Ele foi demitido, para a surpresa de ninguém, é claro.
Não sabia se “demitido” era a palavra certa, “enxotado” talvez fosse melhor. Expulso. Não deixaram que pegasse suas coisas, sequer. Pegaram-nas dos armários dos funcionários e jogaram para fora do portão junto com ele.
E Mateus não estava triste, nem envergonhado, nem qualquer merda que se esperaria sentir numa situação daquelas; estava com raiva. Estava com tanta, tanta raiva, mas, oh, não, não era raiva de Hélio, não era raiva do patrão, de Marta, do raio que o parta, era raiva daquele fodido do Paulo, dos mortos-vivos imprestáveis, do merda de Lúcifer, Samael, o irmão perdido, foda-se! Foda-se, foda-se, FODA-SE!
Paulo podia morrer. Paulo podia morrer e acabar logo com aquela história.
Não soube quando chegou em casa, não soube quando parou e sentou no canto do quarto, não soube quando passou a ver aquelas sombras, aquelas mãos podres tentando se agarrar em qualquer coisa que fosse real, os risos, os gritos, e ele tinha certeza de ouvir aquela mulher decepada, o riso de José, os murmúrios do homem queimado, e Mateus não sabia quem eram, nunca saberia, porque não podia mais falar com Paulo, mas será que queria mesmo saber? Será que valia a pena?
Esfregou os olhos. O corpo doía. As mãos estavam em chamas. Quando piscou, Mateus estava de novo naquele sonho onde um caco de vidro estava na sua mão e ele esperava por Paulo. Mais uma vez, não lembrava de como aconteceu. Não lembrava de ter adormecido.
Neste sonho, já esperava de pé; sentia-se sorrir. Lúcifer estava parado na sua diagonal, e Mateus via-o com a visão periférica. Agora, Lúcifer era apenas Samael. Um moço bonito, charmoso e misterioso que sorria também. Usava um terno branco com gravata vermelha.
一 Ele pode morrer. 一 Samael sugeriu. 一 Pode, se você o fizer.
Era tentador. Era muito tentador. Mateus ficaria tão feliz.
Ele apertou o vidro na mão. Doeu, queimou, e o sangue quente que pingou no chão era tão convidativo, tão exigente, me deixe sair, me deixe pingar, me deixe espirrar. Será que o sangue de Paulo falaria o mesmo?
Samael apontou para a janela. Paulo esperava, murmurando orações, embaixo dela.
一 Não quer descobrir?
Queria.
一 É um sonho, não é? 一 Mateus sussurrou. 一 Ele não vai morrer de verdade. Então, por que matá-lo?
一 Por que não?
Mateus pensou. Samael alargou o sorriso; ele era convincente.
Em passos grandes, Mateus foi até Paulo. Já sabia o que esperar; Paulo tentou segurar seu braço, mas não teve sucesso. Mateus perfurou seu peito, a pele e a carne abraçando o vidro, engolindo-o, o sangue escuro jorrando, misturando-se com o de Mateus, mas ele não falava, ele não dizia nada além de um murmúrio lamurioso.
Mateus podia tentar com que falasse.
Era tão bom saber que Paulo ia morrer. Era tão bom saber que aquilo ia parar, aquelas vozes, aquelas visões, era tão bom que parasse, ao menos por um minuto, ao menos num mísero sonho, porque Paulo fodeu a vida de Mateus, Paulo fodeu tudo.
Paulo ainda lutava e tentava se livrar dele. Mateus apertou com mais força o caco de vidro, porque o sangue o deixou escorregadio, e esfaqueou-o no pescoço, os jatos quentes indo para todo lado, até para seu rosto, e assim, Mateus percebeu que o sangue de Paulo era de um amargo prazeroso.
Viu-se atingir o rosto de Paulo uma, duas, três vezes, a pele abrindo, os choques de quando sua mão batia nos ossos, olhando para seu rosto desfigurado, com carne rosada e músculos à vista, o nariz aberto, a língua pendurada para o lado pingando uma saliva escura, os olhos amassados e gosmentos.
Lúcifer riu. Era mesmo Lúcifer agora.
Mateus piscou, seu corpo todo começou a latejar. A mão estava ardendo. Quando esfregou os olhos, o rosto ficou molhado, e ele sentiu algo quente escorrer para seu rosto. O gosto era terrivelmente amargo.
Através do vermelho, Mateus viu o corte profundo da sua mão que ainda segurava o caco de vidro; não soube onde conseguiu. À sua frente, estava Paulo…
一 Oh, não. 一 Mateus choramingou.
Os gritos atrás de si começaram a parecer reais o bastante e, quando olhou por cima do ombro, viu alguns enfermeiros tentando abrir a porta, o segurança aparecendo em seguida.
Mateus matou um homem.
Ele enlouqueceu e matou um homem com as próprias mãos. Estava sentado em cima de um corpo que dali a horas estaria frio. Estava em cima de uma piscina de sangue grosso.
O desespero consumiu-o tão rapidamente que a única coisa que conseguiu fazer foi vomitar. O peito parecia rasgar, a dor era tão ardente quanto fogo, sua cabeça era um terror; Paulo estava certo, Paulo tentou avisar, Paulo fez tudo o que podia ter feito, Mateus não o escutou, e agora, Paulo estava morto.
Mateus matou um homem.
Estava chorando. Vomitou de novo. Engasgou-se no vômito e nos soluços. Oh, céus, oh, como poderia ter feito algo tão horrendo, tão violento, cheio de ódio, cheio de dor?
Ainda segurava o vidro. Olhou para ele.
Mateus matou um homem.
Lúcifer segurou o queixo de Mateus e inclinou-o para cima. Ele sempre foi lindo, não é?
一 Não só um, querido.
A porta do quarto abriu.
Mateus fincou o vidro no pescoço e abriu um grande sorriso abaixo do seu pomo de Adão ‒ o primeiro homem de todos os homens. Ele forçou ainda mais, e sua cabeça caiu para trás, quase descolada da cabeça, e Mateus não sabia como ainda estava vivo, mas estava, e gorgolejava, engasgava no próprio sangue, e não conseguia respirar, e o mundo ia sumir, o mundo tinha de sumir, a culpa iria embora, era sua desculpa para Paulo, era seu pedido mais sincero de desculpas.
Mateus matou um homem.
Não, não só um.
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