Mateus chegou em casa naquela noite com o corpo formigando. Estava cansado, faminto e, o pior de tudo, curioso. Paulo apenas disse que, como o pai foi o primeiro a morrer, era quem aparecia primeiro; se havia um primeiro, havia um segundo, terceiro, quarto…
Ele não conseguiu ir atrás da família de Paulo no trabalho e teve de esperar o dia todo numa ânsia por respostas que muito provavelmente não o satisfariam. Estava caindo de sono, mas não podia dormir sem antes procurar qualquer informação, ao menos, era nisso que queria acreditar. Ter pensado tanto no assunto afetaria seus sonhos outra vez?
Sentou na cama com o computador velho no colo e, alguma hora, o excesso de sódio do macarrão instantâneo o faria infartar; mastigava com calma quando procurou o nome de Paulo completo no Google e clicou na notícia que falava do “acidente” com o irmão, quando ele foi hospitalizado. Não havia nada demais e não é tão difícil achar informações quanto os filmes fazem parecer: na notícia, o nome dos pais de Paulo e do irmão, Lucas, apareciam em letras garrafais. Mateus pegou o nome do homem e pesquisou pela certidão de óbito.
Um riso rouco interrompeu seus pensamentos. Mateus levantou os olhos, observou em volta até se dar conta de que estava procurando uma possível alucinação causada por privação de sono, então voltou a prestar atenção no documento. Procurou os dados familiares.
Ele deixou o prato de lado, aumentou o brilho da tela, o zoom, aproximou o rosto do computador. Não queria acreditar. Não podia acreditar, ou todos seriam incompetentes e não era possível que cada um da porra dos trabalhadores do Instituto fossem tão burros.
José Roberto Moreira Cabral deixou dois filhos: Paulo Luís Moreira e Lucas Ricardo Cabral. Não existia nenhum Samael.
O riso soou outra vez, mais próximo, mais desdenhoso, mais louco. Mateus sentiu um frio na barriga que subiu para o peito e ele quase parou de respirar. Olhou em volta de novo, porque alucinação ou não, era assustador e ele estava se cagando de medo. Não viu nada e a luz estava acesa, não dava para nada se esconder na claridade.
Mateus seguiu a leitura. A causa da morte foi um traumatismo craniano por acidente de trânsito, um ônibus.
一 Não está errado…
Num grito, Mateus jogou o computador para fora da cama e quase foi junto. O coração estava acelerado. Achou que ia se mijar outra vez. Ao seu lado, em pé e sorridente, estava José Roberto, o homem do crânio amassado.
一 …, mas eles não especificam o quanto você agoniza.
O cheiro podre existia agora. Era uma alucinação completa, quase real demais. José estava morto há mais de vinte anos, mas parecia ter começado a se putrefazer há menos de três dias. Mateus teve de segurar o vômito na garganta e ele queimou quando desceu de volta pelo esôfago.
José abriu mais o sorriso torto.
一 Eu vivi por dez minutos, dez longos minutos, e o que vi foi um menino, um mocinho, loirinho, a mão estendida, um sorriso bonito…
Longe demais, Mateus pensou. Isso já está indo longe demais.
一 …e ele me chamou e me levou num grande, graaaande barranco de pedra, com o mar lá embaixo, bem escuro e fundo, e disse que, um dia, meu filho também ia pagar.
Depressa e aos tropeços, Mateus levantou e saiu correndo pela porta. Trancou-se no banheiro enquanto José gargalhava, berrava, quase que chorava, mas Mateus não sabia exatamente o que era tão engraçado. Ele abriu a torneira e enfiou as mãos na água fria, jogou na cara e…
…o riso parou.
Mateus lavou o rosto mais algumas vezes. Esfregou os olhos. Quando os abriu, o reflexo era um homem sorridente; algo estava errado, mas Mateus não podia apontar o que era. Parecia algo humano demais, tão demais que deixou de ser humano. Ele tinha longos chifres. Era louro de olhos escuros e inquietos.
Era Samael.
一 Se não levar um…
Mateus deu um passo para trás. Estava maluco, não estava? Estava louco. O reflexo estava falando. Alucinou um homem morto e um estranho que podia ou não ser o irmão perdido de um paciente cuja credibilidade era inexistente.
Samael segurou-o pelo pescoço, não, não pelo espelho. No mundo real. Virou o rosto de Mateus para ele. De perto, notou como os dentes dele eram amarelados e pontudos e o sorriso era demasiado aberto. Os olhos escuros rodopiavam em pequenos redemoinhos numa profundidade tão extensa que Mateus sentiu, de verdade, que poderia se perder.
一 …, levo dois.
Era dia de visitas.
Mateus chegou no trabalho, outra vez privado de sono, e correu até o quarto 448. Abriu a porta com certa violência, mas Paulo não pareceu interessado até levantar os olhos do livro e ver como Mateus estava um lixo. Assim, então, os olhos dele arregalaram e a cor sumiu da pele bronzeada.
一 Menino…
一 Paulo, eu vi. Eu vi teu pai morto na minha casa, eu não estava sonhando. E teu irmão, ou seja lá quem for o Samael, e ele parecia um… um… demônio!
一 Mateus, escuta…
一 Eu não sou paciente nenhum p’ra estar maluco, Paulo! 一 Ele choramingou, assustado.
Até horas mais tarde, Mateus não percebeu como sua fala fora horrorosa, completamente desrespeitosa com os pacientes por quem ele tanto prezava, mas ali, naquele momento, era o que ele achava. Era medo. Não sabia se acreditava ou não em explicações que a medicina poderia dar e, em algum ponto, a explicação seria que Mateus também era doente e sua doença desencadeou, por mais uma vez, pelo paciente psicótico 448.
Paulo levantou da cama. Mateus não se mexeu, porque não acreditava que Paulo fosse machucá-lo, e estava certo. Ele apenas segurou seus ombros, aproximou o rosto dele do seu, e sussurrou:
一 Ele enlouquece todo mundo, moleque, porque ele quer minha alma, ele quer alguém que me mate, porque ele não consegue fazer com que eu me suicide. Eu preciso pagar pelas mortes que ele causou em meu nome.
Mateus respirou fundo, a mente rodou de um lado a outro, buscando qualquer justificativa plausível, até as palavras de Paulo se juntarem aos poucos, em vez de parecer um amontoado de sons sem sentido. Então, alguém enlouquecia os pacientes porque Paulo se sentia responsável pela morte de pessoas a quem ele tinha qualquer mínima ligação, mas não enlouquecia ao próprio Paulo… por que não conseguia?
Ele esfregou o rosto, então tirou as mãos do homem de si.
一 Oh, céus, desculpa, Paulo. Estou alimentando sua cabeça…
Paulo rosnou, frustrado, e deu as costas para Mateus.
一 Você não está alimentando nada, não há o que alimentar, moleque! 一 Ele se voltou para Mateus outra vez, as mãos na cabeça, nervoso. Mateus manteve a calma, mesmo que superficialmente, porque aquilo parecia o início de um surto psicótico. 一 O que todos vocês, uns merdinhas de médicos, têm contra mim é oh, ele surta depois de ver o irmão! E o filho da puta nem é meu irmão, porra, e é só isso! Eu nunca bati em nenhum outro coitado doente aqui, eu nunca falei com ninguém sobre esse tal delírio que vocês juram que eu tenho! Eu nunca fiz nada! É ele, ele e só ele!
Mateus manteve as mãos abaixo do peito, mas mostrou-as a Paulo, a fim de deixar claro que ele não pretendia machucá-lo. O coração batia rápido e os ouvidos zuniam. Ao fundo, ele escutou vozes, e assumiu que outros enfermeiros rondando o quarto andar viriam prestar socorro, porque Paulo gritava.
一 Não estou acusando você de nada. Eu procurei sobre seu pai e vi que Samael não está como filho no obituário, achei esquisito desde o começo, mas não me deram bola. Eu acredito em você nisso, está bem? Só nisso. Não posso fazer nada sobre o restante, Paulo. Não sei se você nunca disse nada a nenhum paciente de verdade.
一 Ah, mas você sabe, novato, e você sabe muito bem 一 Paulo aproximou-se devagar, apontando-lhe o dedo. 一 e você vai ver de novo a merda bater no ventilador.
Afinal, Paulo não teve surto algum. Calmamente, pediu para Mateus ir embora e, quando Mateus fechou a porta atrás de si, viu pela pequena vitrine que ele sentou na cama, costas na parede, joelhos no peito, e olhava pela janela do quarto, quieto.
Ao entrar no elevador, Mateus não percebeu, mas não havia enfermeiros naquele andar fora ele mesmo. Aquelas vozes… eram de quem?
Até a hora em que as visitas começaram a chegar, Mateus teve uma pulga atrás da orelha. Paulo, de fato, não tinha tido nenhum episódio naquelas duas, quase três semanas de Mateus com ninguém além de Samael. Mesmo aquele soco que Mateus levou na boca foi logo após a visita. Ele estava mesmo nervoso, estava aterrorizado, os surtos eram sempre acompanhados de muito medo.
Mateus não viu nenhum morto ou demônio de novo. Uma vez ou outra viu vultos pretos na visão periférica e pensou ter ouvido vozes, muito mais perto e muito mais sibilantes do que de pessoas à sua volta, mas como ainda não dormira mais de duas horas à noite, atribuiu ao sono. Hélio até comentou que ele parecia extremamente cansado, e Mateus contou sobre a insônia e que era provável estar alucinando, apesar de ter tentado soar brincalhão na última parte.
Hélio franziu o cenho e pareceu preocupado, mas não disse nada.
Já eram três e meia, as conversas de pacientes e seus familiares e amigos era um zumbido agradável, ainda que uma vez ou outra Mateus tivesse a certeza de que ouviu a risada de José Roberto junto com a de outras pessoas. Ele não soube porque saiu de trás do balcão e foi até a sala ao lado do jardim principal, mas sentiu que precisava se mover e, afinal, logo Paulo teria mais um surto e Mateus queria ajudar.
Parou na porta.
Paulo estava de costas. À sua frente, vestido inteiramente de branco dessa vez, sorrindo e gesticulando como se contasse uma história do seu dia, estava Samael. A sombra de Paulo no chão, alongada pelo ângulo do sol, tinha chifres. Foi quando Mateus percebeu que Samael não tinha sombra.
Alguém empurrou Mateus para passar, mas ele não se mexeu. Olhou em volta, esperando uma reação, qualquer reação, de algum staff ou outros pacientes, mas todos pareciam mais do que alheios à cena. Samael recostou-se na cadeira, e por meio segundo, Mateus jurou ter visto uma grande forma desfigurada e com asas tortas no lugar dele. Ele ainda sorria, relaxado, mas olhava para Mateus agora, acompanhado de um certo interesse.
Paulo virou o rosto por cima do ombro, estava branco feito papel, os lábios quase roxos e os olhos arregalados. Ele negou com a cabeça violentamente, como se pedisse para Mateus não se aproximar, mas não era como se conseguisse; estava com medo. Estava com um medo tão profundo que a única coisa que conseguia fazer era rezar, e ele não sabia como nem para quem rezar.
Samael se levantou e Paulo se encolheu como se procurasse um esconderijo. O corpo dele começou a chacoalhar, a cabeça dele ainda balançava de um lado a outro, Mateus não sabia dizer se estava chorando ou não e não importava, na verdade, porque a visão de Samael se aproximando em passos cuidadosos e quase saltitantes de tão alegre que estava era mil vezes pior.
Quanto mais perto ficava, mais o som do mundo exterior se apagava, assim como a luz: o arredor de Mateus ficou preto e sombras tão escuras quanto as trevas se materializavam aos seus pés. Eram mãos ossudas e sujas. Samael abriu os braços, como se o convidasse para um abraço.
一 Como se sente, querido 一 Ele começou. A voz era deliciosa, aconchegando Mateus, quase o sufocando. 一, sabendo que sua hora vai chegar?
Não é real, pensou. Não é real.
一 Oh, claro que é. Não que importe, já que ninguém vai acreditar em você, mas é bastante real.
一 Por que eu?
一 Porque você é fraco. 一 Samael sorriu. Era um sorriso normal e, de alguma forma, isso o deixava mais assustador. 一 E são.
一 Por que eu? 一 Mateus repetiu. 一 Por que só eu? Há tantos aqui… tantos outros…
一 Porque você não é egoísta, você é puro e fácil. Você já estava quebrado, lindinho, ou você acha que eu não saberia daquela tentativa de suicídio patética?
Mateus não conseguia respirar. Samael parecia ter seu coração nas mãos e o apertava tanto que logo ele escorreria entre aqueles dedos finos feito geleia; ele nunca comentou aquilo com ninguém, até porque não tinha para quem contar. Mateus não tinha pais e se afastou de todos os amigos antes de tentar se matar, depois, não voltou atrás.
As mãos fantasmas agarravam seus tornozelos.
一 Como… por que… Quem é você, Samael?
Samael sorriu um pouquinho mais. Ele tinha covinhas.
一 O querubim.
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