Naquele sábado você não veio. Olhei para o céu em busca de alguma mancha preta no azul, como se você realmente pudesse aparecer ali batendo asas e pousando em minha frente, mas nada. Ainda assim te esperei. Vi o sol correr pelo que restava da extensão do céu e se despedir com um aceno laranja no horizonte, me dando uma última iluminação para que eu pudesse voltar para casa.
Ao redor de mim, a praça começava a mudar de ares. As luzes se acendiam azuladas nos baixos postes de metal, e corredores noturnos passavam vez ou outra em frente a mim, de shorts e tênis esquisitos. Vi gradativamente os senhores idosos que enchiam a tarde da praça serem substituídos por casais abraçados. Alguns deles vinham de quando em quando verificar se o banco em que eu sentava estava vazio. Quando me viam ali, davam meia volta de cara fechada e iam saíam em busca de outro lugar. O ambiente parecia outro. As sombras que esgueiravam de tarde pareciam ter tomado todo o lugar, e sem você, sem os velhinhos, aquilo estava quase irreconhecível. Acho que saí de lá não porque cansei de te esperar, mas mais porque aquele lugar já não estava mais me agradando. Quando levantei para sair, foi o primeiro momento que olhei as horas depois que você atrasou. Como se não olhar o relógio pudesse fazer com que as 15h durassem para sempre.
Aliás, o Alfredo passou mais cedo e perguntou onde você estava. Só dei de ombros, preocupado com sua demora. Ele desejou boa tarde e sumiu em direção ao dominó, mandando um abraço pra você.
Fui embora da praça, e antes que eu saísse dela, ainda deu uma rápida olhada buscando alguém em uma fantasia de corvo preta.
Cheguei em casa e enfrentei um interrogatório de minha mãe, pois havia saído sem avisar. Queria saber onde estava, com quem estava e por que havia demorado tanto. Apenas ignorei tudo isso e atravessei a casa em direção ao meu quarto. Fechei a porta e passei a chave. Ainda podia ouvir ela falando do outro lado, dizendo que isso era culpa do meu pai, por ter ido embora.
Em minha cabeça não consegui defender o desgraçado e queria concordar com minha mãe, mas também não consegui condenar ele. Eu sei, melhor que ninguém, como é viver com uma corrente nos pés e, você mesmo, apertá-la de vez em quando pra garantir que não possa se libertar. Sinto falta dele, mas entendo porque fugiu com o Bento. Se pudesse, fugiria também.
A noite se passou e o cheiro da janta chegou no meu quarto. Tinha fome, pois minha última refeição havia sido o almoço, mas não tinha forças para me erguer. Pensei “bora, se não se levantar e agir, vai ficar aqui nessa casa para sempre”, que era o que me motivava no dia a dia. Naquela noite de sábado, no entanto, isso não funcionou muito bem. Continuei deitado olhando para o teto estático, para as telhas vermelhas que se misturavam embaçadas vez ou outra em minha visão, mas eu as separava esfregando os olhos com o antebraço, apenas para se embaçarem outra vez no próximo minuto.
Eu chorava por não ter te visto, mas acho que primariamente chorava porque a tristeza que sentia confirmava certas suspeitas que tinha dentro de mim. De sentimentos que havia sufocado anteriormente, esganado com meus dedos até achar que estavam bem mortos. Que surpresa! Essas coisas não morrem.
Conforme a noite caminhava o cheiro de comida deixou de fazer parte do ambiente e lidar com a fome se tornou uma tarefa menos árdua; ouvia a vida do lado de fora e de dentro da casa. Carros passando, um som tocando forró antigo lá longe, pessoas conversando alto na casa do lado, minha mãe mexendo nas panelas na cozinha. Eu parecia muito descolado daquilo tudo. Os barulhos foram diminuindo e as luzes dentro de casa sendo apagadas. Quando dei por mim, carros eram raros, vozes estavam silenciadas e já era hora de dormir. Tentei fechar os olhos e me deparei com teorias e ansiedades a respeito da sua ausência logo detrás da minha pálpebra. Não importava a teoria, a culpa sempre acabava recaindo sobre mim. Sacudia a cabeça e buscava outra explicação, como se buscasse um fio de pensamento mais agradável em um emaranhado. Já que não podia escapar delas poderia ao menos selecionar uma agradável na qual acreditar e me apegar à ela, mas bastava avançar no raciocínio, puxando o fio do emaranhado, para ver que ele chegava à mesma conclusão.
Assim como qualquer pessoa, não lembro o momento que dormi, mas tenho plena certeza que dormi sabendo que você não ter aparecido era minha culpa.
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