Capítulo 07 - “Borboletinha”
05 de Março.
Quando as portas da limusine se fecharam, Alister me entregou uma sacola de papel, com um símbolo que provavelmente era o de alguma loja mais cara do que eu poderia pagar.
- Você vai gostar, Céu Azul. Eu ajudei o senhor Alister a escolher. - Frost estava sentada ao meu lado direito, sorridente e ansiosa pela minha reação.
Olhei de canto e vi que Aki, por outro lado, estava sentado ao meu lado esquerdo, completamente indiferente, olhando as ruas pela janela.
Abri a sacola rapidamente e, quando peguei o conteúdo dela em mãos, deixei escapar um sorriso. Uma calça jeans.
- Como sabiam que a minha tinha rasgado? - Eu olhei cuidadosamente a peça de roupa. Não era idêntica a minha calça favorita, mas era extremamente parecida. Sem contar o azul escuro vibrante indicando ser uma calça nova em folha.
- Akira me falou antes de eu chegar. Então, aproveitei e passei em uma loja para te comprar uma nova. - Alister disse, encarando Aki com o canto dos olhos. Os lábios tremeram levemente suprimindo uma risada ao ver o japonês irritado virando o rosto para não trocar olhares com o mais velho.
- É linda, muito obrigado, Alister e Frost. - Eu a dobrei novamente para guardá-la de volta na sacola e, em um deslize, diminui a distância entre eu e Aki. - E obrigado à você também, Aki.
O toque físico entre meu corpo e o dele fez com que o de cabelos castanhos mexesse o braço levemente para me afastar, ainda sem fazer contato visual.
- Eu não fiz nada demais. Não tem motivos para me agradecer.
Ríspido como sempre, mas ainda sim me fez alargar mais o sorriso.
- Ah, chefe. - Noah chamou, sentado ao lado de Alister um pouco a frente. O bruxo estava tão anormalmente quieto que havia me esquecido que também estava lá. Ele acaba de terminar uma ligação. - Estava falando com a Daiyu. Me parece que tinha um cara te procurando mais cedo.
- Que cara? - Eu franzi minhas sobrancelhas. Meu subconsciente havia me respondido antes de qualquer um. “Jeffrey, com certeza”, eu pensei.
- Não sei… Ela disse que não sabia quem era. Mas ele se identificou como “Lexy”. - Noah olhou a tela do celular de forma confusa, quase como se tentasse reviver a conversa que teve segundos atrás na ligação com a secretária. - Este nome lhe é familiar?
Me esforcei para pensar. Foi como se eu fosse em uma estante de arquivos velhos e empoeirados na minha mente. Haviam muitos nomes lá, mas nenhum se parecia com “Lexy”.
- Talvez seja alguém da Divisão dos Lobos. - Aki falou, ainda severo mas virando-se para nos encarar enquanto conversava. - Antes de chegar no farol, a líder deles me enviou uma mensagem dizendo que queria marcar uma reunião com Lúcifer. Era sobre um resgate ou algo assim.
- Ora, mas se ela te mandou mensagem, por que mandaria um membro da divisão dela para procurar o chefe pessoalmente? - Noah perguntou, erguendo uma sobrancelha enquanto suspeitava da informação.
- Vejamos… O que você respondeu a ela, Aki? - Eu perguntei, fitando o de olhos verdes.
- Disse que não era problema meu. - Aki deu de ombros como se não houvesse outra resposta possível para a situação que acaba de contar. - A Daiyu é sua secretária, não eu.
- Está explicado. - Alister disse, enquanto deixava escapar uma risada anasalada.
- De qualquer forma… - Noah suspirou, como se estivesse cansado de ser o único que, ao menos, parecia ser sensato dentre nós. - …Certifique-se de colocar uma roupa normal quando chegar no nosso prédio. Se o cara ainda estiver lá você não pode recebê-lo vestindo um sobretudo e nada por baixo. Vão achar que você é um pervertido–
- Já pensam isso. - Aki e Alister disseram de forma sincronizada, como uma sinfonia.
Chegamos na cidadela discretamente, ao entardecer. Alister insistiu em ficar, achando que precisaríamos de mais alguma ajuda, mas o acalmei e expliquei que já estava tudo bem. Tudo o que ocorreu com as hienas foi apenas uma situação atípica e apenas isso, apesar de trazido de volta o “Alister protetor”.
Me troquei em um dos andares baixos do prédio e pude perceber que, além de terem providenciado uma nova calça para mim, também costuraram minha jaqueta. A linha estava tão fina e suave que mal dava para notá-la ali. Eles pensaram em tudo.
Deixei Aki e Noah na recepção. Eles ficaram encarregados de localizar Bolt já que, como líder, não posso deixar impune alguém que quebrou tantas regras em uma luta só. Já deixei passar muitos erros das hienas mas este último foi inadmissível.
Por fim, entrei no elevador. Normalmente Frost subiria comigo, mas já que era algo rápido, a deixei junto dos outros dois.
Queria checar algumas coisas no meu escritório já que Aki citou que a líder da Divisão dos Lobos havia falado com ele sobre uma reunião. Talvez ela tivesse me mandado uma carta ou algo importante que acabei esquecendo de ver mais cedo.
No momento em que as portas de metal se abriram eu notei, de imediato, as luzes acesas. Franzi minhas sobrancelhas e hesitei antes de dar o primeiro passo.
Os únicos que usam este andar são os membros da equipe principal que, com exceção de mim e Robbie, que está em uma missão, estão todos lá embaixo, na recepção.
Olhei em volta ainda cuidadoso, mas não vi ou senti a presença de ninguém. Talvez, no dia anterior, quando saí apressado para ver as pessoas da cidadela, tenha esquecido a luz ligada. De qualquer forma, andei até as portas de vidro entreabertas e entrei no meu escritório. Tinha uma gaveta onde guardava cartas e outras coisas que recebia de outros líderes de divisão então, se a líder dos lobos me enviou algo, era provável estar ali.
- Você realmente não muda, borboletinha.
O timbre masculino soou vindo de trás de mim. Era como se as palavras pronunciadas fossem ondas de choque que percorriam o meu corpo, insistindo que ele deveria começar a tremer. Medo? Angústia? Não. Raiva.
Era isso que cada partícula do meu corpo sentia.
Bem como aprendi com Alister, me virei sem hesitação e sem qualquer sinal de abalo transparecendo nas minhas expressões.
- Continua descuidado, não é mesmo? - A risada veio acompanhada do cheiro de cigarro se espalhando em forma de fumaça pelo meu escritório. A guimba foi jogada em qualquer canto do chão.
O homem de pele morena destacando-se no terno com listras brancas e rosa-claro. Uma cartola baixa sobre a cabeça que continha cachos castanhos claros caindo sobre as orelhas. A barba por fazer moldava o rosto com um olhar opaco. Sem qualquer tipo de luz.
Um sorriso se abriu no rosto cínico quando fiz contato visual.
“Então, era este o homem que estava me procurando? Ele deu um nome falso? Mas Daiyu conhece o rosto dele…”, pensei, enquanto sentia os músculos do meu rosto agonizando para retorcer-se em uma expressão de aversão, lutando para desfazer a minha fisionomia apática.
- O que quer, Jeffrey Davies? - Eu perguntei. A voz arranhando a garganta para não gritar ofensas.
- É assim que trata o homem a quem deve tanto? - Ele puxou uma das cadeiras da sala para se sentar à frente da minha mesa onde eu permanecia estático, no escritório. Sua linguagem corporal dizia como estava confortável com a situação. - Se for bonzinho comigo pode ser que ganhe uma recompensa.
- Não preciso de nada vindo de você. Nunca precisei. - Eu me virei e voltei a vasculhar a gaveta de antes, ignorando-o. Ou foi o que tentei fazer.
- Não foi o que você disse quando eu cuidei de você naquela época. - Senti os olhos pairando sobre minhas costas, esperando ansiosamente a minha reação. - Sabe, depois de você ter–
Eu puxei um arquivo da gaveta que investigava e me virei bruscamente na direção do homem com a cartola baixa. O arquivo tinha o nome de Vanessa, a líder dos lobos.
- Se só veio para conversar, então vá embora. Se veio para falar algo útil… - Senti minha mão esquerda se fechando involuntariamente, amassando parte do arquivo que eu segurava em mãos. -...então fale agora.
Ele alargou ainda mais o sorriso em seu rosto.
- John Larck.
O nome que saiu da boca de Jeffrey reverberou como se quebrasse as paredes da minha mente. Uma sala escura com coisas que eu gostaria de nunca mais poder me lembrar. Rostos que eu preferia jamais ter conhecido.
- O que…- Eu engoli em seco. Senti o suor escorrer pela lateral do rosto. -...o que tem ele?
As paredes rachadas na sala do esquecimento em minha mente deixaram vazar memórias de uma infância problemática e dolorosa. Um homem que sequestrava, torturava e matava crianças em prol de encontrar uma divindade renascida. Um homem que me deu o sobrenome que carrego hoje.
- Então, você ainda se lembra do seu tio? O homem que te criou. - Jeffrey inclinou levemente a cabeça e cruzou as pernas, largado na cadeira em que estava sentado sem qualquer tipo de elegância. - A informação que tenho é sobre ele.
A cada frase proferida eu sentia mais paredes se quebrando. Mais memórias emergindo. Mais coisas que eu gostaria de esquecer.
- Eu sei que ele está preso em prisão perpétua. - Eu deixei o arquivo parcialmente amassado sobre minha mesa e coloquei uma das mãos para trás. Uma que insistia em tremer de nervosismo.
- Bem, e se eu te contasse que isso é informação antiga? - Ele esticou os braços e pôs um apoiando a cabeça, sem tirar os olhos de mim. - Quer saber onde o seu amado tio está agora, borboletinha?
John Larck foi um caso resolvido pelo antigo líder do que, agora, é a Divisão Cervo. Qualquer pessoa que tenha respostas sobre o paradeiro dele provavelmente está morta.
Nunca me importei em mapear os passos de John Larck já que sentia a segurança de que ele estaria pagando pelos seus crimes pelo resto de sua existência.
Mesmo que ele esteja solto por aí, quais as chances dele ter acesso a Divisão Cervo? Ele não poderia fazer qualquer mal como o que fez no passado. Mesmo ele estando livre, está tudo bem com a divisão, não é? Está tudo bem com as pessoas que protejo, não é?
…Não é?
Uma imagem surgiu em minha mente: Um garoto de cabelos alaranjados como o fogo. Com a energia acolhedora do Sol. Uma criança tão iluminada quanto o dia. Lilly.
“É verdade. Eu ainda não o vi…”, pensei.
O único além de mim que sabe do que John Larck é capaz. O único que sabe o quanto de sangue aquele homem tem em suas mãos. Lilly, uma criança que vai para a escola quase todos os dias. Que frequentemente sai das barreiras protetoras da cidadela. Um alvo.
- O que você quer em troca do paradeiro de John Larck?
Minha mão não tremia mais. A repulsa foi engolida e escondida no fundo da garganta. Pouco importa o que Jeffrey iria querer. O importante era tirar John Larck de circulação. Isso não só seria mais seguro para Lilly mas também para outras crianças que provavelmente estão sendo ameaçadas pela existência daquele homem.
- Sinto que agora estamos fazendo negócios, borboletinha. - Jeffrey endireitou a postura e se aproximou um pouco, puxando a cadeira. - Acho que você sabe o que eu quero, não é?
Eu mexi os lábios para cuspir um palavrão, mas Jeffrey me interrompeu antes de eu emitir qualquer som.
- Relaxa, não quero que você se prostitua ou algo assim. - Ele me olhou de cima para baixo. - Apesar de ser tentador, não é assim que eu desejo te possuir.
- Então, o que você quer? - Eu perguntei, cruzando os braços.
- Quero que você me torne oficialmente um membro da sua divisão.
A frase fez um dos meus olhos tremer. Tive que apoiar um dos ombros na parede para não desmaiar com a raiva que me asfixiava.
- Assim posso atuar de forma vitalícia para sua divisão. Você ganha suas informações privilegiadas e…- Ele se levantou. A diferença de altura fazia meu fio de cabelo mais rebelde alcançar o queixo do homem de cabelos cacheados. - …eu posso ficar por perto.
- É só isso? - Eu perguntei, sem acreditar nas palavras vazias que eram lançadas.
- Apenas isso. - Mesmo assim, ele confirmou. - Lúcifer, por algum acaso tem medo de mim? - A mão áspera pairou sobre meu ombro e deslizou para acariciar meu pescoço. O afastei com um tapa com as costas da mão esquerda.
Senti uma das sobrancelhas tremer. Andei calmamente até a mesa e tomei em mãos o arquivo de antes. Estava determinado a ignorar todas as provocações vindas daquele homem.
- Hm,...- Ele cruzou os braços e fitou partes inapropriadas do meu corpo tão cheio de imperfeições. - …Só acho que esta é a única justificativa plausível para você me afastar, tendo em vista que sou o mais perto que você tem de “família”.
Ergui minha cabeça e andei até a saída do escritório, passando por Jeffrey em passos pesados.
O nó de repulsa e sentimentos reprimidos transbordou de mim através de palavras que não pude conter.
- Jeffrey, você é um homem rico e vazio. Por que eu teria medo de você? Ou melhor, por que eu consideraria você minha família? - Eu coloquei o arquivo embaixo de um dos meus braços e, lentamente, pude sentir os músculos do meu rosto relaxando.
- Ora, então quem é sua família? As pessoas medíocres que você esconde nessa cidadela? - Ele riu e revirou os olhos. - Ah, por favor, borboletinha–
- “Medíocres”? - Eu deixei escapar uma risada anasalada. - Jeffrey Davies, honrado informante da organização Dásos… - Andei na direção dele, o suficiente para quase sentirmos o calor da respiração um do outro. - …Um homem que perdeu tudo o que era importante e agora vive correndo atrás das migalhas deixadas pelas pessoas que feriu.
O sorriso de Jeffrey se transformou em uma carranca rancorosa. Ele me olhava de cima abaixo com desprezo.
- Se pensa que minha divisão é composta por pessoas medíocres, então, acho que você se sentirá em casa. - Eu disse.
- Então, eu fui admitido? - A voz saiu entre os dentes, quase num rosnado.
- Exatamente. Por isso, como seu chefe e líder da divisão, faça um relatório sobre tudo o que sabe em relação a John Larck e me envie até a noite.
Quando avancei em direção ao elevador, Jeffrey surgiu na minha frente, impedindo minha passagem num piscar de olhos.
- Voltarei para o meu hotel agora e trarei minhas coisas para viver na cidadela. Chegarei a noite com o relatório pronto,… - A expressão cínica se recompôs junto de uma reverência debochada. - …chefe.
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