, apoiar a cabeça na estante e cochilar, mas a porta abriu outra vez e Mateus esfregou os olhos com as costas da mão para forçá-los a abrir.
Estranhou quando viu as fichas e as letras pareciam embaralhadas. Tentou piscar para focar a visão e, apesar de as palavras parecerem normais, ele não conseguia lê-las. Mateus bufou, estressado.
一 Caralho…
Uma mão tocou-lhe o ombro e ele estava pronto para levar com Hélio a perguntar se estava tudo bem, porém, ao invés disso, sufocou um grito na garganta: o homem de crânio amassado sorria para ele.
一 Ele vai matar você. 一 O homem murmurou, como se contasse um segredo. 一 Vai matar igual a todos nós, todos, todinhos…
Mateus tinha as mãos trêmulas quando seu corpo resolveu que era hora de agir. Ele apenas levantou as fichas e bateu com elas no homem; o cérebro, que agora parecia mais putrefato que no sonho, soltava um líquido pegajoso que grudou no papel. Uma risadinha esganiçada soou por trás de Mateus e, assustado, ele virou e bateu com as fichas na estante.
A porta abriu outra vez.
Ele tornou o torso, zonzo e suando, apenas uma ficha na mão agora. As outras caíram no chão. Era Hélio com um copinho de café na mão, a pele parda em contraste com o uniforme azul claro, os olhos arregalados e lábios comprimidos. Ele segurava a porta aberta com o quadril.
一 Que susto, porra. 一 Mateus resmungou.
一 Eu só abri a porta. 一 Hélio se manteve no lugar, mas inclinou a cabeça para a frente. 一 Você está bem?
一 Estou, é só a falta de sono. Foi mal.
一 Relaxa. Olha, te trouxe o café, mas vou lá na frente porque trouxeram a medicação que faltava. Volto em dois minutos.
Mateus estendeu o braço para pegar o copinho. Estava quentinho e o cheiro de café ao menos o convenceu de que era mesmo a falta de sono que trouxe o homem morto à vida. Era só uma alucinação por cansaço. Assim, ele virou o copo feito um shot de álcool barato e se abaixou para pegar as fichas no chão. Uma delas estava manchada, e era sangue podre.
Ele virou a ficha para baixo e a colocou no meio das outras. Era melhor ignorar.
Na hora do banho de sol, Mateus foi até Paulo. Ele estava naquele mesmo banco, daquele mesmo jeitinho sentado e olhando para os jogos que aconteciam adiante. Era xadrez. Ele era supervisionado por uma enfermeira bastante doce e paciente, mas que não fazia questão de falar com ele, só observava.
Mateus sorriu para ela.
一 Posso ter uma palavrinha com ele?
Ela sorriu de volta e assentiu. Deu espaço para os dois, o suficiente para não ouvir a conversa com clareza e ainda perto o bastante para socorrer qualquer um dos dois caso necessário. Mateus sentou ao lado de Paulo, que o olhou de soslaio, sobrancelha arqueada, e voltou a prestar atenção no xadrez. Na verdade, Mateus achava que era um jogo de damas, mas com peças de xadrez.
一 Eu sonhei com teu irmão.
Paulo virou a cabeça devagar. Havia um brilho diferente nos olhos dele, até que, de súbito, se apagou.
一 Samael, você quer dizer.
一 É, ele, sim. 一 Mateus concordou, apesar de ser uma meia-verdade.
一 E o que ele te disse?
Mateus negou com a cabeça.
一 Eu só quero que você saiba que eu estou bem, e você não detém poderes sobrenaturais que matam pessoas.
Paulo analisou-o de cima a baixo. As órbitas pareciam tremer dentro da cavidade ocular. Ele franziu o cenho.
一 Era um homem.
一 Ora essa, Paulo! 一 Mateus sorriu, travesso. 一 Claro, ué. Samael é um homem.
一 Não, moleque. Era um homem mortal.
一 E Samael não é?
一 Ele tinha um buraco na cabeça, não tinha? 一 Paulo circulou com o indicador o local da abertura do crânio do homem morto. Quando Mateus não respondeu, em partes porque sabia que não deveria, em outras porque não tinha certeza se os pulmões tinham ar o bastante, ele continuou: 一 Era meu pai.
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