Mateus acordou num susto. Tinha um intravenoso no braço e Hélio estava ao lado dele, mexendo no celular. O mundo voltou ao normal, ao menos, em partes; as vozes esganiçadas e risonhas ainda rondavam por ali, e Mateus tinha a sensação de que algo o observava.
一 Que houve?
Hélio olhou-o por entre as sobrancelhas. Estava preocupado.
一 Oi, cara. Você teve uma convulsão.
一 E o Paulo? Ele…
Ele teve de parar de falar, porque metade de um rosto de fato o observava pela porta. Estava escondido. Sorria com muitos dentes e lábios rasgados e tinha olhos muito abertos. Deslizou devagar até desaparecer, como se não planejasse ser pego, mas o fato de ter sido visto não era importante.
一 Ei, tudo bem? 一 Hélio tocou-o suavemente na testa. 一 Hm, não está com febre.
一 Uh… claro. Paulo está bem?
一 Está, sim, não surtou tanto dessa vez. Ele perguntou bastante de você. Escute, a gente tem de investigar porque isso aconteceu, deve ter sido causado pelo cansaço e pelo calor, mas nunca se sabe, né?
一 É, certo. 一 Mateus resmungou, tirando o esparadrapo do braço e o intravenoso. Hélio se levantou num pulo, mas Mateus só apertou o local para evitar o sangramento e se sentou. 一 Estou bem, relaxa, eu só quero falar com o Paulo, quero saber como ele está.
一 Ele está bem, cara, deixa essa sua obsessão de lado, pelo amor de Deus!
一 Vocês viram Samael chegar? Viram ele ir embora?
Hélio desviou os olhos para a porta, talvez pensando em sair correndo, talvez também com a impressão de que algo observava, ainda que Mateus não visse o rosto de volta. Ele suspirou e olhou-o de novo no que parecia um embaraço.
一 Você o segurou pelo pulso antes que ele pudesse sair, daí caiu convulsionando. Ele ajudou a manter você estável, depois foi embora. Você o machucou, Mateus, sério, ele estava com o braço vermelho.
Ótimo, pensou.
一 Certo. Paulo está no quarto dele?
一 Jesus… 一 Hélio esfregou o rosto. 一 Está, cacete. Vai lá, se vai te deixar em paz.
Paz era uma palavra muito forte. Ele apenas queria entender o que estava acontecendo, porque não podia – nem queria – acreditar que tudo aquilo era real. Seria melhor se fosse, não? Porque não ser implicava uma doença, ainda mais com aquela convulsão.
Mateus chegou ao quarto 448 e entrou. Paulo sentava na cama, quieto, mas não estava amarrado, como era costume. O rosto estava vermelho e inchado; estava chorando?
一 O que ele fez comigo? 一 Mateus vociferou, batendo a porta atrás de si. 一 Que tipo de… de droga… de folie à deux… de… porra, eu sei lá, foda-se, o que está acontecendo?!
一 Ele escolheu você, menino, e eu não posso fazer mais nada. 一 Paulo murmurou. 一 Só posso esperar.
Mateus soltou um riso nervoso. O sangue esquentou e ele sentia que podia sair correndo e socar Paulo na boca, mas não podia, era só uma questão de tempo até voltar ao normal, estava só cansado, estava chateado, estava tudo menos sob o próprio controle. Precisava achar uma resposta e descansar, e pronto, tudo certo, estaria tudo bem.
一 Esperar o quê? E, como assim, não pode fazer mais nada? O que você fez para início de conversa? Você acha que fez algo para ajudar?
一 Você resolveu se aproximar. Você se mostrou interessado, e eu fui um imbecil de te contar, e não, eu nunca fiz nada para te ajudar, porque não tem como, moleque. Você e eu estamos fadados a morrer agora.
一 Para de falar merda, porra! Para de me enlouquecer!
一 Eu não estou fazendo nada.
一 Ah, é, claro, é o querubim faze…
一 Ele te disse? 一 Paulo interrompeu. As pupilas estavam contraídas. 一 Ele se chamou assim para você?
Mateus esfregou o rosto. Estava formigando. Achava que ia desmaiar e convulsionar de novo.
一 O que isso importa?
Paulo levantou e segurou Mateus pelas bochechas. As mãos dele estavam frias.
一 Sabe o que é um querubim? É um dos anjos mais próximos de Deus. Mensageiros, guardas, tão cheios de luz, de graça, e sabe quem era um querubim, Mateus? 一 Ele esperou por uma resposta, mas Mateus não disse nada. Não sabia o que dizer. 一 Você sabe de quem é o nome Samael?
一 Estou dando ouvidos a um louco…
Paulo apertou as bochechas de Mateus que, sem querer, mordeu a boca. Os olhos lacrimejaram e ele piscou para conseguir enxergar melhor; uma sombra crescia atrás de Paulo, um imenso par de chifres com longas ramificações, como se saíssem diretamente da cabeça dele.
一 Lúcifer, moleque. Samael é o nome do anjo que Lúcifer um dia foi.
Foi um ímpeto começar a gargalhar. Mateus não sabia o que era engraçado, talvez porque nada fosse engraçado, talvez porque o riso fosse nervoso, amedrontado, fosse um pedido de socorro e, por um instante, ele ouviu o riso de José Roberto no lugar do seu próprio. Foi assim que Mateus percebeu que José não estava rindo porque desejava o sofrimento de outrem; ele ria porque não tinha escolha. Porque rir era tudo o que lhe restava. Porque ele também estava com medo de Samael, de Lúcifer.
一 Ah, certo, certo. Você está me dizendo que estou sendo atormentado por, com licença, Lúcifer? Por que um maluco metido a homicida acredita que foi ele quem matou o pai? Matou a namorada? O dono do bar? Porra, Paulo, me er…
Ele demorou um instante para perceber o que aconteceu. A bochecha ardia e, agora, as orelhas queimavam. Tinha levado um tapa.
Quando virou o rosto, Paulo o encarava como se nada tivesse acontecido.
一 Espero que ele te poupe, moleque, porque isso… 一 Paulo olhou-o de cima à baixo. 一 Já não é mais você. Vaza daqui.
Mateus deu as costas. Não fez questão de responder, não sabia bem se ficava grato ou insultado ou ambos. Como assim, não era mais ele? Ora, ele deixou de ser Mateus Silveira Modesto? Ao olhar no espelho do elevador, concluiu que não, não deixou.
Alguém, entretanto, tinha deixado de ser algo.
Era o mesmo rosto de antes, da porta, parado ao lado de seu reflexo cansado. Era enegrecido, cinzento, e Mateus percebeu que o corpo fora queimado. Tudo fora queimado, menos olhos, o que não fazia sentido, porque olhos derretem, mas alucinações não precisam ter sentido, não é? O homem - ao menos parecia um - sorria, e o sorriso parecia doloroso.
一 Não vai demorar. 一 Ele disse. 一 Nunca demora.
Mas Mateus não tinha certeza se de fato o cadáver tinha dito aquilo, porque a voz dele eram sopros. Quando piscou, o homem estava ao seu lado. Num grito, Mateus mirou e tentou acertá-lo com o punho, mas o homem queimado não existia de verdade, existia? Não, claro que não. Então, Mateus acertou o espelho, e o sangue quente espirrou para os lados.
Mateus foi dispensado pelo restante do dia, mas se negou a ir embora. Obrigaram-no a sair, ele não queria, a ideia de ir para casa o assustava mais do que ficar; ele tinha desculpas? Não sabia. Não tinha certeza se aquilo era cansaço ou se estava doente e as alucinações foram culpa de Paulo. Como poderia ser? E como poderia não ser? Não conseguiu, entretanto, driblar Marta, e foi para casa.
Ele foi incapaz de fazer qualquer coisa que não fosse sentar contra a parede, encarar o quarto e observar o estrago nos nós dos dedos. Ainda estavam sanguinolentos e ardiam. Pensou em dormir, mas como? O que deveria esperar? O homem queimado de novo? Outro morto qualquer? Lúcifer? E pensou oh, inferno, eu estou levando isso a sério? Como não levaria? E por que sua sombra tinha chifres agora?
Trêmulo, Mateus levou as mãos à cabeça, e era claro que não havia chifres. Olhou para cima, para o teto. Nada estranho.
Mateus não percebeu quando a noite caiu e que os olhos dele queimavam pelo sono, que ele desesperadamente precisa urinar, que um banho cairia bem, mas ele queria mesmo ir ao banheiro e arriscar ver Samael? Arriscar ver aqueles olhos, sentir aquela mão agarrando-lhe o pescoço, e oh, porra, eu estou levando isso a sério.
Dormiu, e não sonhou. Tinha urina nas coxas. O pescoço doía. Olhou com cuidado em volta do quarto, levantou e, com xixi pingando das suas pernas, andou pelo apartamento, procurando algo, procurando alguém, mas não encontrou nada. Sua sombra não tinha mais chifres. Era cansaço.
Foi ao trabalho assobiando. Hélio comentou que, enfim, Mateus parecia gente, e Mateus sorriu.
一 Eu disse que só precisava dormir!
Ele estava errado.
Não encontrou Paulo naquela manhã. Ele se recusou a sair do quarto e recusou-se a ter contato com qualquer ser vivo. Mateus foi até o quarto andar e bateu na porta do quarto de Paulo, que sentava na cama a observar a janela. Parecia falar com alguém e Mateus assumiu que estava alucinando, por isso não ouviu suas batidinhas, mas quando virou um pouco a cabeça, viu que Paulo conversava com uma pessoa.
Samael.
Sentiu-se nauseado e o peito doía. Abriu a porta com certa violência, e Samael olhou para ele, sorridente.
一 Oh, se não é o meu escolhido!
Mateus piscou. Olhou para Paulo, que murmurava baixinho, e pelos lábios dele, Mateus entendeu que ele rezava.
一 Não é dia de visitas, Samael. 一 Avisou. 一 Vá embora.
一 Todo dia é dia de visitas. 一 Samael revirou os olhos na direção de Paulo. 一 Quer parar com isso? Suas rezas têm o mesmo efeito que quimioterapia em pacientes terminais.
Confuso, curioso, assustado de querer aproximar-se de Samael, Mateus deu dois passos para frente.
一 Não… funcionam?
一 Se forem tão vazias quanto o deserto é seco, não. Rezar para um Deus que você nunca acreditou só porque está com medinho é um pouco hipócrita, não acha?
一 Não é… não é suposto Deus ajudar a todos?
一 Cale a boca, moleque. 一 Paulo interrompeu. 一 Ele só quer fazer a sua cabeça.
一 Já fiz 一 Samael estendeu a mão. Ainda sorria, e a luz do sol brilhava tanto em volta dele que Mateus quase podia ver uma auréola sobre sua cabeça. 一 e nem precisei de muito.
一 Você é só um cara qualquer, muito esquisito, que gosta de perturbar o irmão doente. Vá embora.
Samael se levantou. Subitamente, parecia muito alto; suas vestes brancas reluziam em dourado, os cabelos louros escureceram, ele abriu os braços com um ar convidativo. Seus olhos eram grandes e vermelho escuro, quase negros, e o sorriso, apesar de bonito, apesar de educado, era falso. Era venenoso, violento e, mesmo com aparência tão angelical, chifres surgiam atrás de sua cabeça, aqueles mesmos chifres que, no dia anterior, pareciam sair da cabeça de Paulo, e pareciam porque não saíam da cabeça dele, saíam da cabeça de Samael, porque Samael sempre estava lá, não estava? Sempre estava observando, sussurrando, rindo.
Oh, não, não era Samael, não poderia ser mais. Era Lúcifer.
E Lúcifer era perfeito.
一 Todos são irmãos aos olhos de Deus.
Mateus não se moveu, deixou que o homem estivesse tão perto a ponto de beijá-lo, e Lúcifer continuou:
一 Você é meu.
Num piscar de olhos, ele sumiu, e só Paulo e Mateus estavam no quarto, encarando um ao outro. Paulo tinha olhos avermelhados.
一 Eu não quero morrer. 一 Ele disse, a voz trêmula e agoniada. 一 Eu não quero morrer, mas ninguém que eu… que ele matou queria morrer. Talvez merecessem. Eu mereço, Mateus? Eu mereço morrer?
一 Você não vai morrer!
一 Puta merda, moleque, aceita que estamos os dois no fundo do poço, que você vai me matar, que você vai ser o maluco aqui no Instituto no meu lugar!
Mateus voou para cima de Paulo. Empurrou-o contra a parede tão forte que ouviu o baque da cabeça dele e a forma que os olhos dele escureceram pela dor por alguns segundos, a forma como ele enrijeceu, e Mateus saiu de cima dele, assustado. Apenas apontou-lhe o dedo.
一 Eu não vou te matar, eu não mato gente. Não sou igual a você.
一 Eu não matei ninguém, seu imprestável!
一 E o seu irmão em coma, hm? 一 Mateus sorriu. Pensou ter ouvido um riso. 一 E Lucas? Não matou, né? Mas tentou.
Paulo sorriu e, num instante, começou a rir. Ele também chorava, e Mateus percebeu que a risada era idêntica a de José: a risada de medo.
一 Oh, céus, ele conseguiu. Ele conseguiu você.
一 Que merda você está falando, Paulo? Eu estou bem!
Mas Paulo não respondeu, apenas abaixou a cabeça. Mateus deu as costas. Estava cansado.
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