Ele não entendia de onde vinham os gritos, e não entendia porque não paravam. Procurou por todo lado, falou com os vizinhos, e mesmo com fones de ouvido, Mateus não deixou de ouvir dolorosos gritos e pedidos de socorro. Mais uma vez, não conseguiu dormir, e sabia que seu dia seguinte seria mais que insuportável: Hélio enchendo seu saco, Paulo jurando que Mateus era um assassino.
No trabalho, contou a Hélio sobre a nova paranoia de Paulo, e recebeu mais uma vez uma bronca por se envolver com o paciente mais problemático do Instituto. Mateus perguntou sobre os gritos, distraidamente, mas Hélio apenas o olhou torto. Ele soube que era melhor calar a boca quando foi perguntado se deixou de dormir outra vez.
Mateus estava no elevador, bandeja em mãos para levar medicações a um dos pacientes do quarto andar que não era Paulo, olhando para baixo, porque o espelho ainda estava quebrado, porque ele estava com medo de ver um novo alguém. As portas abriram e, no primeiro passo, ele deu um berro.
Pouco a frente do elevador, um corpo se arrastava no chão; não, meio corpo se arrastava. Era uma mulher, a pele marrom empalidecida pela perda de sangue, os olhos opacos, os intestinos amassados deixando um rastro de fezes, a coluna quebrada fazendo sons molhados conforme ela se mexia. As partes dos braços que ela usava para se mover estavam tão feridas que ele via os músculos.
A mulher – ou o que sobrou dela – esticou o braço na direção dele. Mateus viu que os ossos do cotovelo estavam expostos. Ela abriu a boca, e ele esperou risos histéricos, mas ela fez pior: gritou.
Eram gritos agonizantes, horrendos, que pediam misericórdia, gritos profundos, usando as últimas forças que ela tinha. Eram os gritos que ele não parou de escutar desde a noite anterior.
O choro amarrou um nó na sua garganta.
一 Eu não… eu não posso ajudar…
一 Claro que pode.
A voz vinha de trás. Mateus olhou por cima do ombro e encontrou o homem queimado, agora com fumaça saindo de pontos aleatórios de seu corpo; o cheiro era acre e, ao mesmo tempo, doce, e Mateus assistiu em horror os olhos do homem enfim começarem a derreter.
A mulher continuava aos berros.
一 Você sabe como, não sabe, filho? 一 O homem soprou. Mateus viu o que eram cordas vocais carbonizadas tremerem. 一 Você sabe como fazer parar.
一 Eu não… eu não sei. Eu não pos…
一 Você sabe qual a resposta.
A moribunda agarrou o tornozelo de Mateus.
一 Não sei, eu juro, eu quero ficar em paz!
一 Só tem um jeito. 一 O homem levantou o dedo ossudo com a carne queimada. 一 Qual é? Qual é? Qual é?
一 Já disse que não sei!
Os gritos estavam mais altos. O coração de Mateus batia tão forte que ele jurou vê-lo para fora do peito; estava com raiva, estava sobrecarregado, era um bonequinho, um merdinha, não o levavam a sério, nunca o levaram e nunca levariam, e se ele…
一 CALE A BOCA, PORRA! 一 Berrou. Com um chute, ele decepou a mulher como se a cabeça dela não fosse mais que uma bola de futebol. Observou-a rolar, ainda resmungando, até que parasse.
O homem soprou um risinho. Quando Mateus virou para olhá-lo, ele não estava lá. Quem estava mais adiante era Paulo, esperando à porta de seu quarto, pálido, assustado, e Mateus largou a bandeja no chão para correr atrás dele.
一 Tira esses merdas de perto de mim! Diz para pararem, Paulo, acaba com essa palhaçada antes que eu te quebre na porrada, seu lunático do inferno!
Ele não chegou a tempo e deu de cara com a porta do quarto 448. Paulo trancou-se e olhava para Mateus com olhos arregalados, com suor na testa, com pena no rosto, e Mateus odiava pena, Mateus odiava aquela simpatia falsa, odiava quando achavam que ele não era alguém de verdade, era só um moleque bobo, era só um jovenzinho imbecil, ele odiava tanto, mas tanto.
一 Abre a porta, Paulo, ou eu arranco ela das paredes.
Paulo suspirou e negou. Mateus forçou a maçaneta para baixo, e a raiva já começara a dar calafrios e revirar seu estômago.
一 Paulo, eu juro por Deus…
一 Não jure por quem não pode te ouvir.
Mateus virou de costas. Não era Paulo falando, era a voz de Lúcifer, sussurrando à sua nuca, mas não havia ninguém no corredor exceto ele, e a boca salivou, a azia queimava todo seu esôfago, a visão afunilava, e quando Mateus voltou a olhar para a porta, o vômito subiu pela garganta e ele cuspiu na janela de vidro.
Por alguns segundos, Mateus não concebeu a ideia do que via, de que a consistência pegajosa do vômito era composta por mais que seu café da manhã, era composta por larvas gordas e amareladas, rastejando por cima uma das outras, caindo aos seus pés.
一 Menino 一 Paulo chamou. 一, está tudo bem?
Mateus não conseguiu responder, só vomitou outra vez. As larvas pareciam ter se prendido na sua garganta. Ele gorfou, agarrou o pescoço, cravou as unhas na pele; precisava tirá-las dali. Estava morrendo? Como tinha larvas no estômago? Por que ele tinha de sofrer no lugar de um homem que destruiu a própria vida? Por que o desgraçado só não morria logo?
一 Oh, querido, você pode resolver isso. 一 Lúcifer sussurrou de algum lugar, de todos os lugares, de nenhum lugar.
Será?
O mundo voltaria ao normal se Paulo morresse? Não, se fosse morto? Mateus podia mesmo resolver? Era simples, não era? Pessoas morrem e são mortas o tempo todo, não é? Qual a diferença, se vão acabar debaixo da terra, no escuro, comidos por vermes?
Paulo abriu a porta. Mateus olhou-o, confuso, até que notou que estava ajoelhado em cima de um pouco de vômito, a pele do pescoço ardia e, quando olhou para as próprias mãos, viu que tinha sangue embaixo das unhas. Procurou pelas larvas, mas elas não existiam.
一 Agora… 一 Mateus arfou, irritadiço. 一 Agora que ele foi embora… você…
一 Ele não foi embora, moleque, só quer te dar a falsa impressão de que essa vez vai ser a última, mas não vai, nunca vai.
一 Faz parar, Paulo, faz parar…
Paulo suspirou. As pupilas estavam dilatadas, a expressão era uma mistura de medo e confusão. Aqueles chifres, aquelas sombras estavam lá outra vez.
一 Não posso.
Mateus sabia se tratar de um sonho, mas o fato não deixava-o menos aterrorizado.
Era um quarto. Ele estava em pé, no canto direito da porta, olhando para si mesmo com um caco de vidro na mão já ensanguentada. Estava de uniforme, este com manchas escuras que empapavam a camiseta no seu torso; pelo ângulo, Mateus conseguia ver que aquela sua cópia esquisita tinha o nariz sangrando, e ele sorria, mas não era seu sorriso, era um sorriso advindo de uma colagem mal feita.
Ele percebeu que, adiante, Paulo se escondia atrás da cabeceira da cama, estava encolhido e murmurava para si. O rosto dele tinha respingos de sangue.
A Réplica, como Mateus decidiu chamá-lo, olhou para ele. Mateus reconheceu o sorriso como o de Lúcifer.
一 É assim que vai ser. 一 A Réplica disse, a voz também de Lúcifer.
Mateus assistiu a si mesmo correr para cima de Paulo, que nada fez além de tentar agarrar o pulso da mão com o vidro. Sem sucesso, a Réplica esfaqueou-o no peito, e ele gorgolejou:
一 Me perdoe.
Não satisfeita, a Réplica atingiu-o no pescoço. Sangue espirrou para todos os lados quase que violentamente e, numa realização tenebrosa, Mateus percebeu que sentia no próprio rosto os jatos quentes, e que o sangue de Paulo era de um amargo prazeroso.
Ele apertou os olhos. Ao abri-los, não estava mais parado observando. Estava em cima do corpo de Paulo, olhando para seu rosto desfigurado, com carne rosada e músculos à vista, o nariz aberto, a língua pendurada para o lado pingando uma saliva escura, os olhos amassados e gosmentos.
Mateus não conseguia se mexer. Ao pé de seu ouvido, a voz de Lúcifer, risonha e feliz, sussurrou:
一 O final, é surpresa.
一 Ei, cara.
Mateus virou a cabeça para o lado. Perdeu o ar.
一 Eu… 一 Murmurou. Sentia o choro amargando a boca. 一 Como eu vim parar aqui?
Hélio arqueou a sobrancelha.
一 Do que você está falando?
Mateus olhou para o rosto do colega e piscou. Esfregou o rosto. Estava sonhando antes, tinha certeza, mas como foi para o trabalho? Esqueceu-se do caminho? Não lembrava sequer de acordar e sair da cama, oh, tinha mesmo acordado? Aquilo poderia ser uma reviravolta no sonho, não? Uma reviravolta muito real, tão real quanto a realidade, tão real quanto o mundo podia ser, até o zumbido confortável das conversas de fundo, as risadas, os sapatos dos enfermeiros para lá e para cá, o farfalhar das fichas do balcão…
Era real, não era? E ele não se lembrava de nada. Abaixou os olhos.
一 Nada, só me distraí.
一 Você está bem, querido?
Mateus olhou entre as sobrancelhas ao mesmo tempo que, ao fundo, Paulo deu um berro. A sua frente, assinando o caderno de visitas sem a menor preocupação, estava Samael; estava Lúcifer. Os olhos dele eram dourados com anéis vermelhos em volta. Tinha chifres, e Mateus odiou pensar em como eram chifres bonitos. Tinham detalhes dourados e pulsante feito veias.
Mateus olhou para Hélio, que observava, sem piscar, com bochechas rosadas e um tanto quanto ausente, o homem à frente deles. Pelo visto, só ele estava vendo algo de errado. Hélio parecia prestes a ter um orgasmo.
Lúcifer soltou a caneta e sorriu.
一 Acho que seu amigo precisa de ajuda.
O primeiro impulso de Mateus foi subir no balcão e colocar as mãos naquele pescoço fino e esganar Lúcifer até que a morte tornasse seus olhos opacos. Não sabia se existiu um segundo impulso porque, quando se deu conta, tinha pulado o balcão da recepção. Diferente da sua fantasia, ele não esganava Lúcifer, apenas aguardava à frente dele, cujo tinha as mãos atrás das costas e ainda sorria abertamente.
O mundo atrás dele era escuro, como se tivesse passado por um filtro fotocromático. Um cheiro podre vinha da sala de visitas, risadas esganiçadas, choros e gritos doloridos, coisas se arrastavam no chão, e Mateus teve medo de ver aquela mulher cortada ao meio, agora, sem cabeça.
Lúcifer deu um passo para o lado e mostrou o caminho com a mão.
一 Vá, querido.
Mateus não queria ir. Não queria ver Paulo, ou entrar em contato com aquelas coisas, com nenhuma delas, fossem o que fossem, mas os gritos começavam a ser demais, as risadas eram enlouquecedoras, e um sibilo distante vinha devagar abraçá-lo como uma cobra prestes a se enrolar no seu jantar. Mateus não queria mais ouvir, não queria mais ver, não queria ter nada a ver com aquelas merdas.
Suas pernas se mexeram sozinhas.
Na sala de visitas, as paredes estavam podres. Os risos e gritos que Mateus escutava, em maioria, vinham de um grupo de coisas ossudas com sorrisos largos ou faltando membros, para além de, o mais alto de todos, ser Paulo.
Ele brigava com os enfermeiros que tentavam segurá-lo. O coração de Mateus acelerou e seu corpo tremeu com a ira; não bastava Paulo foder com a própria vida, ele também tinha de foder com a vida dos outros? Transformar tudo num inferno sem fim? Por que ele não morria logo de uma vez, se era isso que tanto almejava?
Mateus gritou. A garganta arranhou e ardeu. Ele pegou a primeira coisa que viu pela frente ‒ uma bandeja de alumínio com copos de plástico ‒ e correu até Paulo. Estranhamente, nem uma alma sequer tentou pará-lo, e os enfermeiros que seguravam o temível, o imprestável, o vagabundo filho da puta do paciente 448, soltaram-no. Paulo levantou os braços, mas Mateus bateu com a bandeja neles.
Paulo deferiu-lhe um soco que Mateus nem sentiu. Ele bateu com a bandeja no rosto de Paulo.
一 Por que você não morre? 一 Berrou.
一 Porra, Mateus, tá maluco?
Mateus parou. Era a voz de Hélio.
Virou o rosto. Ainda estava atrás do balcão. Lúcifer tinha desaparecido, e Hélio tinha um corte no lábio. Mateus sentiu-se desligar do próprio corpo por meio segundo, então percebeu que Paulo ainda gritava ao fundo.
一 Desculpa! 一 Suplicou, aproximando-se.
一 Você ficou doido. 一 Hélio deu um passo para trás. Tinha um sorriso descrente no rosto e olhos bastante tristes, o que deixou Mateus ainda pior. 一 Você ficou doido, cacete, você é doido. 一 Ele limpou o sangue da boca.
一 Não! Não, o Paulo…
一 Vai tomar no cu, porra! 一 Hélio gargalhou. 一 Se ele te convenceu dessas merdas, é porque você é maluco igual! Você devia estar aqui, internado, seu bosta!
Mateus socou-o de novo, mas dessa vez, sabia o que estava fazendo.
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